DONA HIPOTENUSA E SEUS DOIS CATETOS, por Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

“As abelhas libam flores de toda espécie, mas depois fazem o mel que é unicamente seu e não do tomilho ou da manjerona.” [Michel de Montaigne, em ENSAIOS. Nova Cultural: São Paulo (SP), s/data; Capítulo XXVI – Da educação das crianças, pág. 152].

Estávamos na quarta-feira inaugural do ensolarado e cálido mês de outubro, do ano de mil, novecentos e sessenta e oito, da era cristã, numa das naturalmente iluminadas e arejadas salas de aula do Colégio Salesiano Domingos Sávio – cujos reconhecido desempenho pedagógico e meritória capacidade de formação infanto-juvenil sobre sólida base religiosa elevavam Baturité à categoria de polo de excelência na área de Educação –, onde mais precisamente se desenvolviam as atividades curriculares da então quarta série ginasial, último degrau de acesso ao Científico, nível equivalente ao atual Ensino Médio.

Os ponteiros do relógio de algibeira, de longa corrente prateada, estrategicamente posicionado ao alcance de suas rápidas olhadelas, indicavam que quarenta preciosos minutos nos separavam das oito da manhã. A sua leitura do tempo sempre se dava nesta ordem: o que falta para tanto e nunca o que passa de tanto. Diziam ser ele um homem bem à frente do seu tempo, sobre cujos ombros pesava a responsabilidade de dirigir aquela tão respeitável instituição.

Mal concluíra a chamada, por ordem numérica, dos trinta e poucos jovens aprendizes, seus atenciosos pupilos, todos de aparência física bem cuidada, impecavelmente uniformizados e admiravelmente – aos olhos de toda a docência – submissos aos rigores do regramento vigorante, que, inclusive, prescrevia os tipos de punição aplicáveis a leves e eventuais desmandos juvenis – eu tive o desprazer de experimentar um dos mais marcantes: a “coluna” –, o respeitável professor de Matemática, padre Luís Sávio Prata, levantou seu olhar perscrutador por sobre os óculos escanchados quase na ponta do nariz levemente aduncado, causando em nós o temor que naturalmente acomete quem pressente que algo de ruim está para acontecer. Direcionou, então, esse olhar agora amedrontador para o lado da sala em que se encontrava, naquele momento, o alvo de sua maior atenção e, após livrar-se do acessório de correção visual, agora posto sobre o caderno de frequência e desempenho mantido aberto ao lado do livro de Osvaldo Sangiorgi, sobre o tampo da austera mesa de sólida estrutura, de cor escura e de uso privativo dos professores – ai de quem fosse flagrado em seu indevido uso!… infringi tal regra uma única vez: daí o desprazer do castigo guardado na zona mais densa da memória –, anunciou, solenemente, o nome do escolhido:

– Senhor Francisco Luciano Gonçalves Moreira!

Reagi como um autômato. Procedi como mandavam as inquestionáveis regras do bom comportamento escolar. Levantei-me sem fazer qualquer barulho, sem revelar qualquer impertinência e sem desviar o olhar de respeito ao mestre. Perfilei-me ao lado da carteira que me fora reservada no início do ano letivo, quando me tornaram responsável por danos que eventualmente eu lhe infligisse. E a ordem me foi dada:

– Caro jovem, dirija-se ao quadro-de-giz e, de forma clara, para o necessário entendimento de seus colegas, desenvolva o teorema de Pitágoras.

O horário escolar reservava, à época, aulas de Matemática às segundas, terças e quartas, e de Português, às quartas, quintas e sextas. Era a espinha dorsal de toda a grade curricular que ainda contemplava Línguas Inglesa e Francesa, História Geral, Geografia Geral, Ciências Física e Biológica, Desenho, Religião e o velho OSPB ou Organização Social e Política Brasileira.

