Crítica ao giro decolonial:  entre o anticomunismo e o  populismo reformista – Parte II – Por Victor Artavia __

Apresentamos hoje a segunda parte do ensaio do historiador marxista portoriquenho Victor Artavia, integrante da corrente marxista internacional Socialismo ou Barbárie (Sob), sobre o projeto teórico-político denominado “giro decolonial”. A terceira e última parte será publicada na próxima coluna, com todas as notas e a bibliografia. (Auto Filho, editor da coluna).

_____________________________________

Parte II

 Epistemologia política decolonial

Anteriormente detalhamos que, para os decolonialistas, a “matriz colonial de poder” é a chave estratégica para a compreensão das relações políticas estabelecidas pela Europa desde a conquista da América até o presente. A partir dessa avaliação, eles constroem uma epistemologia política com ênfase na classificação social, nas histórias locais, nas mudanças parciais, e defendem os “condenados da terra” como sujeito decolonial. Nas palavras de Walter Mignolo, “a opção decolonial é a opção que surge da diversidade do mundo e das histórias que, ao longo de cinco séculos, se depararam com ‘a única maneira de ler a realidade’ monopolizada pela diversidade (cristão, liberal, marxista) do pensamento único ocidental”. (Mignolo, 2009: 254).

Embora apresentem sua proposta como inovadora e radical, na realidade a epistemologia decolonial é composta por uma série de noções do pós-modernismo, pós-colonialismo e perspectivismo, cujo resultado é uma ode à fragmentação política e ao particularismo. Isso explica por que toda a sua abordagem tem um constante tom polêmico com o materialismo histórico, ao qual acusam novamente de ser determinista e eurocêntrico devido à sua concepção de classes sociais.

A classificação social e a sociedade das “pessoas”

Quijano sustenta que a colonização da América estabeleceu um novo padrão de poder mundial, dentro do qual a raça se tornou o determinante central para a articulação das relações de poder na sociedade. Por isso, defende que as diferenças sociais no quadro da “matriz colonial de poder” devem ser compreendidas a partir da noção de “classificação social”, que “refere-se aos processos de longo prazo em que as pessoas disputam o controle das esferas básicas da existência social e cujos resultados configuram um padrão de distribuição de poder centrado nas relações de exploração/dominação/conflito entre a população de uma dada sociedade e a história”. (Quijano, 2007: 114).

Diante do exposto, Quijano interpreta a sociedade como um espaço onde prevalece a luta por poder e recursos, mas não especifica nenhuma âncora social que explique tal conflito de interesses. Note-se ainda que os “sujeitos” em conflito são o “povo”, termo que não sintetiza nenhuma dimensão sócio-política. Por que os “povos” disputam? A resposta que o autor nos dá é pelo controle do trabalho, do sexo, da subjetividade, da autoridade, da natureza etc. Mas essa resposta é uma tautologia e, portanto, não estabelece nenhuma relação social que explique o motivo das disputas de poder entre “pessoas”, dando-a quase como um fato intrínseco ao ser humano.

Aqui eles destacam mais uma vez o essencialismo maniqueísta nas análises decoloniais, pois seu projeto carece de ferramentas conceituais para explicar materialmente os antagonismos sociais; ao contrário, eles concentram sua análise em relações epistemológicas alheias a qualquer tensão social: tudo se reduz à modernidade/colonialidade e à “matriz colonial de poder”! Assim, estabelecem que há uma disputa do “povo” com suas “histórias” pelo poder, mas nunca se analisa como se origina a luta pelo poder e controle dos recursos?

Em relação direta ao exposto, Quijano não perde a oportunidade de lançar ataques contra Marx, o materialismo histórico e sua concepção de classes sociais, que acusa de reducionista, visto que “refere-se única e exclusivamente a uma das áreas do poder , o controle do trabalho e de seus recursos e produtos (…) todas as outras instâncias da existência social em que se formam relações de poder entre as pessoas não são consideradas ou são consideradas apenas como derivadas das ‘relações de produção’ e determinadas por eles”. (Quijano, 2007: 113).

