O filósofo, escritor e poeta francês Paul Valéry, na antevéspera da Segunda Grande Guerra Mundial, defendeu, em seu livro “Pièces sur l’art”, que “Em todas as artes existe uma parte física que não pode continuar a ser olhada nem tratada como outrora, que já não pode subtrair-se ao conhecimento e potência modernos. Nem a matéria, nem o espaço, nem o tempo são desde há vinte anos o que foram até então. É de se esperar que tão grandes inovações modifiquem toda a técnica das artes, agindo, desse modo, sobre a própria invenção, chegando talvez mesmo a modificar a própria noção de arte em termos mágicos”.
A clarividência da argumentação de Paul Valéry em torno das novas possibilidades da arte por meio do uso das tecnologias emergentes foi de tal modo instigante que o ensaísta, crítico literário, filósofo e sociólogo judeu alemão Walter Benjamin, no ensaio “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”, publicada em 1936, não só transcreve parte do texto do poeta francês na abertura da obra, como o expande em termos dialéticos e políticos, ao afirmar que “Os conceitos seguidamente introduzidos, novos em teoria da arte, diferenciam-se dos correntes pelo facto de serem totalmente inadequados para fins fascistas. Pelo contrário, são aproveitáveis para formulação de exigências revolucionárias em política de arte.”
Tais perspectivas, que embutiam uma visão crítica e ao mesmo tempo revolucionária da arte enquanto instrumento de libertação, mas também de dominação, foram provisoriamente colapsadas pelo advento da Segunda Grande Guerra Mundial, maior conflito já travado pela humanidade, ao qual, assinale-se, nem Paul Valéry, nem Walter Benjamin, sobreviveram.
O pós-guerra, por sua vez, trouxe em seu bojo não só o sentimento de reconstrução, mas, em escala superior, o de renovação, pelo que se constituiu em um ambiente propício para a experimentação de novas possibilidades em todos os campos do conhecimento, em especial nas artes.
É neste contexto de renovações e transformações, sob influência de artistas e teóricos europeus como Max Bill, Theo van Doesburg e Piet Mondrian – que propunham uma arte baseada na matemática, na geometria e na ciência -, que um grupo de jovens artistas e intelectuais, em sua maioria paulistas, criam o movimento intitulado Concretismo, cujo um dos marcos fundantes é a publicação, em 1952, por Waldemar Cordeiro, da revista “Nota sobre a Arte Concreta”, que se tornou uma importante plataforma para a difusão das ideias do movimento então liderado por nomes como Augusto de Campos, Décio Pignatari, Haroldo de Campos e Judith Lauand, entre outros.
O Concretismo surge, portanto, como uma nova visão de arte, sendo esta baseada na geometria, na racionalidade e na objetividade, eliminando-se, por óbvio, a subjetividade tanto no fazer quanto no apreciar. Utilizando-se de materiais distintos, inclusive industriais, e promovendo uma ampla intersecção entre áreas como a literatura, a música, a arquitetura e o design, a Arte Concreta se baseava na produção de formas puras, com elementos como linhas, cores, planos e volumes, sem fazer uso da representação de objetos ou figuras, atitudes que caracterizavam, além de um rompimento deliberado com o passado artístico, a intencionalidade por uma nova arte que fosse ao mesmo tempo moderna, internacional e capaz de dialogar com as tendências contemporâneas.
Tais pressupostos do Concretismo, que inclusive influenciaram artistas cearenses como Zenon Barreto, Estrigas, Goelbel Weyne, Girão Barroso e Alcides Pinto, no entanto, acabaram por encontrar oposição crescente, inclusive entre alguns artistas inicialmente ligados ao movimento, como foi o caso do escritor, poeta, crítico de arte e ensaísta Ferreira Gullar, para quem a Arte Concreta era, na verdade, uma ruptura com o Modernismo Brasileiro, que se caracterizava “…por ser nacional, nativista, voltado para as temáticas indígenas, folclóricas… Coisas típicas do Brasil, ao contrário da vanguarda europeia, que inspirou a Semana de 22. A vanguarda europeia era universalista, não regionalista. O Cubismo não é uma expressão da cultura francesa. O Expressionismo não é uma expressão nacional alemã.”
O Concretismo, por sua vez, findaria, no transcorrer deste debate interno, por gerar um outro movimento, conforme assinala Ferreira Gullar: “Dentro do Concretismo surgiria o Neoconcretismo, que é um passo adiante, uma vez que o Concretismo, por esse caráter muito objetivista, geométrico e tal, tendia a uma racionalização crescente do trabalho artístico. O Neoconcretismo é, de certo modo, uma tentativa de superar esse objetivismo, e isso foi conseguido com a participação do espectador na obra.”
O Neoconcretismo, que oficialmente surge no ano de 1959, se estabelece então como uma reação a postura racional e objetiva do Concretismo, defendendo uma abordagem mais subjetiva e sensível da arte, com predomínio do sentimento e da emoção, além do diálogo entre o objeto artístico e o espectador, que deveria ser livre para interpretar a obra de acordo com suas próprias experiências e emoções.
O núcleo de artistas do movimento Neoconcreto, em sua maioria sediados no Rio de Janeiro e composto por nomes como Lygia Clark, Hélio Oiticica, Lygia Pape e o próprio Ferreira Gullar, passa então a desenvolver trabalhos com materiais os mais diversos, sempre buscando imprimir um caráter interativo nas obras, como esculturas que podiam ser manipuladas pelo espectador (Lygia Clark), roupas feitas para o espectador vestir e se movimentar (Hélio Oiticica e seus “Parangolés”), ou instalações imersivas com uso de materiais orgânicos (Lygia Pape), além de livros-poemas cujo desenvolvimento da narrativa dependia da interação com o leitor (Ferreira Gullar).
Com amplo impacto, repercussão e interlocução no mundo das artes, o movimento Neoconcreto findou por ganhar status e reconhecimento crítico, com seus protagonistas destacando-se nacional e internacionalmente, o que contribuiu para a extensão não só do debate estético, mas de questões como a subjetividade, a experiência e a participação, abrindo caminho para o Tropicalismo (música), a arte experimental e arte contemporânea no Brasil, com reflexos ainda hoje visíveis.
REFERÊNCIAS
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