A revelação da qual uma religião é anunciadora, se for verdadeira,
devem-se encontrar nela as respostas que o humano espera para
resolver as contradições assombrosas que o atormentam”.
(Blaise Pascal)
1. Blaise Pascal (1623-1662), francês nascido em Clermont, genialidade da matemática, da teologia e da filosofia, desde criança, e por toda a vida, procurou a verdade. Como tal, permaneceu sempre inquieto, atraído por novos e mais amplos horizontes. Afinal, “o coração tem razões que a própria razão desconhece”.
Defendia que um “ateu resoluto” era preferível a um “crente morno”, porque esse tipo de ateu demonstrava uma postura clara e autêntica em relação à busca da verdade – tarefa sem fim nesta vida – enquanto o crente morno era apático, manipulável e superficial em suas reflexões.
Dedicava respeito ao ateu resoluto por sua honestidade e integridade intelectual, supondo que esse tipo de pessoa poderia estar mais próximo de um verdadeiro encontro com a fé do que alguém que professasse uma crença rasa, apenas por conveniência pessoal ou política, por tradição social.
Para ele, a fé deve ser escolha consciente, alimentada por fervor meditativo, baseada em uma verdadeira compreensão e acolhida de Deus, compromisso assumido por um coração livre.
Tinha plena convicção de que é impossível chegar sozinhos a uma visão perfeitamente nítida do mundo e de si mesmos. Deus não é um objeto que se pode manipular ou ser rebaixado a um puro resultado do saber com que se contentam os deístas. “Somente uma fé verdadeira, viva e encarnada na realidade liberta a razão da presunção”.
Segundo o filósofo, o drama em ser cristão reside no fato de ver mal, vagamente, com espírito indolente ou orgulhoso. Consequentemente, escolhe-se mal com todos os efeitos decorrentes de tais escolhas. Afinal, “há várias formas de ocultar a realidade, e nada é mais perigoso do que um pensamento desencarnado, isolado do seu tempo”, assinala Pascal.
Disto deriva-se a indagação: o que poderia vir a ser hoje, no mundo contemporâneo, uma subjetividade cristã, um sujeito cristão?
2. Uma pista valiosa para uma resposta a tal indagação pode ser encontrada na reflexão sobre a obra de Pascal, do filósofo contemporâneo francês Alain Badiou, em seu livro “O Ser e o Evento” (Jorge Zahar Editor, 1996).
Para Badiou o pensamento só pode ser libertado de sua impotência por meio de algo que exceda sua ordem. Somente por meio de uma operação insubstituível, capaz de reorganizar a morte e a vida nos seus lugares. Essa operação chama-se “ressurreição”, entendida como a reinvenção de um modo de viver que desvia da repetição e produz novos modelos de pensar e agir. Ressurreição implica uma nova fé juntamente com uma nova militância.
O Sujeito vivo deve determinar-se não apenas em seu surgir, como também em seu labor. O Amor é o labor do qual a fé é capaz. A fé mostra-se eficaz pelo amor. Pelo amor descobre-se que nossa energia não é contra a verdade, mas para a verdade. Uma energia só pode ser verdadeira se levar em consideração toda a humanidade, sem exceção.
A Razão não é capaz de produzir por si só uma força maior do que aquela que comumente possui. Somente uma consciência e um amor social poderão produzir algo de novo. Amar significa assumir os pesos dos outros, seus pensamentos, seus sofrimentos, seus desafios, lutas e conquistas.
O Amor exige sempre seriedade, esforço cotidiano, sacrifício. Neste sentido, o pensamento social cristão apresenta, em toda a sua luminosidade e dramaticidade, uma palavra que o mundo não quer ouvir nem pronunciar, porque considerada tola, absurda, insensata. Esta palavra é Cruz.
Não se faz nada de bom, de útil, de fecundo no mundo sem conhecer, sem saber aceitar o esforço, o sofrimento, em resumo, sem a cruz. O sofrimento que o amor como labor da fé exige pode-se tornar uma ferramenta poderosa para fazer revelar à humanidade a sua mais elevada dignidade. “Fora da perspectiva do amor, não há verdade que valha a pena” (Pascal, Pensamentos, n. 926).
A intervenção na realidade, consequentemente, é sempre característica de uma vanguarda. A fé desta vanguarda interveniente diz respeito à manifestação do evento. Portanto, decisão imprevisível, não dedutível, mas inaugural, possível e real.
Para Badiou, o admirável em Pascal é o esforço de, em circunstâncias difíceis, avançar contra a corrente, não no sentido reativo do termo, mas para inventar formas modernas de uma antiga convicção, vontade de mudar o mundo, de propor aos humanos que consagrem o que têm de melhor ao essencial, em vez de seguir a marcha de um ceticismo portátil das almas demasiadamente fracas, medíocres e descomprometidas.