Quijano nunca deixa de nos surpreender com sua completa incompreensão do materialismo histórico! Às vezes temos a impressão de que suas notas sobre o “marxismo” foram obtidas da leitura de um “manual de treinamento político” editado pelo stalinismo soviético da Guerra Fria. Na concepção materialista da história, a produção não é um processo técnico ou unilateral, mas faz parte de uma relação social que opera na interação entre as classes sociais, mais precisamente, nas formas de exploração e opressão social. É por isso que Marx enfatizou que as condições materiais de produção determinam historicamente os seres humanos: diga-me como você produz e eu lhe direi quem você é! Se aderirmos à lógica de Quijano, essa afirmação confirmaria que a categoria das classes sociais é reducionista, visto que a primazia analítica é colocada nas relações de produção, em detrimento de outras esferas da sociedade onde se reproduzem as lutas pelo poder, como a sexualidade e o conhecimento.

Mas o materialismo histórico está longe dessa caricatura  “economicista vulgar” e  unilateral que Quijano e companhia nos oferecem. Para Marx, as relações de produção são a chave estratégica para a compreensão de toda a vida social, que não se limita à esfera das trocas econômicas. Por exemplo, no Manifesto Comunista, Marx e Engels dedicam várias passagens para problematizar a correspondência entre as relações de classe, as ideias e a moralidade das sociedades: por acaso se necessita de uma grande perspicácia para compreender que com toda modificação sobrevinda nas condições de vida, nas relações sociais, na existência social, mudam também as idéias, noções e concepções, em uma palavra, a consciência do homem? (…) As ideias dominantes em qualquer época, nunca foram mais do que as ideias da classe dominante” (Engels e Marx, sem impressão: 96). Mas ambos os autores vão além, pois avançam uma compreensão materialista da opressão das mulheres como produto da família burguesa patriarcal, análise que Engels aprofundará mais adiante em A origem da família, da propriedade privada e do Estado , onde estabelece que a opressão patriarcal das mulheres é produto da divisão social do trabalho entre ricos e pobres12.

Continuando com sua crítica, Quijano considera que a noção de classes sociais é determinista porque pré-configura as ações dos seres humanos a partir de sua localização na produção social, estabelecendo que “as pessoas são portadoras” de comportamentos estruturais automaticamente determinados por sua filiação de classe, negando qualquer espaço para a ação livre ou independente dos indivíduos. Linhas atrás indicamos que as relações de produção determinam historicamente os seres humanos, o que não deve ser assumido como um esmagamento das “estruturas” sobre os indivíduos, como parece acontecer na mente de Quijano. Ao contrário, a determinação histórica estabelece uma relação dialética entre os limites de toda a atividade social e as possibilidades de mudança histórica, para as quais é indispensável a intervenção consciente e revolucionária dos sujeitos. Marx foi categórico ao estabelecer os termos dessa relação onde “as circunstâncias fazem os homens tanto quanto os homens fazem as circunstâncias”, em oposição ao estruturalismo onde a história se passa sem sujeitos ativos, bem como contra qualquer interpretação idealista dos indivíduos, fora de qualquer realidade histórico-social.Também encontramos essa abordagem em um texto de formação política do Socialismo ou da Barbárie, onde se estabelece uma relação dinâmica entre determinação histórica, classes sociais e as perspectivas de revolução social: “A contemporaneidade da história não deve ser vista como algo puramente ‘objetivo’ que ocorre paralelamente a nós, mas como uma tarefa que envolve a nós, envolve as classes fundamentais e sua política, envolve a ação que os sujeitos sociais realizam no campo da luta de classes e transforma, para melhor ou para pior, a realidade das coisas”. (Saénz, s/g: 17).

Na verdade, Quijano debate-se contra a noção de classes sociais do estruturalismo e de outras correntes sociológicas, onde as classes são categorias abstratas que são definidas unilateralmente por variáveis ​​“duras” como a relação salarial, capacidade de consumo etc. Isso está longe da concepção dinâmica do materialismo histórico, onde a realidade social é interpretada a partir da luta de classes13, cujo desenvolvimento é mediado pela politização da classe trabalhadora, passo crucial para se transformar de classe em si em classe para si mesma, consciente de sua condição explorada e oprimida que deve lutar por sua emancipação social. Isso é essencial entender, porque nos remete à práxis como parte do materialismo histórico, onde a teoria é combinada com a experiência, neste caso, a prática revolucionária.

A ferida colonial, as histórias locais e a geopolítica do conhecimento

Em relação direta com a “matriz colonial de poder”, os decolonialistas argumentam que as relações sociais são marcadas pela “ferida colonial”, subproduto dos discursos racistas de classificação social. Por isso, Mignolo sugere que a opção decolonial “surge da diversidade do mundo e das histórias locais que, ao longo de cinco séculos, se depararam com ‘a única maneira de ler a realidade’ monopolizada pela diversidade (cristã, liberal, marxista) do pensamento único ocidental”. (Mignolo, 2009: 254).