Na véspera, ao acordar-me às seis e poucos da manhã, senti arrepios pelo corpo, sintoma de um moderado quadro febril, e uma forte ardência na garganta. Meus pais entenderam, por consenso, que eu precisava de repouso e xarope. Pronto. De imediato, o tratamento se iniciou. A minha ausência no colégio seria justificada em contato que meu pai manteria pessoalmente com o senhor Diretor, que – convém salientar – sempre se dispunha a bem receber os aliados – atualmente chamados de parceiros – na árdua tarefa de educar e formar pré-adolescentes e jovens.

Ao meio da tarde daquela terça-feira, demonstrando estar recuperado do mal-estar que me acometera às primeiras horas da manhã e alegando que procuraria saber o que fora lecionado nas aulas em que me fiz ausente, obtive autorização para ir ao colégio com tal objetivo, sob a condição de que evitaria a prática de atos que pudessem pôr em risco a minha então fragilizada saúde.

Juro que tentei seguir à risca o aconselhamento de minha segunda mãe. Juro, sim. Só que, no pátio interno do colégio, a intensa movimentação de jogos – basicamente espirobol e futebol de salão – e de brincadeiras várias mexeu com o meu jeito moleque de ser, o que, ao ver de meu pai, não passava de um vício do qual eu devia livrar-me o mais rapidamente possível. Certamente, o padre Prata me viu jogando uma disputadíssima partida de futebol, de um lado o time de internos e do outro o de externos. Deve ter sido isso, ou melhor, foi exatamente isso que o moveu a cobrar-me o teorema de Pitágoras.

Senti-me literalmente perdido. Pensei em declarar, de imediato, a minha ignorância sobre o assunto; mas isso equivaleria a merecer a abominável nota zero. Lembrei-me do senhor Alípio, o bom professor de anos anteriores, irmão salesiano recentemente transferido para Carpina, no interior pernambucano. Andei calmamente em direção ao cadafalso, ou melhor, ao quadro-de-giz – uma faixa plana, retangular, de um pouco mais de um metro de largura, com rebordos em todos os lados, o inferior – a cerca de um metro do piso – bem mais saliente para receber os gizes e apagador, de fundo em cimento com acabamento especial e de cor verde, que se estendia ao longo da parede por trás do tablado sobre o qual se destacava a austera mesa do professor. No curto trajeto, maldisse Sangiorgi e todos os teoremas contidos no seu livro, mas lembrei-me de ter ouvido colegas se referindo ao meu algoz grego, que teria desvendado algum mistério antes encoberto pelas linhas demarcatórias de um triângulo retângulo, aquele cuja principal marca é um ângulo reto ou de noventa graus.

Em silêncio, peguei o giz e, com mão firme, tracejei o meu triângulo retângulo, atribuindo aos seus lados as letras a, b, c. Parei. Admirei, por alguns instantes e em toda a sua singeleza, aquela obra de arte, com a pretensão de invadir-lhe o âmago e de lá recolher a solução definitiva para o mistério indecifrável ao meu entendimento ora desprovido de um particular conhecimento. Volvi meu penitente olhar para o mestre que assim me estimulou:

– Prossiga, rapaz. Todos nós queremos ouvi-lo. Avante!

Faltou-me chão. Não titubeei, porém. Despi-me de justificativas vãs. Expus a minha ignorância:

– Professor, eu nada sei sobre o teorema de Pitágoras… a não ser que ele se refere ao triângulo retângulo…

– Pela sua coragem e pelo seu desenho, vou lhe dar a nota um. Pode ir sentar-se.

Antes de chegar à minha carteira, ocorreu a parte mais aguda do castigo. Ouvi-o chamando o nome do colega com quem renhidamente disputava, desde sempre, a primeira colocação na turma, em todas as avaliações mensais. Acho até que suei frio. Como iria recuperar a minha posição de destaque se, naquele momento, uma impensável nota um acabara de aninhar-se em meu agora sofrível desempenho?

