O pensador português Boaventura Sousa Santos1 recorrentemente tem argumentado que estamos a perder a democracia democraticamente. O caso do Brasil recente e a definição de democracia ocidental sustentam esse tipo de argumento. Dessa maneira também ocorre a diluição de outra dimensão importante para o contexto social: a economia. De igual modo, estamos a perdê-la economicamente. Ainda que para isso seja preciso contrariar a linguística, tenho nominado esse processo político de deseconomização. Sua tradução assenta no abandono do pacto social2 ao apoiar-se na matriz fragilizada da individualização, numa desestruturação total do cuidado enquanto liga coletiva.
A palavra economia pode ser traduzida livremente como “o cuidar da casa”. Seu radical deriva do grego e consiste na própria expressão da coletividade que atrelou à democracia seu maior significado prático. O pensamento positivista sequestrou a modernidade, o pensamento positivista apresentando consequências incalculáveis. Esse tipo de pensar concorreu para reduzir o termo à materialidade financeira, que em última instância servia de correição à nova lógica de mercado. Era a versão iluminista e despótica que fincava suas garras pelo discurso fácil do laissez-faire3.
Nessa esteia, o Século XX assistiu à mudança de lógica que retirou do desenvolvimento qualquer possibilidade de sê-lo sustentável4. Não precisamos aprofundar nos termos marxistas5, mas bem que poderíamos observar suas criticas quando à época denunciava a mais valia. Também poderíamos utilizar a lente de outros teóricos como Robert Castel6 ao alertar para: “a condição da economia atual não é apenas a constituição de uma periferia precária, mas também de uma desestabilização dos estáveis”. Recentemente, foi Gasda7 quem melhor atualizou esse debate ao denunciar o “triunfo do cálculo contábil, sobre os direitos dos trabalhadores”. Em diferentes tempos, esses atores uniram-se em denúncias concretas acerca da destruição da economia enquanto pacto social pautada no cuidado. Suas discussões substantivas denunciam o desmonte de políticas públicas como a previdência8 brasileira, por exemplo, forjada no argumento de ”derrubada de privilégio”. Ali, nitidamente a elite política desdenha da inteligência popular impondo uma narrativa de necessidade orçamentária, ainda que os números não sustentem tamanha falácia9.
Tal cenário é reflexo da liquidez da vida prática. Outro dia, fui alcançado por uma dessas mensagens instantâneas, cuja fonte nunca é a maior das informações, mas que me prendeu por um instante. O conteúdo de tal mensagem refletia que em um período curto de dez anos o “spotify faliu as gravadoras” o “Netflix acabou com as locadoras” e “o Google com as famigeradas páginas amarelas da listel”. Se eu refizesse esse texto em dez anos, possivelmente não falaríamos de algumas profissões como telefonistas e atendentes bancários; talvez ainda se falasse um pouco do Youtube, GPS, mas de forma muito distante, e certamente seria indagado: você ainda usa isso?
O cenário disruptivo é carregado de descontinuidade, e por isso exige profunda adaptação. Assim como a invenção do antibiótico revolucionou a medicina, o avanço tecnológico não pode ser desconsiderado. É da própria dinâmica da economia que vai agindo no curso da história, passando a exigir da sociedade um conjunto de regulação para cuidar das novas formas comportamentais. Os desafios tecnológicos não deixarão de surgir, e sempre imporão outras realidades. Por isso é necessário fazermos movimentos concretos de organização econômica, pondo-a a serviço da coletividade. Quando uma tecnologia substitui outra, precisamos visitar nossos limites éticos10 e identificar a quem servirá o novo processo. Se a resposta for para melhorar todas as formas de vida, então ela deve ser adotada. Caso contrário, ainda não passa de um amontoado de códigos!
Como fazer? A meu ver, só existe um caminho: construir políticas públicas para garantir acesso equilibrado à economia. De um lado, a ação pública precisa garantir participação e acesso aos excluídos. Do outro, precisa regular a força de grupos poderosos. Quem pode exercer esse papel? A empresa? Por melhor que sejam suas intenções, por definição, esse ente assumiu outro papel histórico. Suas engrenagens estão desenhadas para outra lógica. É simplesmente incompatível destinar a um grande empresário a tarefa de legislar sobre os direitos do trabalhador. Por assimetria, também não pode ser o individuo. Sob outros aspectos, a história já mostrou que ai é o maior berçário de déspotas. Logo, não pode ser outro agente senão o Estado na sua função de regulador social. Seu sentido coletivo deve resultar da participação dialógica entre seus vários agentes. A construção desse caminho deve ser economicamente sensível e politicamente autêntico, de tal forma, e com tal precisão, que seja capaz de evitar o descalabro de uma “economia sem nós11”. Estou convencido que esse caminho é capaz de organizar e envolver o conjunto social numa verdadeira lógica do cuidado.
