Por que abandonamos os críticos do passado. A sombra de Sérgio Milliet: parte um.
Numa célebre passagem dos Manuscritos econômico-filosóficos Karl Marx estabelece de modo ao mesmo tempo simples e diverso, sortido, a relação psicológica entre o dinheiro e aqueles que o possuem em quantidades volumosas, ou seja, os ricos. O dinheiro, ele afirma, de certo modo compra mesmo quando não é diretamente gasto, apenas pelo fato de existir e transparecer nos seus possuidores, e faz que os mesmos assemelhem, eventualmente com vantagens, as qualidades que não possuem, isso em decorrência meramente da posse do dinheiro, do capital, por mais que seus detentores, inebriados, acabem invertendo o raciocínio, acreditando que as qualidades que lhes empresta a riqueza são inerentes a eles, essenciais, e até mesmo que a posse da riqueza é sempre necessariamente meritória e consequência dessas características maravilhosas que distinguem os seres humanos entre si. Assim, dentre outras coisas, ser abonado pela fortuna material faria, por exemplo, que o estulto, o tolo, o néscio, o parvo, simplório, idiota, imbecil, ignorante e tipo, que em outra ocasião ou estado da sorte jamais seria ouvido nem levado a sério, passa a ser levado em consideração pelo que diz, pois o dinheiro lhe dá a credibilidade que a cultura não respalda, mesmo que não seja desembolsado diretamente: seus bajuladores diretos e os seus dependentes, depois os restantes setores do mundo, se não chegarem ao cúmulo de elogiar uma genialidade que não existe, como se ela emanasse e exalasse da tolice, ao menos não impõem ao ignorante endinheirado o reflexo da própria ignorância. O mundo precisa poupar os poderosos dos inconvenientes da realidade, que podem chegar mesmo ao cúmulo da mais perfeita blindagem. Dizem que o maior privilégio e a maior humilhação para os grandes pintores do passado era a dependência das casas reais, quando não das grandes famílias burguesas; sua independência financeira estava garantida na medida mesma em que se perdia sua liberdade criativa. Como se vingavam? Pintando seus modelos do jeito que eram, pois não era raro que fossem tão feios, no caso das famílias reais talvez pelo excesso de casamentos consanguíneos, que o exercício da caricatura era bem difícil. Mas como o pintor podia fazer isso sem correr o risco de perder o posto, a carreira e a cabeça? Simples: seus modelos eram tão vaidosos que eram incapazes de perceber o quanto eram feios.
Isso contradiz, pelo menos na superfície, a visão de Nietzsche sobre o aristocrata ideal, aquele que vê e prefere as coisas como elas são, que é dotado de amor fati. Mais ou menos o tipo humano desenhado nos Cantos de Ezra Pound: sua visão das coisas é solene e épica, fatual e simples, direta, e seu senso de humor é quase grosseiro, como o de quem enfrentasse a tragédia mais com a força dos músculos do que com o empenho da razão, seu estilo mesmo não necessita de torneios porque o poeta não deseja macular as coisas como são. Mas como as coisas são quando não se é um beneficiado do mundo, aquele que agrega valores a partir daquilo que é, mas na verdade mais a partir de onde vem, da sua origem; como fica o ponto de vista daquele que não se encontra nesse cume inacessível? Virginia Woolf, numa grande reunião social numa cena do Orlando, na presença da nobreza e da realeza, diz: em ambientes como esse não é de bom tom o dito de espírito, que tira as coisas do lugar, ironiza e faz sarcasmo. Os grandes da sociedade lá estão, dizendo em linguagem perfeita dos seus planos de praticamente apenas se deslocar entre uma propriedade e outra de acordo com os rigores da estação. A construção do Iluminismo e do Romantismo, no seu lado mais demoníaco, que em certos pontos deu origem a essa grande ilusão chamada Realismo, reabilitou a ironia: ela deixa de estar atrelada à poesia de estação mais popular e à comédia, é absorvida pelo drama moderno e pela aberração tipológica chamada romance. Mas antes da construção dos grandes movimentos culturais que deram origem às tendências e correntes artísticas que conhecemos ocorre uma gradual e dolorosa transmissão da simbologia do poder; a alta nobreza e o clero terão que dividir cada vez mais espaço com uma classe burguesa cujo poder aumenta na medida em que as relações comerciais vão ficando menos fossilizadas. A posse de riquezas e, sobretudo, sua capacidade de acumulação serão o critério de valor que passará a se impor. Em certo sentido poderá se confundir com a nobreza por mérito e ação: o burguês é aquele que movimentou e acumulou fortuna de uma forma que causaria arrepios aos nobres da economia feudal, já que essa movimentação possibilitava uma mobilidade social impossível numa sociedade que exercia rígido controle sobre o valor e o lucro.
