DIÁRIO DE UM ESCRITOR DE PROVÍNCIA. PRÓLOGO (XVI)

(Parêntesis político urgente. João Paulo Cuenca, sua paráfrase e a reação dos pastores da Igreja Universal do Reino de Deus.)

Não ocorreria a ninguém, no passado, que não tivesse a vocação do santo desejar a fama do santo (tenhamos fé nas antigas narrativas). Os tempos – o corretor ortográfico quase muda a palavra tempos para templos – parece que mudaram um pouco, ou como muito acontece: deram a ilusão de que mudaram (em medida semelhante também dão a ilusão de que não mudaram: tuas decepções dependem das tuas ilusões). Reza a lenda, e a narração de um documentário, que um dos temas de debate mais comuns nas conversas privadas entre João Paulo II e a madre Teresa de Calcutá era a preocupação da religiosa quanto à sua canonização póstuma. Se está correta a lenda e a informação do documentário, não entrarei no mérito da questão (o que pode ser perigoso), mas insisto que o fenômeno pode ser que esteja certo. Acontece de as pessoas desejarem a fama do sofrimento sem desejar o sofrimento ou sem imaginar do que se trata. (Não sei se o exemplo da madre Teresa de Calcutá era o mais adequado, mas se compreendeu o que eu quis dizer (espero que sim (e minha preocupação com isso foi grande ao ponto de dentro de parêntesis eu ter ainda mais dois, com os quais, agora, se fecham três))). O poeta do poema do BertoltBrecht, que diante do auto-de-fé nazista reclama que seus livros não foram levados à fogueira e os traz ele próprio é um belo exemplo disso: estivessem queimando em vez dos livros os autores era pouco provável que o poeta se oferecesse ao sacrifício em solidariedade e comunhão com seus irmãos de armas.

O desejo dessa fama, lógico, é algo quase adolescente de tão longe da realidade presente e tão fora do atual contexto histórico. Não preciso me retratar diante das igreja, e me contentar com o boato de um sussurro, como Galileu, por causa de uma realidade astronômica óbvia; não corro o risco de ter a língua presa a prego porque não desejam que eu me pronuncie antes da minha execução, como aconteceu a Giordano Bruno. Quando eu for irônico, mesmo contra os mais poderosos, tanto vão compreender exatamente o que eu quis dizer com a minha elegante figura de linguagem quanto mesmo os criticados, no máximo, farão réplicas às minhas acusações, isso se não reconhecerem seus erros e até me agradecerem pela correção. Afinal, num mundo consensualmente esférico e prudente, onde todos cuidam uns dos outros e seguem as medidas necessárias para que um mal tão obscurantista quanto um vírus logo seja derrotado, e os líderes mundiais, em comum acordo, deixam de lado toda e qualquer disputa política, porque o que importa é o bem-estar da população, ninguém perseguiria uma fala de duas linhas numa rede social.

(Para os que não entenderam e ou acharam que eu estava maluco ou até que o mundo era assim mesmo, aviso que o parágrafo anterior era uma ironia.)

Pois ocorreu de o escritor Joao6 Paulo Cuenca cometer um erro, não de raciocínio, mas de cálculo: sabia que a democracia no Brasil era uma coisa frágil e cada vez mais fragilizada, mas não devia imaginar que essa fragilidade fosse tão grave e as forças que ainda mais a fragilizam tantas e tão insistentes. João Paulo Cuenca lembrou a célebre frase de Jean Meslier, segundo a qual “O homem só será livre quando o último rei for enforcado com as tripas do último sacerdote”. O próprio Meslier, defensor em segredo do ateísmo e do livre pensamento, escreveu essa frase numa espécie de manifesto-testamento que encontraram dentre os seus objetos pessoais após a sua morte. Meslier mesmo era padre, e isso talvez explique a multiplicação da sua raiva. João Paulo Cuenca, voltando ao que eu dizia, parafraseou Meslier, de um modo que a sentença se adequasse ao tempo e à geografia. Disse João Paulo Cuenca: “O brasileiro só será livre quando o último Bolsonaro for enforcado nas tripas do último pastor da Igreja Universal”.

É difícil dizer até que ponto Meslier estava sendo figurativo na sua frase original, ainda que se perceba a realidade do seu ódio. A frase também não dá propriamente uma ordem, mas mesmo numa lógica temporal fala de uma relação de causa e consequência (na qual pode ser que se oculte, na modulação temporal, as esperanças do padre Meslier de que se realize sua utopia às custas de um festim sangrento, que se justificaria pela necessidade de que acabassem as demais opressões, conforme o raciocínio): a liberdade do homem, para Meslier, depende de que não haja mais nem reis nem sacerdotes; a Meslier não parece que reis e sacerdotes deixarão de existir espontaneamente, e talvez também queira ele insinuar que a conquista da liberdade do homem exige que o homem lute. Se o homem deseja ou não a liberdade também e se estaria disposto a lutar por ela, ainda dentro do raciocínio de Meslier, é outra questão. A máxima da conta de uma parte específica da questão, de acordo com o padre.

João Paulo Cuenca, dever-se-ia perceber, e de modo tão incontestável que ninguém poderia nem sequer fingir que não tinha percebido – e compreendido –, não deseja um banquete de carótidas, ou mais especificamente dos intestinos grossos com que prepararia cordas de enforcamento e garroteamento, de acordo com a ocasião, nem ordena ou espera que seus leitores formem um bando sedento capaz de derramar sangue feito groselha (como diria Nelson Rodrigues). João Paulo Cuenca não estava promovendo que uma massa enfurecida e endurecida (vou obedecer um pouco o corretor e oferecer ao leitor duas (suas) opções quando surgirem.

A extrema direita conservadora aliou-se politicamente a setores religiosos intransigentes e sequiosos também por cadeiras no executivo e no legislativo, para se sustentar politicamente num discurso de pautas morais radicais que mantém satisfeita a sua base de apoiadores, não importa o quão caóticos permaneçam os setores da gestão que realmente importam, nem muito menos que se prejudique o princípio de laicidade do Estado (sem o qual a própria liberdade de religião corre sério risco (mas não parece que, para esse público, a liberdade geral de religiões importe mais que a imposição generalizada se não da sua própria religião pelo menos do seu modus vivendi e visão de mundo)). Jair Messias Bolsonaro, líder máximo do executivo, muitas vezes parece mais preocupado em agradar aos seus aliados mais próximos e mais radicais, de acordo com a própria conveniência, do que propriamente em governar. O constante clima de uma campanha sempre quase sempre voltada para um público específico faz com que o jogo do poder pelo poder se torne ainda mais perigoso para a democracia. Enquanto Bolsonaro e aqueles que reproduzem seu discurso e os grupos religiosos que os apoiem detiverem o amplo puder de que não parecem dispostos a abrir mão, a laicidade do Estado, a democracia e mesmo a liberdade de expressão correm um risco permanente.

O parágrafo acima traduz o que quis dizer João PauloCuenca com a frase: “O brasileiro só será livre quando o último Bolsonaro for enforcado nas tripas do último pastor da Igreja Universal”.

A frase foi postada no perfil do autor numa rede social.

Em diferentes cidades do Brasil – em centenas de ações que a Igreja Universal do Reino de Deus nega terem sido coordenadas – pastores da supracitada IURD que disseram se sentir ofendidos e ameaçados pela paráfrase de João Paulo Cuenca entraram com representações contra o escritor, que não devia imaginar, inclusive, que seu perfil era tão acompanhado por religiosos. Cuenca também perdeu a coluna quinzenal que assinava no Deutsche Welle, o que causou certo espanto devido à tradição liberal da empresa alemã.

João Paulo Cuenca é um dos melhores e mais importantes escritores brasileiros em atividade, sem dúvida. E por mais que esteja errada e seja injusta e desonesta a acusação que se faz a ele, replicada uma centena de vezes, gostaria que estivesse correta, e que pudesse ser depurada, uma parte do raciocínio torto dos mais de cem pastores (ou daquele que coordenou o seu discurso, caso não se trate de uma caso de geração espontânea de denúncias): que a postagem de um escritor brasileiro de talento tivesse a penetração, o alcance e a influência e até mesmo o perigo que lhe atribuem esses senhores ofendidos.

O brasileiro só será livre quando o último Bolsonaro for enforcado nas tripas do último pastor da Igreja Universal” aparece entre aspas porque é uma frase de João Paulo Cuenca. A frase original na qual se inspira aparece entre aspas porque é de Jean Meslier.

