DA VIOLÊNCIA AO CAOS

Um caranguejo andando pro sul, saiu do mangue, virou gabiru. Nunca vi tamanha desgraça, quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça. Versos do genial compositor pernambucano Chico Science (1966-1997) na canção DA LAMA AO CAOS, hino do Movimento Manguebeat, lançada em 1994, metaforizando sobre a cena pública brasileira, da espoliação estrutural histórica da população, conluiada pelos poderosos urubus desde os tempos da escravidão. Do ponto de vista dos espoliados, dos oprimidos, das minorias brasileiras, a não-liberdade é a regra imposta pela classe dominante, herdeira da cultura europeia com sua barbárie colonialista.

Como diziam sabiamente nossas avós, não há como tapar com a peneira o sol. Afinal, quem são os bolsonaristas que nos conduziram até este submundo? Todos os que estão no governo Bolsonaro, representantes de suas frações de classe: militares, religiosos, partidos políticos, capitalistas, fascistas, ruralistas, jornalistas, neoliberais. São também bolsonaristas todos os eleitores e eleitoras que o elegeram em 2018. É esse contingente que juntamente com o seu chefe deve ser responsabilizado pelo caos no qual fomos colocados como Nação por esse Governo.

Cem anos atrás, na primeira metade do século XX, diferentemente da maioria dos políticos alemães de esquerda que demoraram a perceber a ameaça nazifascista com a ascensão da extrema-direita, Walter Benjamin foi um dos intelectuais para quem esse perigo esteve desde o início presente em seu campo de visão. O partido nazista alemão foi fundado em 24 de fevereiro de 1920, reunindo militares, grupos ultranacionalistas, estudantes conservadores e setores engajados na luta contra o movimento de trabalhadores alemão. Desenvolveram forte propaganda de terror junto a setores da classe média para acelerarem sua ida do terreno liberal para o nazismo, naquilo que o teólogo alemão Ernst Troeltsch (1865-1923) denominou de “onda de direita”. Treze anos depois, em 30 de janeiro de 1933, Hitler foi nomeado chanceler do Reich. Portanto, um longo caminho trilhado na construção do nazismo alemão e do genocídio por ele operado.

A partir da reflexão de Benjamin infere-se que a estética do fascismo é a estética da guerra, louvação religiosa ao uniforme militar, seu objeto supremo, como constantemente o faz Bolsonaro rendendo loas ao verde oliva do exército. A guerra fornece um objetivo às massas nazifascistas. Machismo e Racismo se articulam, na exaltação à virilidade e à raça superior pronta para o combate, reproduzindo interna e externamente um inimigo. Para o fascista a Pátria é um ente perfeito, uno e indivisível, estando acima das classes (“Brasil acima de tudo”). Qualquer instabilidade do sistema deve ser remetida ao inimigo interno (criado ideológica e midiaticamente) e às nacionalidades inimigas no campo externo (China e Rússia). Cabe, portanto, à classe trabalhadora sucumbir à nação pela submissão e disciplina subjetiva, a exemplo dos soldados, para garantir “a paz econômica” da Pátria e da classe dirigente. Eis um fiel retrato bolsonarismo a partir do pensamento de Benjamin sobre o nazismo alemão.

Ontem, 29, o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva divulgou uma nota informando sua decisão de abandonar o governo, sem explicar até agora as razões de sua saída. Azevedo, antes de ser ministro, era o inédito assessor militar do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli. Vamos ver dois trechos da carta demissionária para traçarmos breves comentários: 1) “Agradeço ao presidente da República a quem dediquei total lealdade”; 2) “Neste período preservei as Forças Armadas como Instituições do Estado”.

A criação oficial do Ministério da Defesa se deu pela Lei Complementar 97, de 09 de junho de 1999, sancionada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. A inovação introduzida pela instituição do referido Ministério, a partir da promulgação da Constituição de 1988, visa ao pleno controle civil do segmento dos servidores públicos militares como condição necessária, ainda que insuficiente, à consolidação e aprofundamento do regime democrático brasileiro. Todavia, a implantação do Ministério da Defesa não foi um processo claro, linear e tampouco sem contradições. Apesar de mais de vinte anos de autoritarismo na aventura militar de assalto ao poder em 1964, a autoimagem das Forças Armadas mantém-se viva, achando-se no direito de intervir na política, pairando sobre os poderes constitucionais e sobre o sistema político, sempre que entenderem que devem fazê-lo, como ocorreu com o Twitter do general Villas Boas, em consenso com outros generais, em abril de 2018, ameaçando o STF no Habeas Corpus impetrado pelo Presidente Lula.

O Brasil teve 10 (dez) ministros da Defesa civis. No segundo governo Fernando Henrique foram dois; no primeiro governo Lula foram três; no segundo governo Lula forma dois; e nos dois governos Dilma foram três. Nenhuma mudança de ministro da Defesa ocasionou uma crise militar. E aqui está a primeira contradição do tempo atual. A partir do Golpe de 2016, Michel Temer nomeou em 27 de fevereiro de 2018 um general para o Ministério da Defesa. Em 02 de janeiro de 2019, Bolsonaro nomeou outro general, militarizando a Pasta, deformando-a diametralmente dos objetivos políticos-democráticos para os quais foi criada.

A segunda contradição encontra-se na afirmação do ex-ministro Azevedo ao afirmar que “dedicou total lealdade a Bolsonaro”. Ou seja, ao governo Bolsonaro. Quando na verdade, constitucionalmente, as Forças Armadas não podem se envolver em lealdades político-partidárias. Portanto, não há como, tendo sido totalmente leal a um governo com linhas politico-ideológicas muito bem definidas, ter “preservado as Forças Armadas como Instituições de Estado”. É uma contradição que fere em cheio a Lógica aristotélica. Um Governo (A) é diferente do Estado (B).

Ser totalmente leal a Bolsonaro é endossar plenamente todos os atos perpetrados por ele contra ao Estado Democrático de Direito brasileiro. No total já são mais de 60 (sessenta) pedidos de impeachment encaminhados para o Presidente da Câmara Federal, além dos processos que tramitam em Cortes Internacionais. Ser totalmente leal a Bolsonaro é avalizar, enquanto general e ministro da Defesa, sua política negacionista da pandemia ao incentivar aglomerações, ao difundir o uso da cloroquina, ao romper com a OMS, ao adotar uma postura irresponsável diante da aquisição de vacinas, ao agredir e ameaçar abertamente os governadores da Federação do Estado Brasileiro. Ser totalmente leal a Bolsonaro é, entre outras coisas, concordar com a política externa desenvolvida pelo chanceler Ernesto Araújo, em sua lunática teoria da conspiração, conduzindo o Brasil a tornar-se uma nação pária no cenário mundial.

Pergunta-se então: por que a lealdade total acabou? O que o levou a romper com ele? Por ser constituinte do Estado brasileiro, a soberania popular tem o direito de saber a verdade.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Editora Dialética); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .