E a conversa, fluindo no curso de sua trilha natural, prolongou-se, agora, por onde o futebol – ontem, apenas o ópio do povo, com campos de várzeas que fabricavam verdadeiros gênios da bola e estádios de alambrados e arquibancadas de madeira ou apenas cimentadas, sem falar na “geral” desprovida de assentos, os quais acolhiam milhares de aficionados (os arquibaldos e geraldinos, figuras imortalizadas pelo genial cronista e dramaturgo Nelson Rodrigues); hoje, o prazer da elite de muitas posses, a cujos semideuses paga fortunas em milhões de unidades monetárias: dólares ou euros, principalmente, além de erigir templos fantásticos, as arenas de arquiteturas arrojadas e de múltiplos usos, – o futebol, repito, já estende os seus tentáculos pela ambiência virtual da modernidade eletrônica, arrevesando-se com a política tradicionalmente imposta pelos “velhotes” que, até a gestão do franco-brasileiro João Havelange, comandavam, com pulso forte, a federação internacional – a vetusta Fifa –, conservadores in extremis, que jamais admitiam qualquer movimento evolucionista que, propondo revolucionar o modus operandi do sistema, a fim de revitalizá-lo, pudesse descaracterizar o bom e velho esporte bretão. A humanidade evoluía; o mundo evoluía; só o futebol não.
É o mestre Athos quem dá o pontapé inicial na bola da vez:
– O que vocês têm a dizer a respeito do tão badalado VAR ou árbitro de vídeo?
– É minha opinião – intervém Aramis – que D’Artagnan nos diga o que pensa sobre a matéria, até porque ele está anos-luz adiante de nós como praticante da arte de sofrer, ou melhor, de torcer.
– Se assim tem de ser que assim seja. Desde já, peço que os amigos não se impacientem, se…
E Porthos interrompe as preliminares de D’Artagnam, autorizando-o a manifestar-se ao estilo já conhecido de todos:
– Não economize palavras, velho! Não minimize o discurso. Sinta-se à vontade. Faça como achar melhor. Sempre estamos dispostos a ouvi-lo. Saboreamos os detalhes que você sempre ponteia nas suas reflexões. Avante, companheiro!
– Obrigado, amigo. – O “estrategista temperamental” pigarreia, antes de prosseguir. – Pois bem. A modernidade no futebol aconteceu, em priscas eras, não propriamente no âmbito das regras, dos métodos, das interpretações dos fatos. As técnicas evoluíram e, com elas, as táticas. O então já consolidado 2-3-5 desapareceu por completo. E surgiram o WM, o efeito sanfona e o ferrolho, além de outros. Válido é recordar, por exemplo, o “ponto futuro” ou overlapping de Cláudio Coutinho, algo parecido com o que Nilton Santos, o “enciclopédia”, já fizera na Copa da Suécia (1958), arriscando-se com ouvido e olhos de mercador para os gritos e gestos de um quase alucinado Vicente Feola – “Volta! Volta!” –, bem como os gols do ponta direito e falso centroavante Jairzinho na Copa do México (1970) e até o estonteante e revolucionário desempenho do carrossel holandês, também chamado de laranja mecânica, na Copa da Alemanha (1974). Tudo isso significava, em última análise, afronta aos rigores do padrão Fifa da época. Era, a meu ver, o artista se insurgindo contra a rigidez das normas, dos princípios.
– E, com o advento da televisão, não seria razoável pensar em evolução?
– Sim, seria, meu caro Porthos. Nas transmissões televisivas, após a introdução das imagens em cores, o replay, ou a imediata repetição do lance, e o slow motion, ou a câmera lenta, causaram impacto por demais positivo em meio aos telespectadores. Mas a Fifa, com seus velhinhos ultraconservadores, não se curvava à intervenção externa nas decisões das arbitragens. Os árbitros – então chamados de juízes – eram soberanos ali, entre as quatro linhas que delimitavam quadrangularmente o campo de futebol. Mudanças aconteceram, é claro. As copas do mundo – evento maior da modalidade – foram redimensionadas, com o ingresso de países que, no modelo antigo, jamais participariam desse momento mágico do futebol mundial. O patrocínio da televisão instaurou um modelo financeiro bem diferente do antes adotado. Surgiu o futebol-empresa. E, com ela, as ações em bolsa, os acionistas, o controlador, o sócio-torcedor.
– Permitam-me, senhores, trazer um adendo à explanação do amigo. – E Aramis faz uma breve reverência a D’Artagnan, antes de se pronunciar. – Voltando a um passado não muito recente, lembro-me de que houve uma época, aí pela década de oitenta, em que a escassez de gols em competições nacionais levou a imprensa esportiva a buscar, nos amantes do futebol, sugestões que visassem à minimização das causas de tão absurdo fenômeno, porquanto era e é o gol o principal objetivo desse esporte. E alguém chegou a propor que fosse criada uma “sobretrave”, ou seja, uma trave adicional superposta à tradicional, com um metro a mais no alto e nas laterais, adjungidas por telado que, embora não ampliasse o vão do gol, aumentaria a possibilidade de permanência da bola em jogo, em área sempre propícia a finalizações, a arremates a gol. Os gestores do futebol não acolheram a ideia, julgando-a ser um despropósito.
