Por que abandonamos os críticos do passado. A sombra de Sérgio Milliet: parte dois.
Se não me engano foi num texto arguto de Kierkegaard que li a mais perfeita descrição daquele que verdadeiramente crê: as pessoas passam por ele na rua e não o percebem; seria uma versão mais branda dos antigos santos, que, mais que simplesmente ignorados, abraçavam a volúpia de se tornarem párias, e curtiam a fome e a privação somadas à tortura íntima de que não podiam se orgulhar do que tinham conseguido, pois o orgulho tornaria vão todo o esforço (a vaidade em si mesma encontra sua paga) e disso o diabo, tranquilo e paciente na sua tocaia, conseguia sua pequena vitória sobre a pobre humanidade. Experientes leitores e escritores devem se encontrar na mesma condição de discrição e humildade, e estarão nela mergulhados, quase presos, por mais aguilhoados que sejam pela angústia de comunicação. Pois bem. A existência e proximidade dessa comunidade invisível me deixou feliz quando tive dela uma breve notícia. Segundo pesquisa (por favor, não me cobrem exatidões extremas), o perfil dos leitores da cidade de Fortaleza era o dos jovens adultos da periferia. O primeiro contentamento foi que isso, por um lado, contradizia a declaração do sr. Paulo Guedes, segundo o qual a leitura era um hábito quase que exclusivo das classes mais abastadas, e em segundo lugar porque desmascarava suas verdadeiras intenções ao, simbolicamente, querer impor taxas à já difícil circulação de livros no Brasil: o Ministro da Economia, afamado, ainda não compreendi sinceramente por quê, como gênio absoluto do liberalismo, pareceu com essa atitude querer punir especificamente ao público leitor independente de sua classe social e apenas porque lê; poderia dizer que sua intenção era punir em específico os leitores pobres, mas o sr. Paulo Guedes tanto parece ignorante do que ocorre nas periferias e nos rincões mais isolados do país como não seria capaz de acreditar que a cultura é não apenas uma mola mestra possível nesses ambientes como que é ali que nascem algumas das expressões mais legítimas e viscerais da própria cultura. Sim, a notícia me deixou feliz e me convenceu; o levantamento pareceu um pouco mais sério do que aqueloutro, mais ou menos recente, que pretendia derivar geneticamente o cearense de antigas tribos guerreiras escandinavas, além de ser mais relevante, consequente e promissora. Feliz e brevemente surpreso: logo percebi que nesses dados não havia nada de verdadeiramente surpreendente, mas persistia o caráter renovador da boa nova.
Há uma série de fatores que a pesquisa e sua divulgação não esclarecem, mas que podem ser deixados um pouco de lado. Teorizarei de forma livre, e haverá talvez algo de delírio na minha reflexão. Delírio não digo, mas preciso estabelecer alguns parâmetros antes de continuar: não tenho todos os elementos para traçar com segurança o perfil completo do leitor da periferia – embora seja eu mesmo um membro dessa imensa e diluída tribo de invisíveis; corro o risco, em alguns pontos, de traçar um perfil que pareça um pouco autobiográfico, mas quero pensar que os mil acidentes que, contra diversas dificuldades, sobretudo materiais, me tornaram um leitor não constituem um fato isolado, e a pesquisa sinaliza nesse sentido. Mas o que quero dizer é que me falta um dado que pode parecer importante para a compreensão do fenômeno, apesar de ser de menor importância para aquilo sobre que pretendo discorrer: o que predominantemente lê o leitor da periferia.
Não tenho os dados precisos, e nem sei se a pesquisa se aventurou nessas condições específicas, mas parto do pressuposto de que, se a maioria ou a parte mais expressiva dos leitores se encontra na periferia, logo, a própria periferia pode ser um microcosmos que represente toda a gama geral dos leitores da capital: significa que há leitores compulsivos de autoajuda e esoterismo, devoradores de mais-vendidos de listas de jornal, curiosos da nossa tradição literária e dos clássicos universais e mesmo descobridores de novos talentos. Reconheço que minha reflexão não vai cobrir os primeiros leitores, consumidores de leitura mais popular e da moda (com a ressalva de que, a princípio, nas condições em que se encontra a cultura leitora no Brasil, todo leitor, e o da periferia sobretudo, é um herói e um resistente). A maior razão para isso é que pouco conheço desse tipo de leitura e literatura (consultei muita vez, na juventude por curiosidade e mais maduro para me certificar de que não falava a partir de meros preconceitos); a segunda é que – pelo que pude perceber – boa parte desse material, mesmo quando se reveste de uma capa de inovação, tende a defender preconceitos arraigados e sutis e determinados cultos sociais de forma até caricata: por mais que evoluam as formas, para se adaptar aos novos tempos, e que mudem mesmo os atores principais, tais obras não fogem de uma série de cláusulas pétreas já bastante conhecidas, que mesmo de forma velada (em geral não tanto) defendem certa bajulação aos mais abastados ou mesmo a realeza, quando não substituem esses termos, como se nisso comentassem o progresso, pela ascensão do trabalhador liberal que venceu pelo próprio esforço – e pela própria fé – num mundo em que o fracasso é culpa somente de quem fracassa e o sucesso mérito inerente daquele que na ida acaba bem sucedido.
