Diário de um escritor de província. Quartos aforismos

XV.

É parte essencial do tratamento médico que o paciente seja informado de que está sendo tratado segundo os critérios da medicina. Se o paciente em questão for menor de idade, criança pequena demais não só para tomar por conta própria as próprias decisões, ou se se tratar de alguém por alguma razão privado da consciência ou do domínio de si, alguém capacitado nesse sentido e responsável pelo paciente em questão deve estar presente para ouvir o discurso científico a partir do qual as decisões serão, ou já foram, tomadas. A decisão pode ser o menos importante, o mais secundário. O paciente sempre deve ter a certeza de que o que diz o médico está correto. O médico sempre deve dar a certeza de que sempre está correto. O grande paciente, humilde, o paciente ideal, o primeiro doente na porta do primeiro curandeiro, e entre si chamavam de demônio o mal do corpo, procura uma cura ou um tratamento meio como quem deseja a resposta de um problema meio como quem deseja esquecer problema e resposta: deseja a paz ilusória de um corpo em pleno funcionamento sobre o qual não é preciso pensar. O verdadeiro domínio da verdade é a absoluta falta de necessidade de pensar o que quer que seja; o que também se alcança com a mais satisfeita e arrogante das ignorâncias, desde que nada doa. O paciente, aliás, confessa que tudo que sabe e tudo que pode dizer é como se sente e como tudo começou. O médico, doutor, sabe que o paciente nada sabe, nem deve pretender saber, e pensa mesmo do próprio paciente: ele tem a ilusão de que sabe o que está sentindo e como tudo começou.

XVI.

Pensa o ser humano da sua pobre condição humana que felizes são os animais irracionais, que não têm a perfeita consciência de que morrem, por mais que as presas fujam dos seus predadores, e por menos que tenham a lembrança de que nesse caso o mais lógico era 8nvejar a planta. Nenhuma criatura mortal, lembram os desagradáveis lógicos da experiência e da razão, de acordo ao menos nisso, deixa de morrer por não saber que vai morrer. O ser humano sabe tão bem que se angustia porque sabe que o que sabe tem um limite: numa visão miseravelmente biológica do que seria a vida e a morte no momento exato desta última já não haveria na criatura aquilo que torna possível saber o que quer que seja. Uns vão dizer: porque foi para outro lugar a centelha, outros dirão que foi porque a centelha se apagou. Os ditos animais irracionais, no fim, não teriam mesmo alguma vantagem?

XVII.

A vida das plantas, tão sábia e serena, é difícil parecer tentadora, mesmo com sua misteriosa e algo sombria vida sexual. Que, por outro lado, é das mais exibidas, pois nem mesmo a nudez natural dos animais expõe tão explicitamente seus órgãos reprodutores. O mistério é meramente linguístico, reside em não atribuirmos nudez às árvores e às plantas em geral.

XVIII.

Os melhores discursos clínicos são os assombrosos e misteriosos. O cidadão esclarecido, quanta ilusão, busca a medicina porque se julga racional, mas o que deseja é um milagre inexplicável para a menor dor de cabeça. Se pudéssemos compreender o que os médicos dizem e pensam e sabem, se não fôssemos mais capazes de supor que não sentem, já não haveria a diferença entre os médicos e os outros seres humanos, e sem a diferença cessava a necessidade. Temos que estar conscientes, inclusive, de que os erros médicos são necessidades médicas, acontecem quando não podia ser de outro jeito. Pois mesmo a autenticação do nascimento e da morte, por mais patentes que sejam, não podem prescindir do parecer médico.

XIX.

Antigas tribos amazônicas decretavam a morte definitiva dos seus antepassados num longo processo de maturação. A morte não se concretiza, definitiva, o espírito não plenamente se libertava antes que se exumassem os ossos bem maturados e sem que se fizesse deles pó, e do pó a base de uma beberância tomada coletivamente em homenagem àqueles mesmos que eram bebidos. Os mais jovens diziam aos mais velhos: um dia beberei do teu cadáver, pois essa era uma forma de reverência. Antigos tribos amazônicas também, no passado, pois a piedade cristã assimilada tornou difícil que se fizesse isso, decretavam a vida a partir de extensos rituais e hábitos espartanos: a mulher grávida paria só, na beira do rio, averiguava os detalhes do recém-nascido com acurácia lenta e silenciosa e tomava sua decisão; se voltasse sozinha à tribo sabiam qual tinha sido a decisão e não a questionavam; se voltasse à tribo com um rebento sabiam que era cedo para comemorar, ainda havia o prazo aproximado de uma semana para que fosse dado o veredito. De gêmeos sempre apenas um era escolhido, o que já se resolvia na beira do rio, assim como o destino dos raros que nasciam com defeitos evidentes; os rebentos que voltavam se não me engano ainda eram submetidos ao exame também silencioso do curandeiro, o pajé, que daria seu parecer sobre a viabilidade da vida, e dizia à mãe o que tinha visto. A criança mesma só era considera nascida depois de amamentada pela primeira vez. — Será que somos hoje carentes para sempre da visão generosa e maternal do seio, do leite que nos desse a sensação humana de comum pertencimento? Teremos disfarçado uma carência tribal num pesadelo erótico?

Airton Uchoa

Escritor, leitor e sobrevivente.