Ditadura burguesa; democracia burguesa; e emancipação social

“Tudo que é sólido desmancha no ar!”
Karl Marx.

Durante o processo eleitoral deparei-me com diversas contestações à direita e à esquerda em face da minha posição de negar o voto a qualquer dos dois candidatos que passaram para o segundo turno das eleições de 30 de outubro de 2022.

​Os eleitores do Boçalnaro, o ignaro, argumentavam sempre com o mantra: Lula é ladrão!

​Os do Lula diziam que eu estava jogando água no moinho dos adversários, e que mesmo sem querer, estava perpetuando e legitimando o fascismo.

​Em ambos os argumentos havia meias verdades, e como toda meia verdade é uma mentira inteira, entendo que tal raciocínio se constitui como uma falsa dicotomia.

As argumentações que pontificaram em grande percentagem no processo eleitoral que se encerrou, mesmo que os derrotados ainda questionem parcialmente e sem comprovação séria a lisura das urnas, ignoram uma questão central que não quer calar: será que não temos alternativas entre ditadura e democracia, ambas burguesas?

Sabemos que as ditaduras totalitárias representam a supremacia da vontade de alguns pretensos iluminados que decidem o que é certo e o que é errado arbitrariamente, e sempre em benefício de uma casta social que lhe bajula e apoia em troca dos benefícios recebidos.

Nesta situação ditatorial costumam ocorrer injustiças sociais e pessoais sem que os prejudicados tenham a quem recorrer; a própria máquina judiciária é colocada sob os pés da força bruta e mesmo o direito burguês é vilipendiado em nome de interesses escusos.

Os patridiotas que hoje clamam por uma intervenção militar em nome de uma falsa democracia, dividem-se em dois grupos:
– os que auferem vantagens e privilégios econômicos da ordem burguesa e querem mantê-los ditatorialmente sem questionamentos;
– e os que são iludidos com cantilenas fracassadas mundo afora de que a ordem e a disciplina militares são contributos para o prosperidade social linear e que todos os problemas sociais decorrem da corrupção com o dinheiro público.

Os primeiros são conscientes dos seus interesses, e geralmente não tomam chuva nem sol, apenas financiam e manipulam à distância o movimento fascista (alguns dão opiniões golpistas pelas redes sociais e vão para resorts caros desfrutar o dinheiro arrecadado junto aos fiéis seguidores; outros vão para o Catar levar pen drive e já que estão por lá assistem aos jogos da copa; outros mandam caminhões e pneus velhos para serem queimados nos bloqueios de estradas com alguém lhes prestando continências e cantando o hino nacional).

Os segundos não passam de inocentes úteis, e engrossam o cordão histórico dos que aplaudem o Rei por mantê-los com pão e circo, ainda que escravizados. São mais vítimas do que algozes, ainda que aplaudam estes últimos.

As ditaduras burguesas são assim consideradas porque mantêm com mão de ferro as categorias capitalistas; e fracassam porque uma das regras fundamentais do capitalismo é a produção de mercadorias para serem vendidas no mercado, e quando há manipulação de resultados (custos de produção e privilégios monopolistas na guerra concorrencial de mercado), tudo termina mais rapidamente em desastre, e com muitos mortos por não obedeceram aos que lhes é imposto.

As democracias burguesas são assim consideradas pela descentralização republicana de poderes do Estado e se subdividem em liberais clássicas, com o Estado mínimo, e keynesianas, com Estado forte e intervencionista, mas servindo como estímulo à economia de mercado na vã pretensão de tornar o capitalismo bonzinho. Desconhecem (ou querem desconhecer conscientemente) a natureza subtrativa e egocêntrica do próprio capital e seu caráter onívoro.

Em ambos os modelos o que prepondera é o poder econômico.

No primeiro caso o Estado fica centrado nas mãos de políticos totalitários mancomunados com empresários capitalistas estatais ou privados e força militar, mas todos submissos às ordens emanadas do próprio capital, o Deus que cultuam.

No segundo caso, o Estado cumpre função precípua de regulamentação política e de indução do capital em nome da tão repetida e almejada volta do desenvolvimento econômico, que nunca foi e nem jamais será linear, e que agora, mais do que nunca, está cada vez mais difícil de ser conseguida, mesmo para os países que se situam no topo do mundo econômico.

