Nem só de generais e caudilhos se fazem as ditaduras
Diz-se, com certo orgulho, que no final das contas, a democracia não está tão mal na America Latina. Algumas vozes chegam a admitir que as nossas instituições políticas estão bem consolidadas. É possível que alguns indícios observados (não falemos sobre indicadores, por recatada prudência) sejam verdadeiros ou que não passem da projeção inconsciente de nossas utopias. Seja como for, se a presença frequente de generais nas chefias de Estado, por este lado do planeta, pode ser levada em conta da quebra de requerimentos constitucionais básicos, melhoramos significativamente na escala republicana de governo democrático. Exceção feita à Venezuela, os generais recolheram-se às suas casernas. Os longevos irmãos Castros pertencem a outra categoria de ditadores, não são, de fato, militares de carreira, sequer conhecemos a sua patente, tampouco são caudilhos, embora detenham o controle da força armada e as empreguem politicamente, sob justificadas intenções. Fora o coronel Chávez, nestas derradeiras duas décadas não há registro, por aqui, de nenhum militar à frente de Estados e seus governos. O que não é garantia confiável contra o risco de cairmos nos laços dos “condottiere” políticos de ocasião, dos salvadores e emissários da revelação, dos “enviados” trazidos nos braços dos populismos históricos – para nos salvar do nosso opróbrio, da nossa miséria e da nossa insensatez.
O tragicômico do ritual do Impeachment
A cerimônia do Impeachment a que fomos condenados pela imposição do destino e a irresponsabilidade dos homens e mulheres no exercício do governo, arrasta-se descuidadamente diante de nossos olhos, entre surtos de comicidade explícita e esgares de drama. Movimentam-se pelas Comissões, agitadamente, atores inseguros de seu papel, em negociação aberta para o apresamento de almas indefesas, e mulheres insinuantes com seus argumentos audazes e combativos, prenhes de lealdades passageiras…
Os rituais celebrados nas pajelanças do impedimento presidencial demonstram, entretanto, que as nossas instituições continuam frágeis e os atores que se movimentam pelo palco apinhado de transeuntes — velhos canastrões que a tolerância da assistência aceita e mantém, com raros apupos dissonantes – e ainda dão as cartas desse jogo fora de moda.
A falta que Bonifácio e Rui nos fazem
Esquecemos as advertências lançadas por José Bonifácio, o maior dos nossos poucos estadistas, na relação direta do esquecimento a que foi lançado, sobre o sortilégio das manipulações do poder. Lembremo-nos, ao menos, de Rui, tornado citação erudita ritual e conveniente de textos jurídicos, quando reclamava, nas frondes da República Velha, que “ainda não houve presidente nesta democracia republicana que respondesse por nenhum dos seus atos”. E arrematava afirmando que a Lei de Responsabilidade, nos crimes do chefe do Poder Executivo não fora adotada “senão para não se aplicar absolutamente nunca”. E avançava em considerações que retratam situações e circunstâncias que persistem hoje, ainda: “O presidencialismo brasileiro não é senão a ditadura em estado crônico, a irresponsabilidade geral, a irresponsabilidade consolidada, a irresponsabilidade sistemática do Poder Executivo”. Mudou o presidencialismo ou mudamos nós, em pouco mais de um século? Essas evidências ignoradas estão presentes nas alongadas discussões que dissimulam a retórica atrasada que cerca o velório alegre de nossas instituições.
As crises, como os problemas se desfazem por si mesmos, como pensava Dom João VI
Vivemos conjuntura agravada pela persistência em práticas historicamente repetitivas, muda-se a fachada suspeita de uma improvisada construção republicana, sem que se altere a estrutura em ruína; pavimenta-se uma ciclovia em encosta arriscada sem que se leve em consideração a força das marés e o transcurso do tempo útil. Segundo essa metodologia arcaica do governo do Estado, as crises só terminarão quando surgirem novas crises, umas empurrando as outras para os escaninhos do esquecimento, assim como temos vivido, desde que o Príncipe Regente pôs-se a deliciar-se, entre os seus estafantes afazeres da Coroa, com musicas sacras no Convento de Santo Antônio. E Dom Pedro II, nosso rei-ciência, deslumbrava-se com as descobertas arqueológicas do Egito… Confundem-se no varejo da incompetência histórica de nossos governantes as instituições, as políticas e as normas de Estado que definem compromissos de longo prazo – liberdade, segurança, bem estar, crescimento econômico e social, expansão do conhecimento — com as políticas de governo, instrumentais, estratégicas, sujeitas a mudanças para que as funções essências do Estado sejam cumpridas.