A citação acima nos coloca diante de uma das categorias centrais da epistemologia política decolonial: a geopolítica do conhecimento. Essa abordagem é baseada na “teoria da dependência”, que sustenta que há um diferencial de poder na economia mundial entre os países do centro e da periferia, que é usado pelos decolonialistas para apontar que a mesma coisa acontece no plano do conhecimento devido à “colonialidade do poder”. Por isso, estabeleceu-se uma “geopolítica do conhecimento” onde entram em jogo biografias individuais e coletivas, determinando que qualquer modo de interpretar o mundo seja condicionado pelo lugar de enunciação dentro da estrutura de poder do mundo colonial moderno.

Concordamos com Mignolo e os decolonialistas em que todo conhecimento (ou interpretação do mundo) corresponde à realidade concreta, mas diferimos substancialmente em quais elementos constituem essa realidade (ou pelo menos na relação entre eles). Para a geopolítica do conhecimento, como o próprio nome indica, o fundamental são as contradições “geopolíticas” entre os blocos regionais, estabelecendo uma relação desigual entre os centros e a periferia de um império epistemológico das potências coloniais. Assim, as contradições entre as classes sociais são substituídas pelos antagonismos derivados da “geopolítica” e da “matriz colonial de poder”. No entanto, Mignolo se esforça para preencher essa lacuna em sua proposta, porém o resultado é uma transferência mecânica desta “geopolítica do conhecimento” às relações sociais desde a “colonialidade do poder”: primitivos versus civilizados, bárbaros versus europeus brancos/brancas, homossexuais e lésbicas contra heterosexuais.

Além disso, os decolonialistas argumentam que, dada a natureza geopolítica do conhecimento, o conhecimento universal é impossível, pois toda forma de interpretar o mundo é mediada por histórias locais. Isso deixa claro que a opção decolonial é uma variante da perspectiva epistemológica, onde todo conhecimento é restrito por parcialidade e/ou contextos sócio-históricos específicos, carecendo de qualquer ângulo de totalidade (García, 2013)14. Grosfoguel dá conta dessa abordagem “perspectivista” quando afirma que “o racismo epistemológico é intrínseco ao ‘universalismo abstrato’ ocidental, que oculta quem fala e o lugar de onde fala”. (Grosfoguel, 2007b: 71).

Note-se a enorme contradição dos decolonialistas, pois ao mesmo tempo que identificam uma “matriz colonial de poder” no quadro das relações desiguais entre os países do centro e da periferia (imperialistas e semicoloniais em termos do marxismo), quando se trata de propor uma forma de entender a “colonialidade” retrocedem ao sustentar perspectivas estritamente locais e fragmentárias. Isso leva os decolonialistas a um extremo relativismo epistemológico (e, portanto, político, como veremos na próxima seção), onde verdade e objetividade são praticamente equiparadas a simples percepções ou crenças: “A opção decolonial, a opção de convivência conflitiva, é um pensamento que assume objetividade entre parênteses desde o início: Acredito no que acredito e defendo e entendo que diante de mim há outra posição equivalente de alguém que defende suas crenças, mas sabe que a sua não é ‘a única maneira de ler a realidade’. Este é o espaço para o diálogo pluriversal”. (Mignolo, 2009: 264).

Para Mignolo isso representa a “fratura epistemológica” do projeto decolonial e, além disso, argumenta que fora dele estão os “espaços universais” onde a objetividade é assumida como absoluta, em clara referência a todos os projetos de modernidade, onde novamente inclui o marxismo como um pensamento com tendências “totalizadoras”. De fato, o materialismo histórico está longe dessa epistemologia decolonial, e em boa hora o é, porque para os interesses da classe trabalhadora, dos explorados e oprimidos, essa maneira de “compreender” o mundo equivale, para dizer o mínimo, a suicídio político.

