‘’(…) inculta e bela / És, a um tempo, esplendor e sepultura.” (Olavo Bilac).
Prezada leitora,
Prezado leitor.
Quem comigo vem regularmente partilhando a peregrinação que sempre me disponho a fazer com o propósito de estimular a leitura, de partilhar – com quem interessar possa – experiências vivificantes de momentos de aprazível contato com o mundo dos outros (1) através dos atos exclusivamente humanos de escrever e ler, sabe que já elegi – e elejo sempre – para o lugar mais alto do pódio dos melhores professores da língua portuguesa com quem tive o prazer do rico usufruto dos seus ensinamentos, da fecunda convivência escolar, o saudoso padre Antônio da Silveira Paixão, nos idos dos últimos anos da década de 1960, no austero Ginásio Salesiano Domingos Sávio, lá na minha querida Baturité.
Naquela época, o processo de ensino/aprendizagem de Português se cingia tão-somente à Gramática Normativa, ou seja, à composição das engrenagens que movem a língua, que estabelecem a correlação funcional entre as palavras na construção das frases – todas elas; em especial, na escrita – e possibilitam ao usuário o seu emprego “clássico” (em contraposição com o “vulgar”, popular), sob o rigor de regras pré-definidas e, assim, tido como “escorreito”.
O padre Paixão – que recentemente largara o clero secular, diocesano, para ingressar no regular, religioso, salesiano – ensinava o que sabia e porque sabia.
Consigno, na oportunidade, o “prazer” por mim usufruído na condição de aprendiz, na faculdade de Letras/UFC, já nos estertores do século passado, no proveitoso contato com o professor – e doutor em língua portuguesa (Unicamp) – Paulo Mosânio Teixeira Duarte (2), quando o processo já não mais se restringia à aplicação de regras gramaticais – embora sem abandoná-las, é óbvio –, mas conduzia o aluno por caminhos mais íngremes e mais exigentes à busca da compreensão das estruturas linguísticas, do entendimento dos fatores e circunstâncias que as motivavam e da interpretação dos seus conteúdos – lógica, pressupostos e propósitos.
Paixão e Mosânio já não mais se encontram entre nós, no plano terreal; as suas cátedras já se tornaram eternas.
Pacientes leitoras e leitores, hoje resgatei da velha memória, carcomida pelo tempo e pelo uso, duas vivências sob o firme comando desses dois ícones meus – uma, ainda no ginásio; a outra, já no âmbito da academia.
Ora lhas conto (Sinto que baixou em mim o espírito de Machado de Assis, o bruxo do Cosme Velho).
No segundo semestre letivo do ano de 1968, padre Paixão assumiu, também, a disciplina Português na 4ª série ginasial do Instituto Nossa Senhora Auxiliadora (atualmente conhecido pela sigla: INSA), das irmãs salesianas, em edificações quase defronte ao colégio dos padres salesianos – bastava praticamente cruzar a então pouco movimentada avenida Dom Bosco, na subida de acesso ao centro da cidade. À época, ali só estudavam as jovens – pré e adolescentes. Após concluído o estudo dos Períodos Compostos (Análise Sintática ou simplesmente Sintaxe, um dos componentes da Gramática, ao lado da Morfologia e da Semântica), nas duas turmas de quartanistas (os rapazes do Domingos Sávio e as moças do Auxiliadora), o respeitável mestre – que já houvera promovido, com o mesmo público e audiência externa (familiares e professores), interessante debate (3) sobre a obra prima de Rachel de Queiroz (O Quinze), numa noite em que brilhou a estrela do colega Jonas (Francisco Jonas Araújo) –, programou, como atividade de fixação da matéria, o “encontro”, também no auditório do INSA, sem plateia, agora sobre a matéria recém estudada.
Os bancos de madeira, de cinco ou seis lugares, dispostos de forma a possibilitar o fluxo de pessoas em largo corredor central, foram estrategicamente ocupados pelos “contendores”, os rapazes no lado esquerdo e as moças, no direito. A metodologia era simples, inclusive para dar maior fluência à atividade, realizada em pleno horário de aulas: o velho mestre sorteava, alternadamente entre os dois grupos, frases (períodos) previamente por ele escolhidas/construídas, permitida a qualquer de seus componentes a habilitação para a intervenção. A eventual renúncia de um dos grupos ocasionava a cessão do direito de resposta para o outro. As frases não analisadas ali mesmo ele as excluía, sob o compromisso de que seriam submetidas a estudo na sala de aula.
