DIÁRIO DE UM ESCRITOR DE PROVÍNCIA(PRÓLOGO XVII)

MMXX ou. Por que ignoramos crianças que perguntam.

Quantas perguntas caberiam a um mesmo sinal de interrogação, melhor: Quantos escritores cabem numa mesma fogueira. (Não tenha medo, amor, as duras execuções que cozinham ou fritam ou grelham ou transformam em churrasco o humano corpo, a mais civilizada promoção do desperdício de carne, logo arrebentam os nervos sob a pele, e você logo se sente queimar como se fosse um outro, e pode mesmo esquecer que depois do carvão vem a cinza e abraçar a ilusão de que voltou à condição de estrela e sol.) (Ela mesma, em nome da pacificação do Estado: chamaram de general, depois chamaram de bruxa, e queimaram, no final pediram perdão porque tinham se enganado quando mandaram acender uma fogueira culposa, e chamaram de santa e querem dizer que a justiça foi feita e o erro reparado, e eram sempre tribunais só de homens constituídos.) A quantos graus entram em combustão as páginas de um livro. Há os que ardem desde o original, respondeu o homem da fornalha, apenas um funcionário público: preferia queimar livros a queimar corpos, não que tivesse nada contra os livros nem muito menos nada a favor dos corpos, vivos ou mortos, já que não é para ter opinião nem simpatia que o Estado agrega gente à sua folha de pagamento, nem ninguém paga ninguém com um objetivo tão tolo, mas o homem da fornalha, que todo dia volta pra casa com o rosto coberto de fuligem, e profissionalmente não se incomoda com a fuligem pela origem da fuligem (é um executor democrático), pensa de modo prático: é difícil lidar com os ossos que sobram, e os livros não têm ossos, além de não costumarem gritar. (Pois não importam os nervos arrebentados: os olhos impressionados do executado, e depois que também os olhos se apagam alguma coisa dentro dos crânios em cozimento, refaz a ilusão da dor.) Mesmo a história de que ardem em brasa desde que saem da cabeça dos autores vem das lendas de que um dia as pessoas tinham pelos livros tanto respeito que se afastavam deles, e se afastavam deles apenas por respeito. (Deve datar daí a obsessão das pessoas que escrevem livros, um, achar que acabam na fogueira sobretudo por causa disso, e, dois, sempre querer cada uma delas uma fogueira só para si.) As fogueiras precisam de um princípio de economia, não que custem caro, é até a solução de todas a mais barata e eficiente e a que mais reduz os elementos condenados à mais mínima matéria, e se poupa espaço, que é coisa preciosa. Quantos assassinos cabem numa cela nova. Quantos assassinos cabem numa única mente. São casos opostos de transbordamentos. E há mais de um modo de construir um monstro de muitos braços, muitas pernas, mil cabeças, e nem tudo se restringe ao amor e ao ódio. Faça, pois, fogueiras diárias em nome da ordem e da popular piedade, e pelos princípios de economia que regem o ofício: o pobre povo ignorante sempre precisa de uma novidade, e um espetáculo tão pio logo cansaria de desgaste: não se pode todo dia ver uma mesma graça fulgurante. Sim, exigiam a cada temporada métodos mais eficientes e impactantes, que imaginariam terríveis cada vez mais, porque não conhecem os princípios científicos que sustentam sua eficiência. Quantas ilusões e delírios cabem nos livros de leis. Já se queimou e enforcou e cortou a cabeça muita gente que isso perguntou ou isso pareceu ter perguntado. Mas nada foi pior que o clamor das mulheres: reclamavam da execução das crianças, sobretudo no acaso de serem suas crias, e as mulheres se apegam. Por quê? O homem da fornalha, apenas um funcionário, não tão bem pago assim, e cuja função, aliás, vinha depois da função do verdugo, tinha que lidar com perguntas o tempo todo. Pensa se não seria conveniente usar capuz que nem o verdugo, mas lembra que adianta pouco: todo só finge não saber quem é o verdugo e depois ele mesmo, bêbado e orgulhoso, espalha à noite o boato do que fez de dia, como se não agisse a mando. O capuz servia pra não ser incomodado durante o trabalho, mas sempre haveria o depois. As crianças, ele explica, costumam perguntar tanto que acabam perguntando o que não pode ser respondido. Não bastava não responder, perguntam por suas vês as mães, e o homem da fornalha sente o peso e o profundo calor da profissão: além de lidar com os ossos e ao longe com os fritos ainda isso. Não costumava haver reclamações no caso dos livros. A pergunta que não pode ser respondida ou gera a resposta que não devia ser dada, o que devia redundar em execução a quem pergunta e a quem responde, ou gera um silêncio que equivale à resposta interditada. Queimar as coisas deu ao pobre homem da fornalha um certo ar de sabedoria, ele pensa, que era melhor ocultar, pois além de perder o emprego podia acabar virando a primeira função do seu substituto. Como se já não fossem perigosas as instituições que reivindicavam, calculem, o direito dos executados, e as mulheres que queriam tomar o lugar dos executores, perguntam por que aquelas funções eram só de homens, mas por enquanto paravam também elas na fogueira. A lei ainda acabava impossível: um dia tempos sem piedade proclamariam um irrestrito direito à vida, e sobre isso o homem da fornalha pensou em escrever uma obra anônima, cujas cópias podia ser que ele mesmo tivesse que destruir, se não tivesse que reduzir os ossos do sujeito a quem a obra fosse falsamente atribuída. Mas um verme invisível roía as tropas do mundo conhecido: como se o povo, que gosta de ver as execuções e precisa disso pra se educar, fosse capaz de entender um mundo em que não houvesse isso e pudesse respeitar suas leis. Melhor restar quieto sobre todas essas coisas, que era um funcionário pago não pra pensar nem muito menos decidir o destino das coisas. Era mais conveniente incinerar apenas os livros, mas não seria impiedoso negar os seus serviços em casos diversos. Melhor não falar sobre o assunto. Melhor não escrever nem mesmo em segredo. Melhor ainda não pensar sobre o assunto. Eram no final apenas ossos.

Airton Uchoa

Escritor, leitor e sobrevivente.

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Airton Uchoa

Escritor, leitor e sobrevivente.