3. Por sua vez, Papa Francisco dedicou uma Carta Apostólica – Sublimitas et Miseria Hominis – a Blaise Pascal por ocasião do Quarto Centenário do seu nascimento (2023). No referido documento Francisco destaca o fato de o filósofo haver conseguido tocar a todos, principalmente pelo fato de falar admiravelmente da condição humana, de forma brilhante, respeitosa e paciente.
Portanto, para se compreender bem o discurso de Pascal sobre o cristianismo, é necessário estar atento à sua filosofia. Pascal afirmava que “não há nada de tão importante para o homem como a sua condição; para ele, nada é tão assombroso como a eternidade, a incerteza do seu destino, o perigo terrível de eternamente aniquilados ou infelizes”.
A realidade é superior à ideia. E o homem é como um estranho para si mesmo, grande e miserável. Verdadeiro enigma. Ele compreende que não há como encontrar em si mesmo a Verdade e o Bem em sua plenitude. Somente no encontro particular com outra Pessoa. Mas não é possível encontrar-se com esta Pessoa sem o exercício de profundo reconhecimento de nossas limitações, praticando aquela humildade autêntica que nos torna livres de nossa consciência isolada e autorreferenciada.
Tal encontro torna-se uma descoberta contínua, alimentada constantemente pelo amor. Afinal, o amor nunca se impõe. Há bastante luz para quem deseja ver, como existe bastante escuridão para quem possui a disposição oposta. Deus é amor. Amar é tudo.
4. Ocorre que no Brasil recente, a partir do golpe híbrido perpetrado contra a presidente Dilma Rousseff, com o aceite do processo de impeachment encaminhado pelo então presidente da Câmara Federal, o assumidamente cristão evangélico Eduardo Cunha, foi urdido um ambiente discursivo por diversas lideranças religiosas, de tradição católica e evangélica, em seus ritos celebrativos, apresentando Jair Bolsonaro como sendo a pessoa escolhida pela vontade de Deus – um ser sagrado, portanto – para governar o Brasil.
Entre os pastores evangélicos nacionais apoiadores de Bolsonaro, estão Silas Malafaia, Edir Macedo, Marco Feliciano, Damares Alves, Renê Terra Nova, Waldemiro Santiago, Samuel Câmara, Estevam Hernandes. Mais de 60% dos assim chamados evangélicos votaram nele na última eleição de 2022. (Quem são os evangélicos que apoiam Bolsonaro? – Diálogos da Fé – CartaCapital).
Pelo lado da tradição católica, comunidades como Rede Vida, Canção Nova, Renovação Carismática, Fazenda da Esperança, entre outras, dispensaram total apoio à eleição do Bolsonaro e durante seu mandato. Exemplo emblemático é o acolhimento efusivo realizado pela Fazenda da Esperança, no dia 19 de junho de 2019, em sua Sede Mundial, localizada no município de Guaratinguetá – SP. No final da visita, o frade fundador da associação, Hans Stapel, afirmou: “Não há dúvidas, foi um momento divino”. Três anos depois, em 18 de maio de 2022, por ocasião de uma reunião de Bolsonaro com lideranças católicas, no Palácio do Planalto, ao final de sua intervenção de oito minutos, o mesmo Hans Stapel exclamou para Bolsonaro: “Estamos juntos”. Cerca de 40% dos católicos votaram em Bolsonaro em 2022.
Mas são fartos os vídeos públicos que documentam o pensamento político autoritário, com inspiração fascista, de Bolsonaro. Por exemplo, quando categorizou a Direção da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) como “a parte podre da Igreja Católica”; quando em palestras para a Hebraica no Rio de Janeiro, em 2017, durante a campanha à presidência da República, referindo-se às comunidades quilombolas, adotou a unidade de medida “arroba”, utilizada para pesar animais de abate, ao debochar dos indivíduos integrantes daquelas comunidades; ao ser favorável à tortura, afirmando em 1999: “Pau-de-arara funciona. Sou favorável à tortura. Tu sabe disso (sic!)”; no processo golpista de aceite do impeachment de Dilma Rousseff, em 17 de abril de 2016, sua declaração de voto foi a seguinte: “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (oficialmente condenado pelo Estado Brasileiro pelo crime de tortura), o pavor de Dilma Rousseff”.
Assim, diante das considerações acima, surge a questão: como pode um tipo mentiroso contumaz, misógino, homofóbico, sem decoro institucional (vide eventos oficiais com palavrões), necropolítico (vide pandemia da covid-19), apologista da tortura e de torturadores, defensor de ditadura militar, corrupto (vide caso das joias milionárias e da falsificação das carteiras de saúde), golpista (vide relatório da investigação da Polícia Federal sobre o atentado ao Estado Democrático de Direito), ser considerado por grande parte dos católicos e evangélicos (de suas e seus pastores) como uma pessoa sagrada, escolhida pelo Deus cristão para governar o povo brasileiro?
Uma resposta
Matérias que trazem a melhoria da dignidade humana, sempre é muita importante e nos ajuda como indivíduos, se apropriar de informações que contribuem para nosso crescimento