Para ilustrar essa ideia, suponhamos um diálogo “pluriversal” onde um trabalhador sustenta que seu patrão o explora na fábrica, enquanto o mesmo patrão alega que ajuda seu “colaborador” garantindo-lhe um salário estável. Quem está certo sob a epistemologia decolonial? Se nos ativermos à afirmação de Mignolo… ambas as posições seriam formas equivalentes de interpretar a realidade. Possivelmente algum decolonialista argumenta que o exemplo é falho porque não pode haver um diálogo “pluriversal” entre um trabalhador e um patrão, visto que há uma relação de poder. Então, vamos levar o raciocínio para outro cenário, por exemplo, a vanguarda social formada por ativistas independentes e organizações políticas. É normal que diante dos processos políticos existam posições diferentes, muitos dos quais se refletem nas assembleias (sindicais ou estudantis) ou nos jornais das organizações (por exemplo, debates sobre cargos eleitorais ou contra governos “progressistas”). Sob os critérios do marxismo revolucionário, esses debates fazem parte da luta de tendências, que são enriquecedoras para a vanguarda como um todo. Da lógica decolonial, essa luta de tendências é desqualificada como “sectarismo” e seria uma tentativa de impor uma leitura única ou absoluta da realidade. Onde quer que você olhe, os diálogos “pluriversais” estão despolitizando! leitura única ou absoluta da realidade. Onde quer que você olhe, os diálogos “pluriversais” estão despolitizando!

É falso que o marxismo defenda “verdades absolutas”; ao contrário, insiste na natureza histórica e prática do conhecimento humano, que Marx já apontava na segunda tese sobre Feuerbach: “O problema de se se pode atribuir ao pensamento humano uma verdade objetiva, não é um problema teórico, mas um problema prático. É na prática que o homem tem que demonstrar a verdade (…). A disputa sobre a realidade ou irrealidade de um pensamento isolado da prática é um problema puramente escolástico15”. Em um sentido similar se expressava Trotski quando, ao polemizar com o doutrinarismo panfletário da burocracia stalinista, lembrou que “o marxismo não pretende ser um sistema absoluto. Está ciente de seu próprio significado historicamente transitório.” (Trotsky, 2004: 166).

O problema subjacente que surge entre o marxismo e a epistemologia decolonial é a abordagem sobre o todo e as partes, entre o universal e o particular. Para o materialismo histórico, o mercado mundial e a história universal são um produto histórico do desenvolvimento das forças produtivas realizado pelo capitalismo, uma conquista de longo prazo da humanidade, pois impôs uma ruptura com o isolamento de regiões inteiras do planeta, constituindo um intercâmbio universal em todos os aspectos da vida social (das mercadorias até às ideias). Isso não significa ignorar que a universalização das relações sociais foi realizada, como apontavam Marx e Engels, com a “artilharia pesada” da burguesia para forjar “um mundo à sua imagem e semelhança”, cometendo mil e uma atrocidades em o nome de “progresso”. Mas, diante do desenvolvimento desigual e combinado, o materialismo histórico não antepõe uma valoração romática ou maniqueísta da história, senão que avança para propor uma perspectiva de transformação social a partir dos desenvolvimentos materiais alcançados pelo capitalismo para construir um mundo sem exploração e sem opressão social, a qual está magistralmente sintetizado na última linha do Manifesto Comunista : Trabalhadores de todos os países, uni-vos!

Essa abordagem de totalidade histórica do marxismo também incorpora dialeticamente “histórias locais”, pois é uma concepção onde conceitos e categorias estão em constante tensão com as particularidades dos contextos sócio-históricos (García, 2013). Trotski enfatizou que essa dialética entre o universal e o particular era parte fundamental do materialismo histórico: “A essência do marxismo consiste nisto, em que enfoca a sociedade concretamente, como objeto de investigação objetiva, e analisa a história como se faria em um gigantesco registro laboratorial. O marxismo considera a ideologia como um elemento integral subordinado à estrutura material da sociedade. O marxismo analisa a estrutura de classes da sociedade como uma forma historicamente condicionada pelo desenvolvimento das forças produtivas (…). Precisamente esta aproximação objetiva confere ao marxismo um poder insuperável de previsão histórica”. (Trotski, 2004: 132-133).

Ao contrário, falta aos decolonialistas qualquer ângulo de totalidade, o que acaba se manifestando na incapacidade de traçar uma proposta de emancipação universal contra a “matriz colonial de poder”. Como críticos da modernidade e das “grandes narrativas”, eles argumentam que as mudanças históricas não são totais nem homogêneas, razão pela qual os debates sobre se ocorrem aos saltos ou aos poucos são insubstanciais (Quijano, 2007). Assim, o marxismo revolucionário aponta a partir de 1848 para um horizonte estratégico de luta: a unidade dos explorados e oprimidos do mundo para destruir o capitalismo e emancipar a humanidade. No caso dos decolonialistas do século XXI, eles são incapazes sequer colocar isso no papel, pois toda sua proposta termina sendo uma justificação do etapismo na mudança social, a qual disfarçam com sua epistemologia perspectivista e a “coexistência conflitiva” (este conceito com derivas reformistas será abordado na próxima seção).