A seguir-se receita preservada entre nós para o governo do Estado, as crises político-institucionais e as que a elas se associam só se resolverão com o surgimento de novas crises, uma a empurrarem as outras para os escaninhos do esquecimento.
A confusão proveitosa entre o entendimento do que sejam Estado e governo
Confundem-se, no varejo da incompetência histórica de nossos governantes, das instituições, das políticas e normas de Estado, justamente as que definem os compromissos de longo prazo – liberdade, segurança, bem estar, crescimento econômico e social, a expansão dos conhecimento, etc. – com as políticas do governo, estas, instrumentais, estratégicas, sujeitas a mudanças para que as funções essenciais do Estado sejam realizadas.
A arte da Mentira política: da mentira faz-se a dúvida e a verdade pela arte da semântica
Sem a percepção clara dos paradigmas que regem as relações entre Estado e governo, entregam-se os governantes, com rara criatividade, conforme suspeitava Jonathan Swift na sua “Arte da Mentira Política”, à práxis da mentira: a mentira política nasce na cabeça de um governante em desespero de causa para ser amamentada e embalada pela credulidade popular. De mentira faz-se dúvida e verdade pelo jogo inconsútil da semântica, inverte os sinais lógicos do entendimento e apaga a clareza das intenções.
No Brasil, como na maior parte dos países, democráticos ou não, um novo mundo de aparências suplantou a realidade. Este sistema de tornar-se parecido transformou-se, por fim,em uma “comédie des apparences”, segundo alguns analistas desengajados. Dá-se, hoje, uma forma bem conseqüente de personalização do poder: a imagem substitui a idéia, a promessa à ação, a interpretação ao fato, as virtudes públicas convivem com os vícios privados. O atores do poder do Estado não se defendem das acusações de que são alvos: detratam os acusadores, procuram desqualificá-los como cidadãos e pessoas; desmontam o dolo de que são acusados e o transformam em ações de interesse público…
Roger-Gérard Schwartzenberg, cientista político francês usa a expressão “jeu d’artifice” para definir a estratégia política, forma acabada de exercício da impostura: palavras imagens e suportes ideológicos, tudo se combina e articula para enganar o público, a opinião pública, os cidadãos – e confundir o seu esforço para chegar à verdade.
Estratégias múltiplas e cumulativas para a manipulação da verdade
Textos apócrifos aparecidos na web e as idéias que sugerem, uns de Chomsky, outro de Lenine e mais dispersos; e textos de autoria comprovada – todos falam de estratégias sobre a manipulação de massa através dos meios de comunicação de massa. Sem que sejam injustamente omitidos textos reputados de psicólogos e cientistas políticos, juristas e semiólogos. Uns e outros ocupam-se, segundo sua visão dos processos sociais, da engenharia da manipulação da realidade, da verdade e da mentira políticas, seja por iniciativa do aparelho do Estado, seja pela political media, nas vertentes amplas do poder, dos que lá estão e pretendem mantê-lo e dos que querem alcançá-lo e conservá-lo…
Em breve sumario, aconselham, entre outros dribles da contra-realidade: a) a técnica da distração (como desviar a atenção do público dos problemas importantes e das ações governamentais, com a inundação de informações insignificantes; b) criar problema para oferecer soluções; c) estratégia da gradualidade para tornar aceitável uma medida inaceitável…d) explorar o aspecto emocional em detrimento da reflexão, criar cenários falsos, induzir a conclusões superficiais; e) falar a linguagem popular, usar de gírias e obscenidades permitidas para estimular a mediocridade e a ignorância do público; f) eleger “inimigos” internos e situações ameaçadoras: se possível eleger um inimigo externo poderoso ao qual não possa desafiar pelas armas; g) atribuir a fatores externos a situação interna da economia; h) fazer-se de vitima de forças poderosas; i) aliciar movimentos sociais e a consolidação de conselhos transversais como forma prática de coletivos democráticos, concorrentes das instituições constitucionais – e fazê-los constitucionais; j) a aceitação do contraditório ao discurso do poder equivale a dar força a manobras contra a ordem “republicana”, e a favorecer a ação “golpista” da “direita”…
O “nós”contra eles
Ignorar essas armadilhas que os fatos e suas circunstâncias armam corresponde, como diz o escritor Luiz Ruffato, aceitar que o Brasil se divida “entre pessoas que pensam como nós (os bons, inteligentes e honestos) e as que pensam diferente de nós (os maus, burros e corruptos)”. O maniqueísmo é o novo ópio do povo, ou dos tolos, como diria o poeta Iacyr Freitas, dispensado em doses patrióticas aos consumidores de utopias fabricadas.