As mais duras ilusões. Os amores difíceis.
Aquele que tem a certeza de saber a verdade se ilude mesmo que conheça a verdade correta. O que define uma pessoa é a ilusão à qual se agarra; as inconveniências das suas ilusões darão conta da sua força de vontade, e do quanto é socialmente desagradável e inoportuno. Aquele que sabe que parte daquilo em que acredita é necessariamente ilusão, mas a fronteira jamais poderá ser completamente estabelecida, fica preso entre a impotência e a necessidade de agir. O que pode salvar? Não tanto a verdade ou uma ideia de verdade, mas as melhores ilusões, as que mais nos revelarem, as que espelham nossa maravilhosa monstruosidade, que tão poucos conseguem encarar.
A ilusão tem por reverso uma triste tragédia, uma farsa, um profundo patético. Ninguém se livra de todas as ilusões; as que vão embora são substituídas por outras. Haverá mesmo quem mude de ilusões conforme as modas do momento. O que são as religiões prosélitas, democráticas e salvadoras, se não uma alternativa mais fácil aos antigos cultos autocráticos nacionais? O que é a ciência se não o credo sem originalidade de quem se decepcionou com as religiões? O que são o cinismo e o ceticismo se não tentativas de manter a mente minimamente saudável no meio de tantas certezas furiosas? É certo, o cético só é cético perfeitamente se for cético em relação ao próprio ceticismo. O cínico, se for cínico apenas em relação aos outros, não passa de um pobre solitário que teme a restante comunidade humana
O inventador de histórias e simulador de sentimentos parte do que viu, do que viveu e do que imaginou daquilo que pensamos que é real, e com isso faz o que chamamos de ficção. Logo, teria que estar a salvo de todas as fogueiras. A ficção deveria ser o espaço do delírio mais louco, já que não passa de invenção, palavra inventada e papel barato que se pinta com uma tinta de jornal que suja os dedos de quem lê. O autor, diante de qualquer tribunal equivocado, poderia dizer que apenas inventou estranhos países em que o mal vence o bem e é coroado, as crianças são batizadas com o nome dos traidores, as cortesãs mais degeneradas chegam a princesas e mandam que os soldados sodomizem suas castas concorrentes sem que os deuses se ofendam e sem que as fadas intervenham, em que o trabalhador morre na miséria sem o mínimo reconhecimento do seu trabalho, o escravizado morre sem justiça e sem explicação, como se fosse possível um mundo regido apenas por interesses mesquinhos e vantagens pessoais, sem que um elevado ideal convincente pusesse nos eixos todas as coisas que não parecem se encontrar nos eixos.
Mas é só à vida real que se perdoa a injustiça e a falta de sentido.
O sr. Paulo Coelho, com quem muitos devem ter tentado aprender a ganhar tanto dinheiro quanto ele ganhou, mas não soube de muitos que tenham conseguido, dizia sofrer um imenso preconceito da parte dos críticos literários de revista e de jornal, porque os críticos não seriam capazes de tolerar alguém que escrevesse de um tal modo que as pessoas compreendessem. Deveria se referir a James Joyce e a Guimarães, a Proust e Faulkner, eventualmente aos conceitos sofisticados dos irmãos Campos, talvez até mesmo a Clarice Lispector. Não explicou, porém, por que mesmo a crítica literária de jornal e de revista elogiava também mestres da concisão e da clareza, como Graciliano Ramos e João Cabral de Melo Neto, como José Lins do Rego e Rachel de Queiroz, mesmo Camus, Kafka, Hemingway e ao seu modo até Borges. Ao longo do tempo, a argumentação do sr. Coelho se deslocou um pouco da questão sintática e de vocabulário e as opiniões do crítico de jornal e revista e do acadêmico e do intelectual saudoso que não lê em PDF e começa os livros sempre pelo cheiro (delícia!) passa a se concentrar no ressentimento mais bruto e simples: o sucesso é intolerável, logo, não são admissíveis nem os livros populares nem os seus autores simplesmente porque os críticos e uma elite intelectual metida a besta , ele argumenta, não consegue compreender nem aceitar o gosto do povo. Segundo argumento, vendeu é bom, toda a estética deve se reduzir ao sucesso comercial da obra, e é bem provável que muitos editores concordem com isso.
O escritor que deseja vida fácil provavelmente vai concordar com esses argumentos; a lógica do mundo capitalista fará sentido enquanto o mundo for capitalista e nada no horizonte próximo contradiz essa continuidade. Se você quer vencer deve fazer o que dizem os vencedores, partindo de dois pressupostos potencialmente problemáticos: que o vencedor venceu porque era necessariamente o melhor e sabia o que estava fazendo, e que ele vá revelar democraticamente o segredo do seu sucesso.
