A coruja de Minerva alçou seu voo raso no céu do fim da história, por Pedro Henrique

A coruja de Minerva alçou seu voo raso no céu do fim da história – em pleno século XXI –, na cidade de mais de um milhão de fios, no 5° ano pós-apocalíptico.

Coruja intoxicada, ambulante, pedinte, se alimentando com os pombos na Praça do Ferreira.

Smog à frente da vista cansada, melancólica, bem antes do entardecer. Bitcoins nos espaços de jogatina mundiais; armas químicas numa Síria prevista por quem? – Isaías, Daniel, João? Buracos negros e um loop tentando mediar o subatômico e os gigantes astros celestes espalhados pelo cosmos sem fim.

A arqué poderia ser uma frequência de onda-partícula espiralada, deixando todos os metafísicos boquiabertos, menos Krishna ou Trismegisto, quem sabe, mas ainda assim lhe faltaria a palavra criadora de Deus no gênesis bíblico, o logos ordenador do caos na cosmologia dos filósofos gregos antigos, o verbo que se fez carne, segundo João.

A filosofia todinha, a história humana toda seria uma realidade tridimensional: pensamento, linguagem, ser. Representação (Vorstellung) ou apresentação (Darstellung), entravam em querela os alemães (Kant e Hegel); nome etiqueta das coisas ou realidade essencial, entravam em querela os gregos (Crátilo de Platão) e medievos (querela dos universais); até mesmo o pretensioso Aristóteles, “O Filósofo”, segundo Tomás, teria a face corada vendo suas quatro causas – meio, fim; forma, conteúdo – sendo substituídas por quatro grandes forças da physis científica contemporânea: força nuclear forte e fraca; campo eletromagnético; força gravitacional.

Mas ainda assim lhe faltaria a alquimia do verbo, o intangível significado, aquela coisa fantasmagórica que habita em nós, aquela centelha, aquela dobra que nos faz infinitos, ainda que circunstanciados por forças tridimensionais (altura, largura, profundidade), sendo a memória, o tempo, uma justaposição linear de imagens, como no cinema – a quarta dimensão, a sétima arte. Sabe-se lá quantas dimensões ainda haveriam: memória arquetípica da espécie; herança estelar presente nos ossos; algo além do espaço-tempo. Mais do que sete selos – sete cores, sete chakras.

Essa dobra é o pensamento, dádiva e maldição, potência infinita e ínfima, fantasmagórica, habitual circunstanciação egóica – na ponta do iceberg brilhando sua luz em código morse binário clamando por um resgate.

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Fariseu, hipócrita, doutor da lei. A quem se fala do ar, como metáfora, e não se entende – entenderia algo do céu, se acaso lhe contasse? Beberia da minha água? Nasceria de novo pelo espírito? Melhor seria se não enxergasse, porque então lhe seria revelada a simplicidade do que chama de fonte criadora, Deus, céu, Pai, ser… Um estranho tipo de amor uniu o céu e a terra (imagem ainda vertical, é bem certo), um estranho tipo de amor lhe reconectou com a parte que lhe faltava, o outro, reconectando-os, assim, em algo próximo do que chamam de comum, comum a muitos, comum a todos – os seres: do inorgânico ao orgânico semipensante.

Seria preciso crer para entender – Isaías? Agostinho? Seria possível demonstrá-lo logicamente, ontologicamente, por necessidade pensante, racional, dominicano Tomás? Seria um demiurgo contemplando essências, puras formas, ideias (eidos)? Seria um motor imóvel, puro ato? Seria ser e nada mais? Seria essa sua assembleia, essa sua retórica, essa sua humana condição a medida de ser e não ser? Demonstraria Deus como condição, pelo infinito, de tua consciência angustiada com o nada, com a dúvida cética, na clareira da tua sala de estar, garantido-a também como coisa extensa? Ou seria uma só, substância autocriadora, autopoiética, com seus atributos e modos? – Imanência, imanência, imanência, conatus é a tua condição – condenação – danação. Seria, enfim, esse teu apocalipse histórico da Ideia, a autoconsciência, pensamento e ser, lógica e ontologia, se separando e se reconciliando no espaço-tempo, nessa vil história de ressentimento e reconhecimento, de mútua exclusão e dependência entre senhor e escravo, nesse romance de formação – ou seria drama trágico, barroco? – do Espírito que Wilhelm Meister algum um dia compreendeu? A coruja de Minerva alçou seu voo raso… e seria preciso não sucumbir ao terror da vontade particular; seria preciso, antes, atravessar o deserto de gelo da abstração para alcançar o filosofar concreto, seus cimos luminosos – seria, talvez, pedir muito.

Pedro Henrique

"Anota aí: eu sou ninguém"