Os horrores do destino. Por que fingimos amar os pobres abandonados. Terceiros pensamentos sobre as portas.
Condenados a tentações tão pequenas quanto escrever e publicar livros, mas sem conseguir nem sequer ficar de pé diante de algo tão grandioso quanto o chamado do poder, seria o destino da maioria de nós, sendo que, aliás, a maioria nem se ocupa com coisas como escrever e publicar livros.
Mas será apenas isso? Me levem ao tribunal da razão, se quiserem, ou me desejem a Inquisição, que era mais prático e envolve direitos diretos sobre vida e morte, mas talvez eu deseje uma coisa um pouco maior que a falência material, um dragão que seja mais do que uma barriga roncando ou um pequeno reconhecimento que nunca vem, maior mesmo e mais terrível do que nunca ter beijado a boca de alguém que se tenha verdadeiramente amado ou mesmo sua face, castamente, sim, um monstro que seja maior do que um medo comum de solidão e morte e loucura e fome, um monstro que tivesse pelo menos o tamanho de uma palavra do diabo no ouvido de Deus. Ou o contrário. Isso se antes do diabo a palavra irresponsável não for mal salivada um produto do verbo humano. Um monstro desse tipo, como não se vê todo dia e nem todo mundo é mesmo capaz de ver.
Me lembra um conto do José Régio numa antologia da Verbo. E um pouco um conto do Drummond e um do Roberto Arlt. Mas o José Régio (nunca me lembra o título do conto, mas se refere ironicamente às boas intenções do mundo) e fala da confissão generalizada de generalizado ódio de um escritor nacional querido publicada postumamente e sob o choque dos seus leitores, admiradores e público geral, mas gozada em segredo por escritor sem sucesso, o narrador do conto, que parte da premissa de que a angústia do escritor que falha é que o seu fracasso o impede de dizer o que precisa dizer. É um pouco o sentido em que falhamos todos nós, na verdade os mais bem sucedidos, aqueles cujo verdadeiro sucesso ninguém nunca vai saber propriamente qual é. Mas a vingança mesquinha do narrador do José Régio (quando li o conto achei que o finado escritor era uma pessoa real e que o fracassado que se aprazia daquela confissão de desprezo ao gênero humano era o próprio José Régio) de certa forma diz isso. Faz tempo que li o José Régio; é um retorno que preciso agendar; mas quando o li era ainda leitor inexperiente: pode ser que minha interpretação não corresponda a nada que lá vai escrito.
O conto do Roberto Arlt e o do Drummond falam de outras humilhações por que passa quem pretende escrever. Cheguei a pensar numa antologia de ressentimentos literários que nos perdoasse: quando nossos heróis confessam na vida certa baixeza e a força dos intestinos do destino humano os mais tolos devem desistir deles, os de nós que conhecem de verdade as enrascadas em que se meteram vão se sentir um pouco mais justificados com isso, um pouco mais de fôlego para um tanto a mais de ilusão.
É uma compreensão da revolta e da loucura que se tem diante da porta fechada, como na passagem célebre e absurda de O processo. O sujeito dedica toda uma vida a atravessar uma porta que nunca atravessa porque o impede de passar o porteiro que só para ele guardava a entrada. A morte do sujeito, reivindicador, dá fim à missão do porteiro, ou guardião, ou o que seja, e ele pode, enfim, ir embora. A missão poderia ter acabado antes, se se deixasse o sujeito entrar, mas o porteiro, ou guardião, podia restar em dúvidas durante a eternidade: só a morte daquele que reivindicava a passagem podia dar a certeza pelo menos de um fracasso tão retumbante que perdoava de todo o abandono do posto.
E se o porteiro, ou guardião, dissesse, maternal e protetor: o destino nem sempre é o melhor, nem aquilo que se pensa que se deseja, nem o que se deseja de verdade ainda que sem conhecimento de causa, e sou eu que sei o que é melhor mesmo para você – e se o porteiro, ou guardião, que não estava ali para falar, quebrasse a regra de ouro do silêncio comum aos guardiões e porteiros e dissesse isso?
E se na porta houvesse a presença improvisada e absurda de um Manezinho do Bispo, que só fosse capaz de dar conselhos grandiloquentes, estapafúrdios e completamente inúteis, mas plenos de certa dignidade liberal da profissão na qual ninguém jamais pensara antes?
No momento mais decisivo da sua vida, se alguém lhe der algum tipo de conselho ou de repente você mesmo tenha que se pronunciar, o mais provável é que as palavras do momento mostrem bem pouco préstimo, ou pareçam bem carentes de beleza. O amor mesmo nasceu desses improvisos, filho da miséria com um deus embriagado, concebido numa festa já de muito esvaziada.
Antigas e sábias e morais tradições judaicas rezam que se deve buscar mais de uma solução para cada problema, que tudo deve ser visto por todos os ângulos possíveis, e algumas de suas discussões teológicas duravam séculos e tinham sua argumentação registrada em livros estruturalmente impossíveis de escrever em outra língua que não fosse o hebraico (a prova de que nada que se escreve visa a uma tradução: tudo que se diz já nasce sepultado no seu próprio idioma).
Isso serviria para que a página de Kafka sobre a porta e porteiro virasse mais mil a cada década. Preciso de menos que isso (que os comendadores possíveis façam as primeiras dez páginas consequentes ainda esse semestre e não se fale mais no assunto): são outras portas que me interessam, e quero supor que estejam abertas ou que alguém abriu, como na proposição interessante e arrogante de Marinetti de que deixava atrás de si várias portas abertas que jamais atravessava.
Se lhe fosse dado, poeta, deparar com uma dessas portas que uma distração simulada do destino e do desejo tivesse deixado aberta, e ela aparecesse diante dos seus olhos transformada na água dessa folha de papel, num texto de evocação tão plena que ninguém lhe daria o perdão e a condescendência, a inimputabilidade de um ato poético, mas a cobrança social de um ato decisivo e responsável, um texto que fosse, autêntico, uma porta aberta como o convite de um diabo que se pudesse tocar com a mão e que verdadeiramente estaria lá para realizar desejos aos preço conhecido – e eis que ele está lá, disposto e tentador, e seu pensamento ou o pensamento de alguém foi mesmo capaz de arriscar tudo em nome de um pedido – ou pior, se nesse hino contra tudo estivesse justamente o último chamado convincente às verdadeiras revoluções de Deus, que são radicais e que não têm meio termo e que são a melhor coisa que pode acontecer, o correto, ao custo de acabar com o mundo pecador que conhecemos tão bem?
O poeta muita vez recua diante da porta que abriu: é o princípio da destruição do seu mundo e de coisas queridas e ele decide, com o coração, que não vai atravessar. E de nada adianta: a porta já está aberta, e são as coisas que se encontram do outro lado que vão invadir e corroer tudo. O trabalho renovador de certas destruições.
Toda ruptura fatual exige uma ruptura simbólica que, se não for efetuada, faz que tudo permaneça na verdade igual a antes. E que todo sangue derramado permaneça em vão, que todo sonho tenha a forma do se.