O ressentimento é um fatores psicológicos mais marcantes dessa transição, aliás, a expressão do ressentimento é um fator inevitável das transições sociais, mas parece ocorrer de uma forma um pouco mais complexa, em fluxos constantes e multidirecionais. Não é necessariamente o escravo e o pobre assalariado, a base massacrada da pirâmide, não são necessariamente esses os praguejadores que clamarão contra o destino e abraçarão o pessimismo como única forma de sabedoria e algum tipo de conservadorismo como única forma de política. Os primeiros clamores (a decadência elegante) vem dos príncipes destronados e dos nobres falidos. O Eclesiastes mostra bem o ódio do vencedor pela vitória quando o derrotado é ele, o que de um modo indireto também vai aparecer em Jó; o Eclesiastes consolida a crença de que estamos condenados a ciclos perpétuos que nos dão a ilusão da permanente mudança quando a mudança não passa da renovação do mesmo; Jó (se a fé tem um pai em Abraão tem em Jó um filho), mais radical que qualquer grego, constrói um princípio de destino que não depende absolutamente de lógica: enquanto Édipo é culpado pela morte do pai mesmo sem saber que aquele era seu pai, Jó paga sem ter feito nada e ele mesmo defende a ira de Deus: alguém tem que ser culpado.
Que fazem com isso os pessimistas e os conservadores, os filhos dos destinados e falidos? São vítima da mudança inexorável das coisas, e passam a precisar acreditar que essencialmente nada muda, e paradoxalmente que um determinado modo de vida deve ser preservado por causa dos seus valores. Esse pobre aristocrata, em Nietzsche o ser humano incrível que não se engana, não se deixa enganar e que nunca deseja ser enganado, parecia incapaz de ressentimento, porque afinalas coisas são como são, pois não podem ser de outro modo. Essa expressão da sua falsa independência intelectual acaba se tornando a expressão do seu ressentimento e o ponto cego da sua visão de mundo, tanto mais interessada quanto mais dissimulava interesse.
Os representantes do proletariado passarão a reclamar da burguesia em termos que dão conta da exploração do trabalho e da mais-valia; os que se identificam com a aristocracia decadente se perguntarão que tempos são esses que ostentam criaturas de tanto mau gosto e senso prático. E a verdadeira origem tanto de um crítico quanto do outro curiosamente será a própria classe média nascente. De um jeito ou de outro são os filhos de Rousseau e os herdeiros do seu rancor seminal e sutil, por mais que reivindiquem o espólio de Voltaire e até pensem mais ou menos como ele: predominantemente sentem como Rousseau. – A posse da fortuna é um princípio democrático na superfície: o dinheiro, em si, não tem nenhum tipo de preconceitos e eventualmente abre portas que não se abririam de nenhum outro modo. Daí a facilidade de confusão por que passam aqueles que o possuem: o dinheiro não me dá qualidades, sou levado a acreditar, são minhas qualidades que me fazem merecedor, inclusive, do dinheiro, e que o atraem.
Aqueles que se dedicavam às letras já eram predominantemente plebeus, por mais que eventualmente um nobre ou mesmo um rei se aventurasse em pensamentos e canções. Quem eram a partir do momento em que o dinheiro se tornava a mola confessa do mundo? Uma parte disforme do proletariado, por mais que se destacassem da multidão e conseguissem sua dose romântica de celebridade. E por menos que consiga se identificar com uma classe social verdadeira: é expulso de todas e se afasta de todas. Mas permanece como uma espécie de informante e de antena (é num sentido bem diferente que os escritores são realistas). Já não é o destino dos reis e dos reinados o ponto nevrálgico da história; as crises que animaram e deram humanidade ao teatro de Shakespeare já foram superadas. Quem é agora o herói dos novos tempos, o símbolo da história? O poeta romântico o identificou com o espelho; o realista o corrigiu o quanto pôde, mas ainda se tratava do indivíduo solitário que se volta contra um mundo sem essência. A crise se desenrolava mais rápido do que se imaginava; a burguesia precisava de uma mente que construísse sua sensibilidade; seus construtores logo perceberam que eram arquitetos da farsa e passaram a se dedicar à ruína.
O verdadeiro Fausto nunca chamaria Mefistófeles em nome de mais conhecer; é certo que deseja a experiência humana como quem desejasse uma droga que a tudo intensificasse, mas o seu objetivo primeiro, ironicamente e paradoxalmente sofisticado e inteligente, é esquecer o que sabe para sentir o mundo sem o intermédio de nada: ele deseja esquecer, e depois disso vai, trágico, numa ilusão de um progresso que deseja compartilhar, pois tem algo de Prometeu. Em algum ponto de si sabe que não era ao diabo que deveria recorrer, mas também sabe que Deus não poderia ajudá-lo numa obra radical de transformação das coisas.
Um Fausto mais radical desejaria um mais radical esquecimento: deseja a fama e o poder e a fortuna; que a fortuna não mais lhe dê uma aparência de sabedoria que não tem. Deseja desfilar sua ignorância como um corpo nu e sincero; a fortuna o tornará um belo animal que se basta. Já não precisará de intelectuais que façam a mediação confortável entre ele e a realidade: é impossível que um pensador minimamente honesto seja sempre tão conveniente. O grito é mais popular do que a razão; e ninguém que tenha poder deseja a proximidade de alguém que lembre os inconvenientes limites da realidade. Terão nascido mesmo assim os atuais donos do mundo?