A lógica cultural do capitalismo, meninos e meninas, de certo modo é igual à lógica do capitalismo como um todo. Os maiores sucessos dependem de milhares de fracassos, milhões eventualmente. Quem desejaria um pódio em que coubessem cem pessoas em cada um dos três primeiros lugares?
Como conseguir um lugar no pódio? Isso sabem todos e ninguém: é preciso ser aceitável bem mais do que claro e sucinto, e eventualmente será mais fácil ser aceito a partir de uma linguagem algo confusa. Milhões tentarão, claro, e pouquíssimos chegarão. O que fizeram de errado os que não chegaram se seguiram todos os tutoriais do sucesso e tiveram tanta fé e persistência? Da fé e da persistência sempre se pode dizer que não foi o bastante mesmo que tenha levado tudo; os tutoriais pode se dizer que não foram obedecidos em todos os detalhes ou que o excesso de obediência eliminou o mínimo de criatividade e originalidade que sempre se diz que se espera.
A lógica do mundo é mais simples. O fracasso é culpa de quem fracassou.
Paulo Coelho, bem sucedido, famoso, poderoso, tão rico que não conseguiria gastar mais a própria fortuna, ainda se incomoda com a opinião de colunistas dos cadernos de cultura.
Os apóstolos, que o adoravam, não compreendiam sua presença entre os marginais, que riam dos seus ensinamentos enquanto todos se embriagavam. O argumento mais simples diz que ia pregar para os que mais necessitavam. Mas será que, cansado de ser adorado, ele não queria apenas sentir na pele a opinião do outro lado do mundo social, ou poder ouvir que em algum lugar eram capazes de rir do seu destino imenso e ironicamente era nessa companhia que ele conseguia respirar um pouco e descansar de ser o filho de Deus?
O cego é imune às ilusões da ótica. O louco é imune às ilusões da razão. Os que são lúcidos e veem precisam de estratégias. Mas um corpo morto não sabemos se é capaz de sentir a presença de Deus.
Meu argumento (no capítulo das ilusões) também é simples. O respeitável público é grato pela manutenção de suas ilusões; há quem prefira ilusões mais sofisticadas. Mas, principalmente, ninguém gosta de ver denunciadas as próprias ilusões. Há falsos desvelamentos do truque em que o livro declara que é apenas livro, o teatro desvela o cenário e os atores sentam na plateia, o ator olha para a câmera como se pudesse ver o público do cinema e diz que tudo não passa de ilusão. A ilusão finge que se assume para continuar, ilusória, sustentando o sonho. E para que o sonho sobreviva é preciso que ele tenha às vezes certa semelhança ao pesadelo.
Bertolt Brecht, também ele, engana quando diz que esclarece.
Há, é claro, os que vão recorrer a expedientes mais simples, os que sempre vão se colocar sob as asas de um Deus sempre simpático e conveniente, que só se vinga dos outros, nunca de nós. É fácil compreender que não se deve acreditar em todos aqueles que falam no seu nome, mas é tentador acreditar em alguém que fale em nome de um Deus que dá tão facilmente tudo que se pedir a ele. Essa discussão, mais política do que teológica, aqui cabe como exemplo, apenas. Não apontarei na direção certa do caminho certo nem na direção do caminho errado – é a minha insuportável reivindicação de ficcionista. Como alguém ousa que sua história inventada não tenha consequências e não espelhe o mundo real que achamos que conhecemos? Diga que nossos sofrimentos e sacrifícios serão vingados e justificados, fale da superação dos pacientes e da grande consolação dos sofredores. Ou diga pelo contrário que no lugar de Deus impera um cifrão impessoal que justifica tudo e que os pobres serão esmagados como frutas enquanto os gananciosos desgastam o mundo como se ele fosse eterno, fale da dureza das injustiças e revolte os injustiçados do mundo, esclareça. Ou pense nas formas e mostre o mundo por trás dos seus cenários, declare o fim de todas as ilusões, uma vez, duas vezes, três vezes, e sempre que precisar derrubar uma ilusão terá que construir um exemplo, uma ilusão cada vez mais sutil.
O que faz o sacripanta? Poderia dizer que apenas conta uma história, mas não diz nada. Perguntado por que fizera a reprodução multiplicada por quatro de uma cadeira elétrica Andy Warhol disse que não sabia. Em vez disso, depois de quilômetros de marasmo realista e árido, faz com que suas personagens flutuem sorridentes no inferno, mas não é possível, pensam, que essa categoria irresponsável de prazer não conduza a uma queda, e eis que suas criaturas caem sim, para cima e para os lados, nunca para baixo.
O avesso do sonho é mais ou menos o pesadelo; o avesso do pesadelo não é o retorno ao sonho. A ilusão precisa ser uma promessa distante e cada vez mais distante, ou se quebra nas pedras do mundo.
O que Andy Warhol não quis revelar era o mais óbvio; cadeiras elétricas, tanto quanto latas de sopa e garrafas de refrigerante, são belos objetos estéticos do sonho americano.