Traduzindo: as ditaduras burguesas e as democracias burguesas são espécies de um mesmo gênero: a relação social capitalista. O socialismo é apenas a versão keynesiana do capital traduzido como Estado forte, estatizante, que nunca pode ser confundido com o ideal comunista jamais experimentado.

As tentativas de socialismo como forma de transição para o comunismo floparam graças à preservação das categorias capitalistas que, após as revoluções marxista-leninistas, continuaram servindo de mediação para a relação social sob a forma valor e que foram cada vez mais desenvolvidas ou invés de terem sido negadas paulatinamente.

Os contra-argumentos fraternalmente usados por companheiros meus por conta da minha negação do voto nas eleições de 2022 no Brasil, geralmente se circunscrevem, resumidamente, ao exemplo clássico segundo o qual para se atingir o topo da escadaria à pé é necessário subir degrau por degrau.
Como eu me nego a repetir o mito de sísifo, e prefiro trilhar outro caminho para atingir o topo da montanha.

O receituário reformista brasileiro atual é o seguinte: primeiro devemos afastar o fascista do poder; depois… vamos apoiar o Lula e seu governo no rumo da reconstrução dos avanços sociais e institucionais detonados pelo governo nestes quatro anos de regressões sociais.

Aí eu pergunto: mas se Lula em todo discurso fala em retomada do desenvolvimento econômico, que nada mais é do que mais capitalismo, e como é que vamos nos libertar do mal que nos aflige usando como remédio o incentivo ao desenvolvimento do próprio mal?

Por medo da ditadura e na espera de um capitalismo próspero e bonzinho que possa prover o bem-estar social a partir da elevação dos salários e do pleno emprego é quimera ilusória de quem não quer reconhecer a dinâmica predatória salarial do capital imposta pela guerra concorrencial de mercado globalizada.

Assim, até quando vamos ter que:
– continuar pagando os juros extorsivos que incidem sobre nossa dívida pública, sacrificando as demandas sociais tão vilipendiadas neste governo que se constitui como o pior da história republicana, ou vamos peitar a ordem mundial econômica que nos impõe tal sacrifício, enquanto os países ricos não pagam nada de juros?
– aceitar a negação de benefícios previdenciários e trabalhistas de velhos e inválidos aposentados e assalariados que já são extorquidos pela extração de mais-valia e pagamento de caros impostos pagos a cada compra de mercadoria inflacionada, e tudo para sustentar o capital e sua máquina estatal opressora em troca de apoio de uma elite política e empresarial?
– ver passivamente a fome aumentar nos lares brasileiros de desempregados e mal-empregados num país que tem mais bois do que gente e é o segundo maior produtor de alimentos vegetais e animais do Planeta?
– ouvir o discurso conservador, elitista e golpista ditatorial de parte dos grandes empresários do agronegócio que se acham no direito de bloquear rodovias e se jactam de carregar o Brasil nas costas, enquanto tocam seus negócios com juros subsidiados, dívidas perdoadas por leis de perdão bancário estatal e anistia fiscal concedida por parlamentares que elegeram, e uso de maquinário agrícola financiado a juros subsidiados nas terras mais férteis do país, como se eles fossem heróis nacionais?
– fazer alianças com políticos conservadores e elitistas que mudam de lado a cada ventania (lembram-se de quando Valdemar da Costa Neto, Roberto Jefferson, Michel Temer, entre outros que eram aliados considerados imprescindíveis para a governabilidade de Lula e Dilma?) em nome de um pragmatismo político que sempre se volta contra o povo como um bumerangue agressivo?
– conviver com o analfabetismo de grande parte da população brasileira por conta de uma escola pública indeficiente e com um currículo escolar que positiva as categorias capitalistas e a ordem social institucional republicana capitalista opressora como se fossem atributos necessários para a construção de uma civilização superior, quando, na verdade, temos uma civilização cada vez mais decadente por inadequação flagrante entre a moral e a ética oficialmente estabelecidas e uma realidade de decomposição social acentuada?
– respeitar a adequação deficitária da contabilidade pública a um orçamento cada vez mais deficitário que endivida a passos largos as finanças públicas, ao custo da negação de atendimento das demandas sociais prementes, como saúde e educação (o respeito ao teto de gastos é pilar da lógica capitalista de preservação da sua cidadela opressora, o Estado, mas somente para a periferia capitalista)?
– tratar a terra rural como uma mercadoria que pode ser concentrada nas mãos de grandes latifúndios empresariais que estão mais preocupados com o lucro das exportações que alimentam o mundo (e nisso são aclamados como grandes benfeitores sociais por conta da ajuda das ditas cujas no cálculo do PIB brasileiro), mesmo que os valores agregados dos alimentos sejam de pouca monta (uma mercadoria tecnológica patenteada vale muitas vezes mais do que uma tonelada de soja ou um saco de milho), e pouco representam para a alimentação dos brasileiros?
– tratar a terra urbana também como mercadoria que serve para a especulação imobiliária e com isto dificultar a sua aquisição para moradia?
– não criar juros subsidiados e de longo prazo para a aquisição de moradias e proporcionar infraestrutura urbana de qualidade (pavimentação, saneamento básico, abastecimento de água e energia), de modo que possamos atacar a vergonhosa calamidade da questão habitacional do Brasil, que rivaliza com os países mais pobres do mundo na criação de favelas?