O sujeito coletivo decolonial

Em sintonia com a abordagem da “classificação social”, os decolonialistas defendem a formação de sujeitos coletivos, cuja constituição é derivada da “ferida colonial”. Isso é sintetizado por Mignolo quando, baseando-se na obra de Frantz Fanon, chama o sujeito decolonial de “condenados ​​da terra”: “Os condenados ​​são definidos pela ferida colonial, e a ferida colonial, seja física ou psicológica, é uma consequência do racismo, o discurso hegemônico que coloca em questão a humanidade de todos aqueles que não pertencem ao mesmo locus de enunciação”. (Mignolo, 2007: 34).

Assim, para os decolonialistas, o sujeito coletivo é constituído a partir de discursos opressores e não como consequência da exploração das classes sociais. Essa abordagem é muito semelhante às abordagens pós-modernas em torno de identidades primárias (García, 2011), onde os sujeitos se estabelecem em correspondência com sua “comunidade” mais próxima e experiencial (por isso o giro decolonial também é usado por ativistas feministas e LGBT). Embora se apresente como um discurso “radical” e/ou contestatário, na realidade esse raciocínio é profundamente conservador e reacionário. A centralidade nos “excluídos” é um subproduto da política neoliberal que, aproveitando-se da desestabilização e fragmentação da nova classe trabalhadora desde os anos 80 (através da terceirização e da migração), logrou transferir os debates para novas coordenadas políticas muito mais favoráveis para os capitalistas: da exploração de classe para a exclusão social, potencializando a divisão entre os explorados e os oprimidos!

Isso é analisado com muita nitidez por Daniel Zamora, quando destaca que, com a “revolução neoliberal” de Margaret Thatcher, as discussões passaram a se orientar exclusivamente em torno de políticas de “inclusão social”, às quais aderiram a grande maioria dos intelectuais e correntes de esquerda (…): “esta lógica – a redefinição do conflito social como um conflito entre duas frações do proletariado mais que entre o capital e o trabalho – ainda pode ser encontrada tanto na esquerda como na direita (…)  ambos extremos terminam aceitando, em detrimento de todos os ‘trabalhadores’, a centralidade da categoria dos ‘excluídos””. (Zamora, 2013: 2, tradução de Marcela Ramirez).).

Precisamente essa lógica fragmentária está implícita na categoria de “condenados da terra”, originalmente cunhada por Fanon em 1961. Esse autor argumentava que, nos países coloniais, o sujeito revolucionário era o campesinato, ao mesmo tempo em que proclamava uma perspectiva antioperária por ser a “fração mais acomodada do povo”: “Nos países colonialistas, o proletariado tem muito a perder. Representa, com efeito, a fração do povo colonizado que é necessária e insubstituível para o bom funcionamento da máquina colonial: condutores de bonde, mineiros, estivadores, intérpretes, enfermeiros etc.,… Esses elementos são os mais fiéis apoiadores dos partidos nacionalistas e que, pelo lugar privilegiado que ocupam no sistema colonial, constituem a fração ‘burguesa’ do povo colonizado”. (Fanon, 1999: 86). O ceticismo de Fanon a respeito da classe operária chegava a tais extremos que sustentava que nas cidades a revolução entraria por meio do lumpenproletariado, “uma das forças mais espontâneas e radicalmente revolucionárias de um povo colonizado”, (Fanon, 1999:102).

Dado que nenhum dos decolonialistas discute com essas avaliações de Fanon (que, ao contrário, eles reivindicam como uma de suas matrizes teóricas), assumimos que eles compartilham suas avaliações da classe trabalhadora como privilegiada no sistema. De qualquer forma, não há dúvida sobre o ceticismo que eles têm sobre a definição da classe trabalhadora como sujeito histórico, que consideram parte de uma visão teleológica da história.