O escritor – sem a possibilidade do escândalo publicitário que se gerasse ao redor de um livro que escrevesse –, como os santos que nunca conheceremos, pode estar sujeito à perseguição sem que consiga depois uma fama heroica (sendo que, autenticamente, nunca quis ser herói, apenas dizer o que sabe, o que vê e o que pensa, e para ele é bem difícil não falar, por maiores que sejam os riscos). Os pastores das igrejas neopentecostais têm vários horários em vários canais de televisão aberta. Não parecem – é a minha impressão – preocupados com as consequências que suas palavras podem ter nem digo sobre eles mesmos, mas sobre o seu público. Quando um pastor é minimamente questionado por algo que disse, acusa a toda a mídia de perseguição religiosa. Certa vez certo bispo evangélico se vangloriou da maioria numérica dos fiéis das igrejas neopentecostais no Brasil (deve ter se enganado, porque os números não batiam com o censo). Quando criticados a maioria esmagadora vira uma minoria duramente perseguida.

Há também uma boa quantidade de canais católicos.Difícil passar pelos canais da televisão aberta sem esbarrar em religião. Devem mesmo precisar de muitos canais de televisão para se defenderem dos perseguidores. Parece que até o presidente falou de perseguição aos cristãos.

Acima o que está dito é uma ironia. Mais acima opiniões pessoais a partir de coisas que vi publicadas na imprensa. A seguir uma dedução: dificilmente escritores, filósofos, sociólogos, educadores e artista terão um dia um canal de televisão, um só, que lhes dê voz e que os defenda.

Que fique claro: seria ingênuo esperar que, tendo notícia de uma nota desta natureza, um fiel da Igreja não se sentisse ofendido. O ideal, óbvio, seria que cada um, antes de se revoltar contra as críticas que sofre a instituição ou grupo de que participa, analisasse antes se na crítica não haveria alguma razão ou fundo de verdade, caso contrário, sua revolta se encontraria justificada e a réplica seria mais que compreensível. As coisas não são bem assim. Não é possível debater ou mesmo expressar opinião sobre fenômenos sociais sem que se ofendam ou se sintam ofendidos os grupos comentados. A reação à crítica é que deve ser proporcional à crítica, e deve ser feita de modo honesto.

Pessoas de mau gosto e que enxergam mal podem pensar de mim que sou feio. Leitores superficiais e apressados e críticos pouco exigentes podem não gostar dos meus textos. Posso discordar dessas opiniões ou até superiormente retribuir com silêncio. O que não posso é exigir, nessa situação, que se calem, ou cobrar por danos morais. Se isso fizesse estaria errado. Se isso fizesse a justiça me desse razão estariam errados a justiça e eu, e a democracia poderia ser questiona da no país em que isso ocorresse.

Se por causa do que escrevo ou mesmo pela minha aparência física, pelo meu rosto pardo, pela minha origem humilde, se por causa de uma opinião honesta e bem medida pedem o meu silêncio, estão errados os meus detratores. Se a justiça lhes der ouvidos e razão, um erro ocorreu, e está em perigo a democracia e o seu discurso.

Os elogios que teci a mim mesmo parágrafos acima foram uma licença para que a situação ficasse clara, e não uma expressão deslavada de vaidade e orgulho, afinal de contas, sou humilde.

E enfim…

O documentário sobre a madre Teresa de Calcutá se intitula Hell’s Angel, e foi dirigido por Christopher Hitchens e Tariq Ali.

A frase de Meslier é mais de uma vez atribuída erroneamente a Voltaire e a Diderot.

O autor desse artigo de opinião não acha que uma pessoa que se torne fiel de uma igreja neopentecostal se torne uma pessoa má por causa disso. Nem está dizendo que a pessoa em questão vá necessariamente se tornar má, mas que a causa seja outra. Nem que ela não se tornou má porque antes já era má. O mesmo se aplica a todas as confissões religiosas que não impliquem em sacrifício humano.

Um fato. A terra é esférica e gira no seu próprio eixo e ao redor do sol, num sistema solar que se encontra num ponto da chamada Via Láctea, que por sua vez se encontra em algum ponto num universo que pode ser que não tenha propriamente um centro. Peço perdão por encerrar o artigo com um parágrafo assim tão ofensivo. Assim como me desculpo se em alguma passagem eu não tiver sido suficientemente claro.

Airton Uchoa

Escritor, leitor e sobrevivente.

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