E o Porthos intervém, assinalando:
– Laterais cobrados com tiros livres indiretos, eis outra proposta que morreu no nascedouro, apesar da pertinência, afinal trata-se de esporte que deve ser jogado com os pés. E a cobrança ainda se dá mediante arremessos manuais.
– Sem falar na sugestão de que se criassem linhas intermediárias, ou seja, entre o meio do campo e as linhas de fundo de cada lado, restringindo a esses quartos de área de jogo os espaços de marcação de impedimentos. Houve até quem defendia que fossem eles extintos…
Um Athos sempre zeloso no encaminhamento de suas questões, interrompe o sempre falante D’Artagnan, advertindo a todos quanto ao real propósito da sua indagação inicial:
– Reputo interessante tudo o que até agora foi dito. Lembro, apenas, que a minha consulta ainda não foi plenamente atendida. E o que dizer sobre o VAR, senhores?
– Perdoe-me, mestre. – É D’Artagnan quem retoma o encaminhamento da conversa. – Naveguei por mares outros sem seguir a carta de navegação; assim jamais chegaria ao porto desejado. O VAR é, em princípio, a mais pontual das reformas que o processo de remodelagem do padrão Fifa põe em prática, em conjunto com mudanças de regras seculares, tudo isso com o propósito de dar maior confiabilidade e dinamicidade aos espetáculos futebolísticos pelo mundo afora. O VAR encerra, a rigor, a legitimação da intervenção externa na arbitragem, mesmo que ao árbitro central ainda compita a decisão. A revisão de lances através de imagens captadas por múltiplas câmeras de alta resolução, vistas e revistas em ambiente fechado, consiste na tentativa – válida, a meu ver – de dotar o jogo de futebol da inquestionável legitimação, algo que garanta a justeza do resultado. O louvável procedimento fragiliza-se, contudo, ao depender, fundamentalmente, do julgamento humano. É aí que o bicho pega. Ora, os agentes do VAR também cometem erros; e, quando erram, as consequências se tornam, além de danosas, desastrosas por atingir sentimentos profundos, por afetar emoções puramente humanas. Sem falar na demora da resposta, azucrinando os torcedores que, postos na dúvida, perdem a oportunidade da vibração, da explosão de alegria por que tanto buscam.
– Dou-me por satisfeito, amigos. – É a voz sempre serena de Athos. – Quanto à fragilidade humana, agora me veio à mente um fato, de natureza policial, que muito reclama, de todos nós, a devida atenção com os nossos relacionamentos pelas famigeradas redes sociais. Isto eu ouvi num programa de rádio. Uma jovem vendeu o seu notebook por um desses aplicativos da internet. O comprador propôs mandar um motorista de Uber para, mediante a entrega do comprovante de depósito do exato valor entre eles acordado na conta bancária da vendedora, apanhar com ela o objeto do negócio. Ela aceitou. E assim tudo se fez. Negócio concluído. No dia seguinte, a jovem, antes de efetuar o saque, desconfiou do saldo, para ela irreal. Assim, verificou o extrato da conta. Percebeu, então, o lançamento de estorno do valor depositado. Procurou informações na agência bancária. O gerente esclareceu que o estorno ocorrera devido ao fato de que nada continha o envelope do respectivo depósito, o qual fora lançado na máquina do autoatendimento apenas para gerar o comprovante que, enfatizou, traz impressa a advertência quanto ao prazo para a validação da operação. E a jovem, que não atentara para esse “precioso” detalhe, viu-se obrigada a aceitar a perda, ludibriada que fora por um desses marginais que pululam pelas, repito, famigeradas redes sociais.
– Salafrário! – Assim reage“o gigante bondoso”.
– Mestre! Permita-me um aparte!
– Pois sim. Prossiga, D’Artagnan!
– Quando da intervenção do Banco Central no grupo Coroa Brastel, nos primeiros anos da década de oitenta, um técnico da autoridade monetária, paulista de nascença e formação, mas cearense de vivências, foi convocado para compor o quadro de interventores. Passados alguns meses, concluída a sua participação no processo, ele teria de retornar ao berço de Alencar. Antes, passou por um dos corredores paulistanos de venda de produtos ao ar livre, onde adquiriu um potente rádio com toca-fitas, num negócio por ele considerado bastante vantajoso, o qual foi cuidadosamente colocado na respectiva caixa. Efetuado o pagamento, o diligente vendedor, ao saber que o diletante comprador logo se encaminharia ao aeroporto, ofereceu-se a proteger o objeto adquirido com um reforçado embrulho. Oferta aceita, o rapaz providenciou tudo no balcão da loja em cuja calçada armara a sua banca. Agradecido, o meio paulista e meio cearense seguiu o seu rumo. Ao chegar em casa, pretendeu mostrar à mulher as potencialidades do bem comprado. Frustrou-se, todavia, ao abrir a caixa. Nela se continham um tijolo inteiro e uma banda que, juntos atingiam peso igual ao do tão desejado rádio.
– Como se vê – complementa Aramis –, as redes sociais apenas potencializam a sordidez, a hediondez, a ignobilidade sempre cultivadas marginalmente no seio da humanidade. E os honestos – ou incautos, como queiram – sempre pagam por isso.
– E, por falar em honestos que sempre pagam, vocês têm uma ideia de quanto custa mensalmente um vereador de Fortaleza? – Eis mais uma questão trazida à discussão pelo “coração do grupo”, que não espera resposta. – Cerca de 60 mil reais por mês. E o que ele nos dá, os contribuintes, em contrapartida? Muito pouco ou quase nada.
Porthos, o “gigante bondoso”, apressa-se em pôr mais lenha na fogueira:
– Amigos, ouvi, um dia desses, na rádio CBN, um senador da República, um sênior na arte senatorial que se considera um legítimo “varão de Plutarco”, ou seja, probo, honesto e com vasta folha de bons serviços prestados à Nação, embora alguma desconfiança respingue sobre a sua tão louvável hombridade, honradez, desfiando um rosário de inquietações – crise fiscal, privilégios do funcionalismo público, supersalários, sobretetos, penduricalhos, aposentadorias integrais – e exigindo que todos – todos nós! – entendêssemos a imperiosa necessidade de oferecer, em momento tão crucial, uma parcela de sacrifício. Em momento algum, o bom homem se prontificou a dar o primeiro passo. Assim, amigos, pimenta no olho dos outros é colírio.
Agora, quem intervém é D’Artagnan, o “cérebro do grupo”:
– Recentemente, um parceiro de laboriosas jornadas em tempos de atividade, ambos na condição de agentes públicos, concursados, com dedicação integral à prestação de serviços de alto nível, enviou-me uma postagem no mínimo intrigante, com o pedido de que a repassasse aos meus amigos de facebook, ação que sempre me recuso a fazer. Sob o título “Matematicamente insustentável”, revela dados impressionantes sobre o universo político brasileiro que aos cofres públicos custou, em valores de 2018, mais de 128 bilhões de reais ao ano ou cerca de 10,7 bilhões de reais ao mês.
– Por Deus, destemido guardião! – A reação é do astuto e perspicaz Aramis. – Tudo isso sendo embolsado por quantos distintos filhos da pátria? Você tem esse dado, amigo?
– Sim, Aramis. As fatias desse gigantesco e rechonchudo bolo engordaram, no curso do ano passado, os patrimônios de mais de 70 mil políticos, aí incluídos o presidente e vice da República, 27 governadores e respectivos vices, 82 senadores, 514 deputados federais, mais de um mil e oitocentos deputados estaduais e de quase 58 mil vereadores, além de cerca de 715 mil não-concursados, os valorosos assessores parlamentares que desempenham – nem todos, obviamente! – suas especialíssimas funções no Senado, na Câmara Federal, nas Assembleias Estaduais e nas Câmaras Municipais. Convenhamos, são números que nos aparvalham, nos bestializam.
– Arre égua, cara! – Agora quem reage é o espirituoso e divertido Porthos. – E ainda há as tramoias, as maracutaias, os achaques. As corrupções. Os desvios de verba.
– E eu não ouvi, caro D’Artagnan, você fazer qualquer menção ao famigerado Fundo Partidário.
– Pois bem, mestre Athos. Há que se acrescentar a tudo isso os 6 bilhões de reais distribuídos, segundo a legislação vigente e a título de Fundo Partidário, entre os 35 partidos registrados no TSE.
– E são 35?! Pra que tudo isso?
– Isso mesmo, Porthos. São 35. E, se você considera isso um exagero, imagine este absurdo: encontram-se em processo de formação nada mais nada menos do que 73.
– E esse número, certamente, tende a aumentar. – Aramis enfatiza.
– Claro. Não é, Aramis? – Porthos prepara o arremate. – Já, já, vai ser criado o PFB ou PCB. O Partido da Família Bolsonaro ou o Partido do Clã Bolsonaro. É só uma questão de tempo.
– Alguém certamente dirá: “Esse é o preço da democracia”. E eu, Athos, cidadão brasileiro, politizado, eleitor, contribuinte, aposentado, pai de família, confesso considerar tudo isso um absurdo. Que democracia se sustenta em meio a tudo isso? Em meio a um cenário em que viceja a cleptocracia? Embora devêssemos, os cidadãos de boa vontade, penitenciar-nos: COMO É QUE DEIXAMOS CHEGAR A ESSE PONTO? Numa situação matematicamente insustentável?
E se fez o silêncio absoluto. O silêncio de mea culpa.[authoravatars roles=author user_link=authorpage order=display_name,asc][authoravatars roles=author user_link=authorpage order=display_name,asc]
“Políticos e fraldas devem ser trocados de tempos em tempos pelo mesmo motivo.” [Eça de Queiroz]