E os meninos – nós – deram um verdadeiro show. Eu obtive o conceito máximo, com larga vantagem, merecendo o prêmio, ali mesmo entregue, de um exemplar do livro, de capa dura e repleto de coloridas ilustrações, intitulado A anatomia do Universo, perdido em algum sótão da vida, o mesmo destino dado à minha coleção das revistas Placar e Grandes clubes brasileiros, cuja edição inaugural apresentava, por inteiro, o Clube Atlético Mineiro. O segundo posto, ocupou-o o colega Zé Luiz (José Luiz Cavalcante Lima), irmão do seu Hermênio, titular de conceituado escritório de contabilidade e administração, com sede em imóvel de esquina, com frente para a praça de Santa Luzia, e do Zé Renato que, anos depois, assumiu, em pelo menos dois mandatos, a prefeitura do vizinho município de Capistrano. Uma das meninas, cujo nome não consigo resgatar da velha memória cansada de guerra, contentou-se com o terceiro lugar.
No fechamento da atividade, o padre Paixão propôs-nos um adendo: a análise conjunta de uma frase escolhida especialmente para tal fim. No quadro, escreveu-a com o esmero de sempre: “Convém puni-lo!”. Cobrou-nos, então, a demonstração de que dominávamos o assunto. Silêncio. Ninguém se atreveu a arriscar-se. Então ele, no alto do corpanzil de jogador de basquete fora de forma, a batina preta zelosamente cuidada, olhar de águia entre lentes de correção e em busca de presa, me cutucou com vara curta:
– E aí, Luciano, vai ficar calado?
– Vou não, padre. São dois verbos – convir e punir – com sentidos próprios, ou seja, não formam uma locução verbal. São dois núcleos de predicado. Logo, trata-se de Período Composto com conector oculto, porque o segundo verbo está no infinitivo, formando uma oração reduzida.
– Certo. Coordenação ou subordinação. – Estimulou-me a prosseguir.
– Com certeza, subordinação. – Calei-me e aguardei alguma colaboração que me ajudasse em tão arriscada empreitada.
– Algo mais a acrescentar? – Quis saber.
– Não, padre. Só vou até onde posso…
– Está bem. Até aqui, tudo de acordo com as regras. Agora vejam vocês! (Usou o quadro de giz móvel, em compensado verde fixado em cavalete de madeira, o embrião do flip chart, como apoio para as suas explanações). O “puni-lo” equivale ao segmento “a sua punição”, nominal, pois o núcleo é um nome, substantivo. Já posso concluir que: “Convém”, flexão do verbo “convir” na terceira pessoa singular do presente do indicativo, compõe, sozinho a oração principal, enquanto “puni-lo” é a subordinada substantiva. Entendido?
Uma das meninas indagou-lhe:
– Padre, como o senhor chegou ao “a sua punição”?
– Pois bem. Para obter a equivalência que vai me permitir a adequada análise, tenho de seguir este roteiro (Enquanto descrevia o percurso, escrevia-o no quadro, usando setas): “Convém puni-lo!” > “Convém que o puna” (flexionando o verbo ora no infinitivo, surge a conjunção subordinada integrante ou conector; olhou de soslaio para mim) > “Convém a sua punição” (e colocando na ordem direta) > “A sua punição convém”, no sentido de “ser conveniente”. Atentem para o fato de que o pronome pessoal “o”, de “lo”, com “l” eufônico, é de terceira pessoa; portanto, o possessivo “sua” também de terceira. Ficou claro?
– Sim, professor. Obrigada. – Respondeu a garota.
– Como é possível perceber, o segmento “A tua punição” exerce a função sintática de sujeito do verbo da principal “Convém”. Logo, temos um Período Composto por Subordinação, com Oração Principal, obviamente, e Oração Subordinada Substantiva Subjetiva. Alguma dúvida?
E o silêncio se fez resposta. Nada havia a acrescentar.
Parabenizou-nos pelo desempenho, encorajou-nos ao aprofundamento da matéria e deu por concluída a atividade.
Na última prova mensal do ano, já às vésperas das rigorosas “finais” para quem não obtivera aprovação por média – a grande maioria –, uma das questões propunha análise idêntica para o período composto “Apraz-me acolhê-lo”. O padre Paixão era um exemplo de professor-educador.
O contato com Paulo Mosânio, mantive-o na disciplina Morfossintaxe do Português, da qual era o professor titular. Profundo conhecedor do assunto, deixava transparecer uma agradável sensação de contentamento, um envolvimento prazeroso com a arte de ensinar/educar – tudo isso em flagrante contraste com uma aparência carregada de stress –, e disso resultava desempenho da mais alta qualidade, com pleno domínio de salas de aula repleta de aprendizes que o tinham como “fora de série” (para usar uma termo d’antanho). Doutor em Língua Portuguesa – repito para reforçar a natureza do título; ele, que renunciara ao curso de Medicina para doutorar-se em área que mais o atraía –, dedicava-se, quase em tempo integral, à pesquisa e ao estudo da formação de palavras por prefixação/sufixação, as mutilações e os acréscimos que as primitivas sofriam na gestação das suas derivadas.