Muitos outros itens poderiam ser aqui elencados para roteiro de uma administração popular. Mas vamos virar a chave e analisar a viabilidade política da implementação das medidas acima elencadas e de muitas outras que deixamos de citar.
Sei que qualquer democrata que passasse no Brasil (e mundo afora também) a direcionar o seu governo nas pautas acima elencadas, além de outras que poderiam ser citadas, enfrentaria a oposição da poderosa elite político institucional-empresarial-militar brasileira.

Os patriotas de terços e bíblias nas mãos e que vivem a clamar por ditadura militar sofrem da SINDROME DA MINORIA ILUMINADA, que entende que a parcialidade populacional mais raivosa minoritária é mais brasileira do que a majoritária, e na impossibilidade de aplacar a febre quebram o termômetro, ou seja, questionam as urnas; para eles o Brasil só é brasileiro para os conservadores na economia e nos costumes.

Para os conservadores religiosos fundamentalistas e viúvas da ditadura miliar, as proposições aqui timidamente elencadas são coisas de comunista comedor de criancinha e, assim, com um rótulo ignorante, confundem democracia social com ditadura burguesa numa inversão de conceitos na qual entendem que o povo é culpado por seu próprio infortúnio e não merece a pretensa bondade e generosidade das elites secularmente privilegiadas.

Lula vai tomar posse; isto está definido pelos donos do PIB e até pelos militares mais conscienciosos da conjuntura geopolítica mundial na qual o Brasil está inserido; mas desde que não ouse sair dos limites da constituição burguesa!

E ainda, que não se aventure a cumpri-la fielmente naquilo que os constituintes deliberaram como direitos constitucionais, considerados abusivos para o capital, como por exemplo distribuir lucros empresariais aos trabalhadores de empresas lucrativas (Artigo 7º, inciso XI, da Constituição Federal de 1988), para citar um único exemplo dos muitos havidos de descumprimento reiterado da nossa lei magna no capítulo II, dos direitos sociais.

Os que afirmam que o STF rasga a Constituição Federal e pedem uma Corte Suprema que atue dentro dos seus interesses, são os primeiros a negar o cumprimento da constituição nos artigos 5º ao artigo 11º da Constituição Federal que tratam dos referidos direitos sociais. Eles pulam pera o artigo 142 e aceitam as interpretações tendenciosas de intervenção militar de um Ives Gandra, metido a jurista do autoritarismo.

Não é uma questão de ignorância dos que insuflam a população para ir às portas dos quarteis enquanto desfrutam dos seus privilégios nem sempre santificados, mas de consciência sobre o desejo de construção de uma Constituição Federal ditatorial burguesa redutora dos direitos elencados na atual, mesmo que nunca cumpridos à risca quando se trata de beneficiar o povo.

O capital não obedece à sua própria constituição, quando se trata de cumprir obrigações que a sua lógica perversa não pode atender. Para beneficiar o povo a lei constitucional nunca pega.

Não tenho dúvidas que caminhamos, mesmo sob a vagareza do movimento da roda da história (que ora acelera seu ritmo), para um avanço superior de consciência social (mesmo aos trancos e barrancos) que negue a ditadura burguesa e a impotência da democracia burguesa graças às contradições dos próprios fundamentos capitalistas que ora demonstram as suas incongruências lógicas e falibilidade social sistêmica e ecológica.

A terceira via não é eleitoral, mas social e emancipatória a partir de novo modo de produção e ordem social fora da lógica do valor e da dissociação de gênero.

O que parecia impossível está se tornando uma meridiana clarividência.

Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;

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