“A verdade é filha do tempo, e não da autoridade.”
Galileu Galilei
Peguei um Uber e logo fui instado a conversar com o falante e provocador condutor do veículo que desde o início demonstrou a vontade de expor seu pensamento sobre questões sociais sob um prisma conservador no qual, citando situações e exemplos particulares e pontuais, passou a afirmar e justificar seus conceitos com generalizações inadequadas e equivocadas.
Como a viagem era longa, deu tempo para trocarmos ideias, e gosto de ouvir o que uma menor ou maior parte do senso popular admite como verdade.
De pronto começou a criticar os Conselhos Tutelares por punir os pais que deixam os seus filhos menores de idade trabalhar, argumentando que o trabalho de menores é edificante e instrutivo, numa linha do que dissera algum tempo atrás o Presidente Boçalnaro, o ignaro.
Note-se que por ser um trabalhador de Uber (não cheguei a perguntar se era o dono do veículo ou estava trabalhando para um dono; ou ainda se o veículo seria financiado ou de locadora) ficou evidente que se tratava de mais uma situação na qual o oprimido defende as teses do opressor.
Aprendi a contraditar argumentos como estes e outros de iguais conceitos de modo a respeitar as opiniões alheias, até como forma de que as minhas sejam também respeitadas. Isto não significa aceitar o errado como certo dentro da minha visão sobre cada ponto quando discordo do que me é conceitualmente afirmado.
Costumo retorquir mesmo admitindo que não sou o dono da verdade, e que posso estar errado, até porque toda verdade é sempre relativa.
Argumentei que diante do desemprego estrutural que estamos vivendo, com o capital demitindo os empregados e forçando os ainda empregados a aceitarem perdas salariais não compensadas pelo processo inflacionário que agora está mais acentuado, bem como as reiteradas perdas de direitos trabalhistas, seria muito fácil para o capital usar a mão-de-obra infantil ou pré-adolescente objetivando a realização de lucros.
Ele contra-arrazoou dizendo que o certo seria trabalhar por um meio período e estudar no outro restante, pois assim os menores aprenderiam um ofício, disciplina e responsabilidade com o dinheiro.
A conversa se prolongou, e eu tive o cuidado, como sempre faço, de não ofender o interlocutor no campo pessoal, evitando quaisquer ofensas sobre a natureza de sua postura, até porque entendo que o oprimido é costumeiramente privado da educação escolar básica ou científica, ou é educado de modo a introjetar na sua mente a passividade ou aceitar como correta a opressão que sobre ele é exercida.
Devemos ter o cuidado apenas alertar os oprimidos quanto aos equívocos conceituais para o caso de quererem aprender (mas há os que querem apenas ocupar o lugar do opressor, e aí não tem jeito).
Não cheguei nem a levantar a tese que aqui tenho defendido, segundo a qual é o próprio trabalho dos adultos a fonte da opressão social da qual certamente ele mesmo é vítima, porque isto tal discussão demandaria tempo e complexidade não apropriadas para o momento.
Pensando em terminar a conversa, argumentei que toda criança merece e deve ter direito ao tempo livre do lazer, a uma boa educação familiar e escolar (no sentido diferente de muitos conceitos do que hoje compõe a grade curricular), e condições de vida dignas (habitação, alimentação, saúde, segurança, etc.), coisa que a relação social hoje existente não tem capacidade de proporcionar à grande maioria da população.
Para minha surpresa, o motorista sacou um outro argumento conservador, reafirmando em mim a impressão de sua incapacidade de pensar coletivamente, e de sempre se agarrar num conceito particularizado que não é capaz de expressar e deixar clara a realidade social opressora.
Meu interlocutor, reafirmando a crença na prosperidade pelo trabalho, disse que era contra o seu próprio pai, que hoje vivia num assentamento de terra como membro do MST, afirmando que não era justo tomar a terra de quem passara anos trabalhando para ter aquele patrimônio para depois vê-lo dividido com quem não fizera esforço algum para ter a terra.
Mais uma vez me esforcei para manter um bom nível de cordialidade argumentativa, apesar do meu espanto com a postura de aceitação por parte dele de raciocínios opressores contra o seu próprio pai, que justificam a injustiça em nome de uma pretensa justiça que é por essência excludente.
Perguntei qual era a área de terra na qual estava assentado o seu pai, e ele me respondeu que era cerca de 20.000 m², ou dois hectares.
Diante disso, afirmei que conhecia um grande latifundiário rural do Brasil (que não são poucos, neste país de vastidões territoriais férteis, e improdutivas) que era dono de muitas propriedades, e que somente em uma delas seria proprietário de 2.700 hectares, e que estava inativa, apesar de por ela passar um rio perene, e que a mesma se destinava à especulação fundiária.