Numa ocasião em que “dissecávamos” texto sobre as intervenções de recursos linguísticos na reformulação/recriação de palavras em português – encaixes, adaptações, reduções –, o mestre ressaltou o uso dos pronomes pessoais – o, os, a, as – encliticamente em relação a verbos no infinitivo ou flexionados na terceira pessoa do plural. Assinalou que, no primeiro caso, o “r” final do verbo “caducava” (caía) e, assim, provocava o uso de um “l” eufônico preso ao pronome; lembrou que até a regra da acentuação das oxítonas terminadas em “a”, “e”, “o”, que determina o emprego do sinal diacrítico (agudo ou circunflexo), entrava no processo. E exemplificou, tendo como suporte o quadro de giz: “cantar o hino” > “cantá-lo”; “fazer o exercício” > fazê-lo; “dispor o livro” > “dispô-lo”. E complementou, com voz professoral:
– Este fenômeno também se verifica com flexões verbais terminadas em “z” ou “s”. – No quadro, exemplificou. – “Fiz o trabalho” > “Fi-lo”; “Pus o chapéu” > “Pu-lo”; “Quis o suco” > “Qui-lo”. E arrematou. – Tudo em favor da boa pronúncia…
E prosseguiu:
– Com os verbos terminados em “m” ou “ão”, o fenômeno se dá de forma diferente, pois não ocorre perda, não se dá qualquer tipo de “caducidade”, até porque essas terminações desempenham, também, a função de “nasalizador”; mas o “n” eufônico surge, preso ao pronome, em benefício da pronúncia. Assim (e usou o quadro de giz), “estudam a lição” > “estudam-na”; “corrigem as provas” > “corrigem-nas”; “preveem as perdas” > “preveem-nas”; “põem a mesa” > “põem-na” e “dão as boas vindas” > “dão-nas”. – E concluiu. – Como queria demonstrar, conforme diziam na Matemática, a cada problema resolvido.
Na sequência, indagou-nos em seu estilo bem peculiar:
– Senhores, qual a menor formação resultante desse processo?
Após um fluido instante de silêncio e troca de olhares indicativos de não-resposta, intervim, como já era de costume:
– Professor, acho que foi em livro de Fernando Pessoa… acho, não… tenho certeza de que li em algum dos trechos que compõem a sua Autobiografia sem factos, na obra Livro do desassossego, do seu quase heterônimo Bernardo Soares, alguma coisa parecida com “As flores, devo i-las deixando morrer onde nasceram” (4).
Pediu-me, então, que eu escrevesse tal sentença no quadro de giz. Alguns colegas consideraram esquisita tal construção. Alguém chegou a referir-se à licenciosidade poética. Mosânio foi conclusivo:
– Nada demais, amigos. Trata-se, apenas, do verbo “ir”, no infinitivo, seguido do pronome substantivo “as”, com referente em “flores”, o qual, enclítico, a ele se prende. O ”r” final “caducou“, dando margem ao surgimento do “l” eufônico. É a regra. Devemos cumpri-la (termo pronunciado com ênfase proposital).
Paulo Mosânio era outro exemplo de professor/educador.
E eu sempre me satisfiz como pupilo dos dois. Sabiam cultivar, a seus peculiares modos e recursos didáticos, a bela e melodiosa Flor do Lácio.
NOTAS DO AUTOR
(1) “Ler é sonhar pela mão de outrem.” (Fernando Pessoa ou Bernardo Soares, em Autobiografia sem factos, trecho 229, pág. 233, da obra Livro do desassossego. (Companhia de Bolso).
(2) São da autoria de Paulo Mosânio as obras de referência Classes e categorias em Português e A formação de palavras por prefixo em Português.
(3) Não participei do evento porque não consegui um exemplar sequer do livro, cabendo frisar que, naquela época, não havia a opção da reprografia. Só vim lê-lo bem mais tarde, na preparação para o vestibular.
(4) “Estavam já murchas as flores que as Horas me entregaram. A minha única acção possível é i-las desfolhando lentamente”. (Fernando Pessoa ou Bernardo Soares, em Autobiografia sem factos, trecho 182, pág. 195, da obra Livro do desassossego. (Companhia de Bolso).