Negar o cuidado coletivo é ir ao encontro de uma economia doente pautada na competição dos mais fortes contra os mais fracos. Chamo atenção para os discursos fáceis de “crescimento econômico”, “economia competitiva” e “mercado desenvolvido”. Essas narrativas endossam a espoliação dos pequenos, desumaniza o sistema e consequentemente contribui para a deseconomização da economia. Reforçar esse modelo econômico é favorecer o surgimento de uma economia marginal, cuja informalidade neutraliza a massa trabalhadora, confundindo sobrevivência com empreendedorismo.
Num contexto de deseconomização é pueril usar o texto bíblico “ensine o homem a pescar”. Por que? Porque não se pesca com o rio envenenado, com a rede furada e o barco inundado. Simples! No percurso da deseconomização, encontramos malícia, ao invés de justiça; sentido privado ao invés de sentido público; competição quando seria necessária a colaboração. Ai toma-se o caminho para a precariedade e individualização das responsabilidades, abandonando qualquer projeto coletivo. É montado um circo bem abaixo dos nossos olhos que sequestra a economia, privatiza seu sentido e destrói a capacidade de cuidar da nossa casa comum. Perder esse equilíbrio é deixar de cuidar da casa.
Sabe-se que em tempos de mudanças radicais, de descontinuidades tecnológicas e de economias disruptivas; em tempos, de informalidades, ausência de responsabilidades e políticas privativas; evitar a deseconomização da economia é o único caminho para cuidar da nossa casa comum. Pois ali habitam pessoas, famílias e vidas nas suas mais diferentes formas e com os mais diferentes direitos inerentes à sua dignidade. A estás vidas ofereçamos uma economia plena baseada no cuidado.
Não percamos a economia economicamente!
Por Rafael dos Santos da Silva
Universidade Federal do Ceará – UFC
Professor
1 Ver – Sousa, Boaventura Santos (2016) A difícil democracia – reinventar as esquerdas, Boitempo. 1ª Edição. São Paulo.
2 Ver – Chaplin nas engrenagens de Tempos Modernos. Disponível em https://www.google.com.br/search?q=chaplin+nas+engrenagens&tbm=isch&source=iu&ictx=1&fir=OF8nz3Pl9uSbkM%253A%252CLMQbqHKjyu_5M%252C_&usg=AI4_i5JtmWTh1rdq7aOyVXSP_EmHKjQ&sa=X&ved=2ahUKEwifnpzG0dzgAhX_ILkGHVj3B0cQ9QEwAnoECAQQBg#imgrc=OF8nz3Pl9uSbkM:
3 Ver – https://aleconomico.org.br/o-que-e-laissez-faire.
4 Ver Silva, Rafael (2018) As Cores da Laudato Sí – da denuncia ao anuncio da liberdade. Coimbra – PT.
5 Ver Max, Karl – O Capital
6 Ver Castel, Robert (2008) – As metamorfoses da Questão Social – uma crônica do Salário. 7ª Ed, Ed Vozes. Petrópoles – Brasil.
7 Ver – GASDA, Élio Estanislau (2014) Cristianismo e Economia: repensar o trabalho além do capitalismo – São Paulo: Paulinas.
8 Ver – à nova reforma da previdência em 21 de Fevereiro de 2019
9 Ver – https://auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2019/02/grafico-2018.pdf
10 Ver – Laudato Sí sobre o cuidado da casa comum – Encíclica de sua santidade o Papa Francisco, 1º ed Ed Paulinas São Paulo – SP, 2015.
11 Ver idem ao comentário 9. “A frase “uma economia sem nós” é uma expressão utilizada pelo autor em seu trabalho denominado – As Cores da Encíclica Laudato Sí – publicada em 2018 em Portugal, e atualmente encontra-se no prelo no Brasil. Sua tradução livre diz respeito a uma economia que não contempla as pessoas.”