Assisti, com o espírito de ponta-cabeça, à irrepreensível atuação do colega. Com ele, apesar do sentimento de repulsa que quase toma conta de mim, aprendi o mistério descoberto por Pitágoras e alçado ao patamar de teorema: o quadrado da hipotenusa (o segmento maior do triângulo e oposto ao ângulo reto) é igual à soma do quadrado dos catetos (os outros dois lados), o que literalmente se inscreve assim: a²+b²=c². Ele obteve a nota máxima, mereceu os elogios do mestre e reagiu com um largo sorriso… juro que me senti destinatário de um olhar de desprezo.

Apesar dos meus recorrentes apelos ao bondoso coração de padre, não me era dada qualquer chance de recuperação. O um permanecia absoluto, uma deprimente mancha vermelha na linha de meu até então exemplar desempenho.

Direcionei minha artilharia para as outras disciplinas e, paulatinamente, ia garantindo a nota máxima em todas elas. Na semana anterior à de aplicação das provas mensais, padre Prata, ao término da aula de segunda, determinou que abríssemos o livro de Sangiorgi numa de suas últimas páginas, onde o autor propunha a busca de solução para uma ampla série de problemas. E a sua voz soou tão agradavelmente aos meus ouvidos que mais parecia o dedilhar suave e cativante de uma deusa seminua pelas cordas de uma afinada harpa:

– Jovens, atentem para esta atividade de casa. Resolvam, individualmente, todo o exercício número xis da página ípsilon. Entreguem-me este trabalho em folhas de papel almaço no início da aula da próxima quarta-feira, depois de amanhã. A nota que os senhores obtiverem irá compor a média do mês.

Eram questões envolvendo sistema de equações, com diversos graus de complexidade. Debrucei-me sobre elas e, com esmero, produzi um trabalho de qualidade que, já na entrega, despertou o interesse do mestre, por mim percebido ao vê-lo folheando com especial atenção.

Na segunda, às vésperas da avaliação mensal, deu-se a devolução dos trabalhos. Na forma de praxe, chamava o autor, anotava o conceito e procedia à entrega. À medida que o meu nome não se fazia ouvir, mais tenso ia ficando. Quando só lhe restava à mão o de minha autoria, o mestre olhou por sobre os óculos escanchados quase na ponta do nariz levemente aduncado, direcionou esse olhar para o lado em que se encontrava o alvo de sua atenção e solenemente anunciou:

– Senhor Francisco Luciano Gonçalves Moreira!

Segui, mais uma vez, o ritual apropriado a situações do gênero. Ele prosseguiu:

– Parabéns! O senhor foi o único da turma que resolveu corretamente todas as questões. Dirija-se ao quadro-de-giz e demonstre como tratou a de número… a de número… seis, em relação à qual todos os seus colegas cometeram equívocos.

Ele mesmo enunciou o problema. Fiz a um canto do quadro algumas anotações, à medida que ouvia o enunciado. Expus o raciocínio apropriado à proposta, conduzi com tranquilidade toda a execução, até obter o resultado. Entre parênteses, inscrevi o famoso c.q.d. (como queríamos demonstrar). Virei-me para a turma e flagrei sussurros, cochichos e expressões faciais as mais diversas. Do meu amado concorrente, logo convenci-me de ter ouvido um solene efe-da-pê.

Padre Prata levantou-se, já sem os óculos, e se permitiu fazer o elogio que ainda carrego comigo, como estímulo em situações de extremos enfrentamentos:

– Bravo! Sempre reaja assim! Aproveite as oportunidades, elas geralmente não costumam sorrir duas vezes para a mesma pessoa! Dez para a atividade de casa e dez para a aula com que ora nos presenteia. Parabéns! – Ainda me advertiu com a usual seriedade: – Cuidado com a prova de quarta!

Nos primeiros dias do mês de novembro, os flanelógrafos da Secretaria exibiam os resultados, por turma, obtidos pelo alunado. No da quarta série, a média oito em Matemática na linha correspondente ao meu nome revelava a repetição da nota máxima na “prova da quarta”. Na coluna Classificação, o um agora indicava que eu não havia perdido o meu posto, embora mantido por alguns décimos… graças ao arredondamento com que o bom senso de um verdadeiro mestre me presenteara.

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