Contrariamente a essa perspectiva, a definição do sujeito histórico do marxismo responde a uma análise materialista das relações burguesas de produção, especificamente na contradição entre capital e trabalho. Já avançamos muito a respeito páginas atrás, por isso vamos nos limitar a fazer algumas notas complementares. Em primeiro lugar, esse tipo de ataque à centralidade da classe trabalhadora já era comum nos tempos de Marx e Engels, ao qual responderam que a potencialidade objetiva do proletariado estava em ser a única classe que, para alcançar sua verdadeira libertação social, deveria lutar a fundo contra todas as formas de exploração e opressão social da sociedade burguesa. Isso foi magistralmente sintetizado em uma passagem de A Sagrada Familia: “Se os autores socialistas atribuem esse papel mundial ao proletariado, não é devido, como a crítica finge acreditar, porque considerem os proletários como deuses (…) eles não podem libertar-se sem suprimir suas próprias condições de existência. Eles não podem suprimir suas próprias condições de existência sem suprimir todas as condições desumanas de existência da sociedade atual que estão condensadas em sua situação. Não se trata de saber o que este ou aquele proletário, ou mesmo todo o proletariado, propõe momentaneamente como fim. Trata-se de saber o que é o proletariado e o que deve fazer historicamente segundo o seu ser”. (Engels e Marx, 2008: 51).

Da citação acima decorre que Marx e Engels não fazem nenhum fetichismo da classe trabalhadora como tal, apenas destacam sua potencialidade objetiva de revolucionar toda a sociedade burguesa, pois ela só sai vitoriosa “eliminando a si mesma e seu oposto”. Em outras palavras, a única maneira de se libertar de sua condição de exploração é através da destruição da propriedade privada capitalista, todo o resto seria [feito por meio de] reformas em sua condição de classe explorada.

Em segundo lugar, essa potencialidade objetiva está dialeticamente relacionada à perspectiva da “necessidade histórica” ​​(que não deve ser assumida de forma mecanicista ou teleológica), cujo desenvolvimento unitário se materializa no campo da luta de classes: “Mas que algo seja necessário (e o socialismo é!), que as pré-condições objetivas para ele sejam dadas, não significa que ela [a necessidade histórica]  inelutavelmente se imponha. Porque, como disse Marx, a história não faz nada, não é nenhum tipo de agente independente, quem a faz, quem sente e luta, são os próprios homens. Circunstâncias objetivas marcam apenas as condições de sua ação, seu alcance e limites, sua ‘possibilidade objetiva’, nunca o resultado das coisas. Possibilidade objetiva que tem que ver com as condições materiais e históricas que fazem ‘necessários’ determinados desenvolvimentos, porém não levam teleologicamente a eles: isso já depende das lutas das forças vivas na alavanca histórica”. (Sáenz, 2014).

Diante do exposto, há uma relação direta entre a identificação dos sujeitos sociais e as perspectivas estratégicas das correntes políticas. No marxismo revolucionário, o compromisso com a classe trabalhadora como sujeito social determina uma abordagem de revolução social contra o capitalismo, pois a única maneira de libertar a classe trabalhadora de sua exploração é destruindo as relações burguesas de produção. Isso não deve dar lugar a uma posição sectária contra outras classes ou setores oprimidos da sociedade capitalista, o que seria incorrer em um “obreirismo panfletário” que está longe do marxismo revolucionário. A experiência histórica do século XX mostrou que para o triunfo da revolução proletária é fundamental conquistar o apoio desses setores na perspectiva de estabelecer um governo da classe trabalhadora, os explorados e oprimidos. Algo que o marxismo revolucionário sempre deu conta, como foi exposto na seção anterior que abordou o debate entre Lenin e Trotsky sobre o colaboracionismo revolucionário entre a classe operária e o campesinato, critério que poderia ser extensível no século XX a outros setores sociais.

No caso do giro decolonial (e outras variantes autonomistas e populistas) a ênfase nos “condenados da terra” implica uma perspectiva estritamente contra a “matriz colonial do poder” e seus discursos “racistas”, deixando incólume a exploração de classes sociais. É o que delimita Zamora quando destaca que “A nova centralidade dos ‘excluídos’ ou das ‘classes inferiores’ não só altera os termos do problema como conta também como solução”. (Zamora, 2013: 3). Faremos referência a isso na seção a seguir.

 

 

 

Auto Filho

AUTO FILHO é professor de Filosofia e Economia Política da Universidade Estadual do Ceará. Foi editor literário do jornal Gazeta de Notícias e Crítico de Arte do jornal Unitário.