PRÓLOGO OU SABE-SE LÁ O QUÊ
Embaralhou as cartas de tarô e as jogou na mesa. Uma delas vira por intervenção do acaso ou do destino – talvez deste último. “Alguma coisa para o amor”, era o interesse dele naquele momento. Ainda estava ferido de paixão pelo outro rapaz que o deixara. Ainda sentia uma dorzinha que se arrastava todo dia e o torturava sutilmente à noite, nas horas de solidão, naquelas horas nas quais o corpo arde em fúria e o desejo envenena os sentidos. Estava sozinho, mas consigo, e só encontrava em si mesmo o sexo possível. Era em si e por si pela primeira vez e buscava no tarô respostas ou guias para entender o rio de águas turvas que é ser humano e estar vivo.
A carta teimosa era La Estrella ou a estrela. Algo como esperança, fé, bondade, potencial criativo, momento propício para o amor – seja qual for -, simbiose do passado com o futuro. O brilho da carta afastou a sombra da morte do amor nele. Olhou ao redor de si e o único amante possível, naquele instante, era ele mesmo.
Nunca esteve sozinho e esteve solitário a vida inteira. Negar-se, a exemplo, é estar só e desamparado. Portanto, esteve só, subjetivamente morto ou torpe. Aceitando-se e afirmando-se é que pode renascer ou acordar finalmente. Estar vivo é dádiva de lucidez crua.
Nada, absolutamente, permanece.
ATO UM: NÃO DITOS
Perplexa diante da vida
Tateando nos mínimos
Buscando belezas, sustos-encantos,
No inusitado dos cotidianos
Fazendo-me em asperezas
Cegueiras brancas, surdas, dialógicas,
A fim de encontrar o bom, o belo,
onde não havia.
Onde?
Outrora, talvez,
Reconstituída. Nunca em totalidades!
Morte: um mistério do deus.
Estou a deus dará
Mas lúcida.
ATO DOIS: EXECRADO
Execro-me
Exe
Cru
Me
Meu nome
da tua boca
Execrado.
No peito e no firmamento
Na eternidade e no instante
No ardor do desejo.
ATO TRÊS: REENCONTRO
Distância:
Dis
Tan
Te
Quando tarde
O coração dele
A reencontrar-me.
Chegada:
Sobre o lábio dele
Repousa o meu.
Sob minha pálpebra, em projeção
Paira o rosto dele glorioso como de um demônio.
Hálito flamejante, abraço terno
Uma memória que
Como uma gota d’água
Pinga feito tortura chinesa
Vezúvio em minhas entranhas.
ATO QUATRO: SÓ
Um. Tudo é um, a unidade.
A unicidade. Tudo é único ou deveria, como o pé de mangueira do quintal da casa dele. Tudo é ou está. Ou deveria.
Estar só é uma forma de acompanhar-se. Por isso mesmo nos assombra essa coisa insípida e insana que é a solidão. Ter-se é uma dádiva e abandonar-se é lei; suportar-se é duro como a superfície de um diamante.
Viver é o que nos resta.
EPÍLOGO SEM FIM
A ambição por prazer,
Por gozo ou por glória
Este tesão que
Ardente
Ferino
Primitivo
Espera, ainda
O amor.
Jair Cozta
Artista, produtor cultural e ativista queer
Contato: [email protected]