Eu quero falar, meninos e meninas, no que chamam de alta literatura, talvez também com certo preconceito, e até mesmo daqueles livros que a crítica e os professores de literatura racharam como difíceis. Pensemos em Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto, em Proust e James Joyce, em Faulkner e Virginia Woolf, em Clarice Lispector e numa gama tão variada de escritores que desafiam o cérebro e a familiaridade linguística. Pensemos também em autores que são de uma clareza cristalina, mas que dizem de maneira até rude – mas elegante, cuidem – coisas bem difíceis de ouvir: Graciliano Ramos e Lima Barreto, Sartre e Camus e Simone de Beauvoir, Gunter Grass e Imre Kértsz, naqueles que oferecem conclusões narrativas chocantes ou insatisfatórias, que não perdoam o mundo em que se inspiraram, ou que são ainda mais ousados e concluem suas narrativas sem oferecer uma conclusão fechada (máximo pesadelo de Hollywood, os roteiros de finais abertos).
O que aproximaria especificamente os leitores de periferia desses escritores e desses livros? Em primeiro lugar, a percepção de que ler é se apropriar de um bem, e também de que, como diria Calvino sobre os clássicos, ler é melhor do que não ler. Em segundo lugar, porque ficou cada vez mais fácil para o povo periférico e proletário se identificar, mesmo inconscientemente, com os protagonistas das narrativas modernas. Ao longo dos séculos XIX e XX, começando com um perfil elogioso da burguesia nascente que já no romantismo foi tomando feições sombrias, a chamada alta literatura foi percebendo que já não fazia sentido construir uma obra que falasse exclusivamente de uma nobreza que ia ficando cada vez mais caricata e rarefeita. A burguesia – que aprendeu a ironizar a classe social de que reivindicava os despojos, rápido se tornou o alvo principal do tipo de ironia que ajudou a construir. A luta dos mais pobres começou a se tornar visível para além da visão sentimental e paternalista de um Dickens, porque, como o próprio Dickens, muitos escritores tinham uma origem mais ou menos plebeia, como se dizia antigamente, mas de um modo que ainda parecia mais adequado para adotar como identificação, pois a verdade é que eram já meio proletários ou pequenos burgueses muito próximos da pobreza, quando não eram mesmo francamente proletários.
Os intelectuais da avenida Nievski, em São Petersburgo, a base da literatura russa, praticamente excluindo apenas Tolstói, o nobre anarquista, é um dos índices mais fortes dessa tendência. Viviam numa Rússia, aliás, que emancipava os servos, mas ainda não sabia lidar com o capitalismo como prática: o mercantilismo e o capitalismo, no horizonte a oeste, era a grande esperança e o grande medo, e a pobre juventude alfabetizada que derivava do baixo funcionalismo público seriam o vértice máximo dessa angústia e dessa ânsia.
O que faziam as classes mais altas diante disso, os herdeiros da aristocracia derrotada – muita vez herdeiros meramente ideológicos e não tão ricos assim – e os neófilos de uma pretensa nova aristocracia intelectual que pretendia justificar pelo espírito o poder financeiros das oligarquias agrário-urbanas (penso no caso específico da São Paulo modernista) se dividiam. Apesar das imensas inovações formais e temáticas, muito das vanguardas heroicas e históricas do início do século XX abraçaram algum tipo de conservadorismo ou mesmo de fascismo e proto-fascismo. Ezra Pound, franco admirador e seguidor de Mussolini, acusado de alta traição pelo governo americano e condenado à prisão, e T. S. Eliot, conservador religioso de um incompreensível e imperdoável antissemitismo, faziam uma imensa ode à tradição ocidental da literatura a partir de uma poética renovada que não rivalizava com o cânone, mas o expandia, Marinetti transformou seu futurismo numa expressão quase histriônica da sua índole de aproveitador, o próprio Fernando Pessoa, por mais que tenha chocado grupos conservadores católicos com as odes mais furiosas de Álvaro de Campos, em muito identificava sua obra como um elogio ao colonialismo português (Mensagem). E os exemplos não param por aí. É claro, também se deve observar a simpatia dos surrealistas (não compartilhada por Dalì) com o partido comunista, o que reverberou sobre o núcleo duro dos modernistas paulistanos, e que na Rússia Maiakóvski dava uma leitura bem distinta do futurismo.
Mas para nós talvez não valha uma análise tão geral dos fatos históricos de todo o mundo, ainda que sirvam de princípio. Localmente, as consequências do modernismo de 22 em muito explicam a evolução da tendência que pretendo descrever: o fortalecimento da relação da periferia com a leitura e com a escrita.
Nesse ponto, meninos e meninas, tudo começa quando o paulista descobre o café. E eu mesmo descubro a necessidade de um capítulo especial. O próximo.