Afirmei, sem mais perguntas, que não era justo num país de 14 milhões de desempregados, e tantos outros que já saíram das estatísticas, que não houvesse terras para serem exploradas por quem nelas quisesse trabalhar, e que imaginava a dificuldade de seu pai em tirar o sustento familiar de uma pequena propriedade.
Afirmei, ainda, que a meritória ação do MST de defender a propriedade terras para agricultores delas despossuídos, esbarrava exatamente num conceito de negativo de propriedade.
Disse que considerava errado lutar para que os sem terras passassem a ser proprietários de terras (mesmo que pequenas) com produção destinada ao mercado, pois sem a produção de escala e sem os equipamentos tecnológicos estavam fadados ao insucesso comercial, e isto criaria um ciclo vicioso de inviabilidade econômica que terminaria por concentrar novamente as terras nas mãos de grandes latifundiários, com o abandono das pequenas propriedades.
Entendi que meus argumentos eram complexos demais para a sua compreensão quando ele balançava a cabeça negativamente e que ele não havia compreendido nada do que eu dissera, e mais que isto, que não queria entender, pois havia engolido a pílula de conceitos que vêm grassando pelas mídias sociais conservadoras, quando puxou o argumento falacioso sobre direitos humanos, digno de uma Damares boçalnariana.
Afirmou que o pessoal dos direitos humanos não defendia os direitos das vítimas, mas apenas dos bandidos. Disse que o Estado ainda sustentava os criminosos, enquanto as famílias das vítimas passavam fome.
Comecei dizendo que uma sociedade que manda para a cadeia insalubre, numa cela que deveria abrigar 10 presos, e que nela coabitam 100, e que os alimentos são levados por familiares que os dividem com os deserdados da sorte, é a mesma que cria um índice de criminalidade de guerra civil não declarada.
Disse ainda que majoritariamente são os pretos e pobres que ali estão em sua quase totalidade (os poucos doutores presos e os criminosos ricos têm tratamento diferenciado, pois quando condenados definitivamente subornam o sistema carcerário) e que muitos são vítimas de muitos fatores sociais negativos, razão pela qual não se pode condenar os que se dedicam a defender os direitos da dignidade humana tanto de um lado como do outro.
As vítimas dos crimes e das perdas sofridas diretamente pelas ações dos criminosos também fazem parte de um quadro social de anomia no qual todos são afetados por uma forma de relação social negativa e incompreendida como tal.
Disse que precisamos de uma transformação estrutural da sociedade que somente pode existir a partir da conscientização sobre conceitos de vida social que começam por uma educação diferenciada e que questione conceitos equivocados que vêm sendo transmitidos por séculos aos estudantes, e aos próprios mestres, que os absorvem e retransmitem, numa cadeia de perpetuação que aprisiona a capacidade de pensar corretamente e livremente.
Por fim, ele não tendo argumentos para rebater solidamente os questionamentos de cada ponto contra os quais eu me insurgira, puxou o lugar comum do que dizem todos os políticos, a mídia, e as pessoas em geral: o Brasil precisa investir em educação!
Claro que concordo com tal afirmação, mas faço comentários críticos a respeito, sem os quais ela se constitui como uma meia verdade, e a meia verdade é sempre uma mentira inteira. Os governos não priorizam a educação porque ao invés de votos, ela cria consciência libertadora, e um indivíduo social crítico é um perigoso subversivo da ordem segregacionista e opressora sob a qual vivemos.
Uma educação libertadora se constitui como questão básica para entender a essência e a gênese da exploração social que transforma todas as pessoas em adversárias uma das outras na competitiva e fratricida relação social advinda do capital. A questão, portanto, não é apenas educar, mas como e para quê educar.
Disse, seguindo este diapasão, que era necessário mudar o conceito da educação humanista e sociológica para que não reproduzíssemos as verdades dos opressores como vem sendo feito desde que Pedro Álvares Cabral pisou em solo brasileiro no ano de 1.500 D.C.
Como o veículo Uber já estava chegando ao meu destino, disse, educadamente a ele que respeitava as suas opiniões, mesmo delas discordando, mas não deixei de afirmar que até ele mesmo era uma vítima de conceitos equivocados que lhe eram transmitidos e por ele (e por muitos) absorvidos.
Desci do veículo e fiquei a imaginar quão forte é a matriz ideológica do opressor que há séculos vem sendo disseminada, e que em momentos de miséria social acentuada como agora ocorre, ao invés de perder força, ganha apoio de pensamentos ultra conservadores como ocorreu nas últimas eleições de 2018 no Brasil, e que levou à Presidência da República um energúmeno e sua trupe.
Desejei boa sorte apesar de lamentar o conformismo do meu interlocutor, e da precariedade e incongruência representada pela vida de um motorista de Uber, que apesar de oprimido reproduz conceitos de opressão.
Mas no íntimo, desejei mais ainda boa sorte para o seu pai, que era um lutador da causa campesina, e meu companheiro, mesmo sem conhecê-lo.