Ainda uma vez mais as crianças e os seus inconvenientes.
Era um lugar-comum, no passado, que o escritor se perguntasse qual a sua responsabilidade diante do mundo e das coisas do mundo e no que podia colaborar o seu trabalho. A resposta à primeira pergunta ainda não é clara e, para a segunda, claramente desesperadora. À época, digo mais ou menos dos anos de 1920, à ebulição que no Brasil preparava a Era Vargas, até meados da década de 1970, quando a ressaca pós-68 se mostrou uma enxurrada, uma parte da crítica e do público fugia desse tipo de autor: eram os chatos que vinham nos incomodar com os problemas que todos nós queríamos esquecer; da mesma forma que uma outra parte, pelo contrário, e eventualmente a partir de um deslumbre que era algum momento cobra o seu preço, exigia o contrário, o compromisso político com as causas do tempo, o que gerava até mesmo uma cobrança sobre escritores que nunca tinham firmado esse compromisso ou que o tinham feito a partir de outras convicções políticas. Os exemplos são vários e as polêmicas não têm fim; agora parece ter ocorrido que certas perguntas saíram de moda, sobretudo às perguntas que careciam de respostas: um público imediatista e algo mimado espera que onde não existam e não possam existir que as respostas sejam criadas e mesmo as perguntas que sejam bastante convenientes. Há um perigoso momento na vida, de pessimismo e desilusão, em que você se pergunta se o estelionatário, o golpista, não surge mesmo é da constante necessidade das pessoas de serem enganadas. E aí você mesmo, mulher ou homem de letras, cheia ou cheio de verdades incontestáveis, acaba se perguntando também: por que minhas belíssimas ilusões são assim tão melhores que as alheias? Isso, claro, se tiver ainda a clarividência de saber que de um jeito ou de outro também se ilude, e que mesmo a consciência disso não é completamente libertadora: acreditar que isso me libertaria só me prenderia uma vez mais. Mas eis que a feiura do mundo exige pelo menos de mim, enquanto escrevo, uma resposta que está bem além do alcance dos meus sentidos, do meu raciocínio, da minha consciência histórica, já tão pobre e humilhada, e ao fim ao meu próprio verbo: antigas forças já conhecidas se aglutinam para garantir que as coisas não mudem, ou, pelo contrário, que voltem a ser ainda um pouco como antes justamente contra os poucos pontos nos quais poucos passos foram dados a tanto custo. O meu pesadelo de 2020, meninos e meninas, e as eleições em parte foram um pouco um retrato disso, é o Brasil de antes de 1989: tínhamos saído de uma ditadura militar que socialmente e politicamente nunca saiu de nós: faltou a catarse de um julgamento, que se perguntasse aos presidentes indiretamente eleitos por seus atos. Os que lutaram pelas diretas e pela Constituinte lutaram com razão, mas cabe a dúvida: o que se venceu e até que ponto, se os ditadores, à exceção de Castelo Branco que morreu num acidente de avião e do Figueiredo que se finou cuspindo ódio ao povo e amor aos cavalos, os demais dirigentes do regime morreram numa paz tão grande que mesmo sua memória permanece posta em pedestais, e os nomes das ruas das cidades brasileiras são uma prova de que esses e outros horrores acabaram naturalizados. Tento imaginar duas coisas: as ruas de Berlim batizadas com o nome de oficiais nazistas e a reação de tanta gente que vai dizer que, mais uma vez, eu estou exagerando (afinal, dizem os defensores de última hora, os mais novos saudosos da “gloriosa” (preciso de aspas porque, hoje, nem todo mundo percebe quando você está sendo irônico), o regime não matou, nem torturou, nem fez sumir tanto assim). E ainda imagino, pois foi esse o exercício que me restou, o de imaginar as coisas, que reclamem de outros exageros e de outras queixas infundadas: Dostoiévski escreveu sob o czarismo e foi levado aos trabalhos forçados depois de achar que seria mesmo executado, Giordano Bruno teve a língua pregada antes da sua execução na fogueira porque a (Santa) Inquisição não queria lhe dar nem ao menos o direito de uma última palavra, Flaubert e Baudelaire enfrentaram a censura moral e jurídica (movida, aliás, pelo mesmo promotor público), Oscar Wilde acabou preso e desgraçado porque amou e disso ainda tirou um livro que pesa feito uma pedra, Reinaldo Arenas publicava clandestinamente fora de Cuba mas tanto em Cuba quanto fora dela se sentia prisioneiro (quando pôde sair da ilha e publicar legalmente o público e a crítica não quiseram saber dele: ele tinha perdido a aura de escritor proibido), Trotsky além de assassinado teve a própria memória oficialmente apagada por Stálin (que também tem uma obra escrita, mas escreve como se torturasse não sei se a si ou ao leitor), Pasternak e Soljenítsin são novos capítulos dessa mesma história, Graciliano Ramos acabou preso pelo Getúlio, que, se não me engano, também mandou prender o Monteiro Lobato, o Jorge Amado teve que se exilar no leste europeu também por perseguição política e, lá, se decepciona com o regime soviético (diz Zélia Gattai sobre o que constatou do período: “O comunismo é perfeito; os homens é que não prestam”), a ditadura militar brasileira, dentre suas inúmeras censuras, chegou a atingir até uma obra do recém-falecido Rubem Fonseca, que chegara a trabalhar no IPES em 1963 e preferiu depois não falar mais sobre o assunto (certo: no caso dele a censura de um livro podia até, conjecturo, limpar sua barra diante da história e servir mesmo de publicidade estratégica) e mesmo em Portugal, já em fins do século XX, proíbem burocraticamente que Saramago participe de um concurso importante por causa da temática do livro que submeteria ao certame. Mas antes deles quantos não foram censurados ou condenados e executados bem antes, por razões bem mais radicais, censurados e executados não porque leram livros proibidos ou escreveram o que não deviam, mas condenados justamente a não se expressar nem ter acesso à expressão alheia? É o que dá esse excesso de liberdade, dirá meu fictício detrator, que se perca tempo com lamentações: um escritor russo do século XIX estaria ocupado com seus vícios mundanos e com uma obra monumental numa tal intensidade que era de se perguntar de onde ele tirou tanta vida para tanta coisa. E nisso talvez tenha razão o seu resmungo oposto ao meu. Até que ponto ainda valeria a pena permanecer diplomáticos, eu perguntaria ao fim, mas nem sei bem se a diplomacia é o vício dessa ocasião. Nem cheguei a uma melhor conclusão para o assunto. Então é esse mais um amontoado de murmúrios e queixas que nem fazem direito um protesto político nem constroem uma obra que fique de pé e cubra folha a folha todo um continente? Não digo que sim, nem digo que não. E o que digo então? Exatamente isso: . .