DISCERNIR NO AGIR – Alexandre Aragão de Albuquerque

Grandes dores ou grandes amores são capazes de produzir grandes mudanças na vida de pessoas e comunidades. Este é um precioso ensinamento retirado a partir vivência reflexiva de Agostinho de Hipona sobre seu processo de mudança pessoal. Para ocorrer este tipo de conversão de rumo existencial, o desafio é ter a capacidade de discernir entre o que está certo e o que não está certo, a nível pessoal e social, para adotar imediatamente ações coerentes com o discernimento obtido. Ou seja, viver concretamente o novo anúncio discernido.

No caso de uma comunidade, antes de qualquer ação propriamente dita, é preciso ter a profunda compreensão de que só há comunidade quando as pessoas que delas fazem parte aceitam consciente e deliberadamente que são responsáveis umas pelas outras. Não se trata de viver apenas uns-com-os-outros, mas de viver uns-pelos-outros. Isto implica um caminho de duas vias, que vai – dinamicamente – de um ao outro e do outro ao um. Não existe discernimento comunitário – comunhão – somente de um só lado. A comunhão pressupõe ao menos duas presenças que se relacionam, implicando consequentemente reciprocidade. Portanto, requer a existência de presenças livres, capazes de assumir conscientemente entre si decisões concretas entre possibilidades concretas no desejo de alterar a realidade.

Disto conclui-se que discernimento não é um processo natural, mas um ato de vontade da subjetividade, um ato contínuo de conscientização. Paulo Freire nos lembra que só existe conscientização quando não apenas reconhecemos e experimentamos a dialeticidade entre prática e teoria, objetividade e subjetividade, realidade e consciência. A autenticidade da conscientização ocorre quando a prática do desvelamento da realidade (discernimento) constitui uma “unidade dinâmica e dialética” com a prática da transformação da realidade (ação transformadora). Freire vai mais além ao afirmar que “ninguém liberta ninguém; homens e mulheres se libertam em comunhão, mediatizados pelo mundo”. A humanização se dá coletivamente no processo de produção social. Formamo-nos como humanos na maneira como produzimos nossa existência.

Consequentemente, em relação aos conflitos presentes nas relações sociais, não se trata de negá-los ou escondê-los. Nem mesmo se trata de negar determinadas polaridades para encontrar-se confortavelmente no centro. Trata-se de, em primeiro lugar, nunca esquecer de que quem me questiona é sempre uma pessoa como eu, um companheiro ou uma companheira de caminhada como humanidade. Sendo assim, discernimento como prática continuada nos leva a enfrentar o conflito não como aniquilamento do outro, mas como diálogo, valorizando a palavra do outro como necessária no processo de vida da comunidade. Uma cultura de comunhão é a da valorização da diversidade como base para a elaboração de projetos em comum e da colaboração para torná-los realidade. Esta é também a cultura do respeito ao outro, do acolhimento, da busca de complementaridades que enriqueçam o que sou e o que tenho, a fim de que, juntos e conscientemente solidários, sejamos mais e melhores do que temos e somos individualmente.

O tema do discernimento tem sido centralidade da ação pastoral do Papa Francisco. Para ele o discernimento é fundamental se se quer seguir em frente na conquista do bem pessoal e social. Sem o discernimento os atos humanos tornam-se casuísticos e fechados. Francisco afirma que não se pode temer a novidade, é preciso ser pessoas capazes de consolar concretamente os aflitos, de ir ao encontro daqueles e daquelas que sofrem, muitas vezes sem termos uma resposta em mente. Mas é justamente a partir destes encontros existenciais que surgem respostas concretas e inovadoras. Para isso, adverte o pontífice, é fundamental cuidar da formação humana pessoal e espiritual, buscando conhecer os próprios limites para, entre outras coisas, identificar as armadilhas ideológicas, principalmente aquelas veiculadas ostensivamente nos meios de comunicação social hegemônicos e nas redes sociais por meio dos aparelhos celulares. “Na vida, não é tudo preto no branco ou branco no preto. Não! Na vida, prevalecem os tons de cinza. Então, é preciso aprender a discernir nesse cinza”.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

Mais do autor

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .