CONTO DO RENASCIMENTO – FLOR DE LÓTUS – Ele existe!

“Conforme adquirimos mais conhecimento, as coisas não se tornam mais compreensíveis e, sim, mais misteriosas.” (Albert Schwitzer, professor, músico, escritor, teólogo e pastor franco-alemão).

Nascido e criado em bairro periférico – com boa densidade demográfica – de mediana cidade do interior, magricela, comprido (mais parecendo jogador de basquete), de revestimento epidérmico naturalmente bronzeado, cabelos crespos e azevichados, olhar atento e desconfiado (qual felídeo em posição de defesa) e de intenso negror, nariz levemente achatado, sorriso discreto, extremamente calmo e razoavelmente silente (desses que só abrem a boca quando têm certeza, mesmo!), inteligente, habilidoso e competente, além de respeitador, honesto, disponível e sedento de saberes práticos, recebera na pia batismal – confirmando-se o que lhe fora dado nos assentamentos cartoriais do ofício civil – o duplo nome Luiz Antônio, do que derivou o carinhoso Luizinho já na mais tenra idade.
Filho de pais de classe média baixa – a mãe, prendas do lar e costureira de arranjos (agulha, linha e dedal; e velha máquina de pedal); o pai, pedreiro de requisitado ofício –, era neto materno de dona Zefinha, a velha parteira – ou cachimbeira, como queiram, ó sempre imprescindíveis leitoras e leitores – que, nessa condição, auxiliara, encaminhara o nascimento de muita gente daquelas paragens e batera – a clássica palmada – na bundinha de muitos deles para que despertassem com o choro trivial para a nova realidade, cujas portas mal acabaram de abrir para as suas triunfais saídas/entradas “de cabeça”. E, se, por este ato, ora a adentravam, caberiam enfrentá-la no limite das suas humanas possibilidades, “até que um dia, ninguém sabe precisar quando, sozinhos e desprovidos de qualquer riqueza material porventura amealhada, conforme a Vida os tenha preparado para tal ato derradeiro, acolham a insensível e inflexível Morte”, costumava filosofar a respeitável Zefinha que, agora aposentada, viúva e só, com eles moravam, exercendo grande e saudável influência sobre o menino. E ele lhe devotava um benquerer especial.
Luizinho, o caçula, o “fim de rama”, para quem todas as atenções da família se voltaram, tinha três irmãs – Luzia, a primogênita; Luíza, a ponderada; e Lúcia, a impulsiva – que optaram por avançar pelas sendas do saber, pelos caminhos nem sempre planos e retilíneos do conhecimento, da educação formal, tão logo se graduaram, conseguiram, por concurso ou por indicação política – embora por mérito, todas – o ingresso em bons empregos; duas delas saíram da Enfermagem diretamente para o exercício da função em concorrido hospital da rede estadual da saúde, na vizinha cidade-metrópole; a outra, a mais velha, após rigoroso curso de Direito e concorrida disputa por vaga, passou a compor o sistema judiciário estadual, no cargo de promotor de justiça em vara criminal da capital.
Embora em meio a todo esse rico manancial de estímulos, na convivência cotidiana com as irmãs, Luizinho optou por enveredar por outros caminhos, por perfazer outra trajetória, bem mais distinta, restringindo a sua formação escolar ao mínimo do que lhe fora exigido pelos pais e avó – o Fundamental completo –, convicto de que isso lhe seria o suficiente para o enfrentamento do mundo sempre tão rigoroso, exigente e, não raras vezes, hostil. Preferiu seguir o exemplo do pai, num processo de aprendizagem iniciado como servente de pedreiro, até para adquirir um bom conhecimento, desde os “alicerces”, sobre o mecanismo da profissão que, por afinidade, escolhera. Fazia parte de uma estratégia bem pessoal. Logo, tornou-se, ele também, pedreiro com demanda qualificada e de boa frequência (com o professor que tivera, não seria para menos…).
O interior, em determinado momento, mostrou-se-lhe pequeno para os seus planos, bem menor que os seus sonhos nada fantasiosos (seria ele um “seguidor”, na prática do cotidiano, do vate lusitano Fernando Pessoa e a sua frase lapidar, de cunho poético-filosófico, “O homem é do tamanho do seu sonho”?!). Carecia, portanto, de maior amplitude espacial para bem desenvolver a sua arte de construir, de reformar, mas, principalmente, de desvendar o novo, de conhecer técnicas avançadas, vanguardistas. Apoiado pela irmã “doutora”, estimulado pelas outras e com o aval dos pais, mudou-se – de esquadro, colher de pedreiro, nível e prumo – para a cidade grande. E ali estava, diante de seus olhos ávidos de avanços, de crescimento pessoal, um generoso – embora exigente e perigoso – e amplo universo de novas possibilidades. Disposto estava a enfrentar a fera; nada o intimidaria; venceria todos os obstáculos que se opusessem ao seu projeto pessoal; não voltaria às origens sem eira e nem beira, sem um pé de meia que lhe proporcionasse o usufruto pleno dos seus últimos dias de vida, os quais certamente viriam. Conquistaria, sim, o seu lugar de mérito.
Preferiu acolher o convite dos tios – casal sem filhos; ele irmão do pai – para ir com eles morar, por uma razão bem simples (e até estratégica!): era o tio também pedreiro, já com larga experiência, com vínculo empregatício de longa data com empresa da construção civil. E isso abreviaria a entrada do sobrinho no mercado de trabalho, o que, em poucos dias, acabou acontecendo.
Sociável e simples – no agir e no vestir –, logo constituiu um bem razoável círculo de amizades, em especial com jovens que com ele atuava na laboriosa labuta diária. Nas tardes de domingo, reuniam-se sob frondoso cajueiro no fundo do quintal da casa dos tios para animadas rodas de pagode. E aí uma outra habilidade do versátil Luizinho, ainda restrita ao sóbrio quarto de dormir (cujos acordes levaram os tios a promover tais encontros dominicais), eclodiu ao som inebriante de um afinado cavaquinho, ligeiramente pressionado contra o peito esquerdo, lá onde bate ritmicamente o coração de quem sabe viver bem e em paz. E a turma do pagode, há algum tempo precisando de alguém que ocupasse o lugar ora vazio, vibrou com a descoberta; e o jovem pedreiro – artífice múltiplo –, vindo do interior com pouco dinheiro no bolso e sem parentes importantes, conquistava, na exata medida dos seus méritos, a admiração e o respeito dos seus pares, tanto no trabalho quanto na diversão.
Num domingo qualquer, o patrão – jovem engenheiro de tradicional família de construtores –, ao saber dos festivos “encontros dos meninos”, decidiu vê-los em ação. Adorou. Repetiu o gesto nos domingos seguintes. Tornou-se “freguês de carteirinha”. Até que o doutor fez proposta irrecusável ao grupo – “desde que não atrapalhasse o desempenho de todos no curso da semana” –, frisou bem. Sob sua nova condição de empresário na área, assinariam contratos com promotores formais do entretenimento, incluindo a possibilidade de eventuais acessos a recursos públicos, mediante a participação artística em eventos culturais promovidos pelas secretarias de cultura – municipal e estadual –, com o grupo, em contrapartida, cumprindo rigorosamente programações de fins de semana, atendendo demandas de hotéis de alta classe ou restaurantes/churrascarias de praia com clientela bem apessoada, mas de nível musical carente de contato mais amiúde com manifestações populares, o samba e o pagode como carros-chefe. No Réveillon ou Carnaval, contrato especial. Nascia, assim, o Pagodeiros de Quintal, com direito a CNPJ e conta bancária. Sucesso!
O tempo fluiu no seu ritmo natural, inexorável e inflexível, mas, como sói acontecer na contemporaneidade, vai-nos impondo, implacavelmente, a sensação de marcha acelerada, a impressão de que a areia da ampulheta vaza, no cotidiano febril das nossas vidas, em velocidade superior à dele, que não se queda a mudanças. Luizinho já galgara o posto de mestre de obras, responsável por comandar uma equipe de bons profissionais e oferecer, em prazos e custos pré-definidos, produtos de alta qualidade. Feito gente grande, já discutia questões operacionais e de planejamento com engenheiros de especialidades diversas – civil, elétrica, por exemplo –, com conhecimento de causas e efeitos, com argumentações sólidas, tecnicamente bem-posicionadas e, por isso, já se acostumara com os recorrentes convites para participar de reuniões de avaliação do andamento de obras sob seu comando, do cumprimento de regras e normas na execução dos respectivos projetos, com vez e voz para propor. E ele era diferenciado. Tratavam-no como tal. E isso lhe dava prestígio na empresa e causava inveja a muitos que não conseguiam imitá-lo. Enquanto isso, o Pagodeiros de Quintal ganhava mais espaços no segmento, na arte de entreter as pessoas; já sonhavam seus integrantes até com a possibilidade de inserções no universo midiático, em especial nas plataformas televisão e internet.
Numa de suas apresentações em hotel de luxo na orla marítima, um dos garçons dele se aproximou, entregando-lhe um cartão de visitas e observando:
– Você, por acaso, viu aquele cidadão – e apontando indiscretamente em direção a uma das mesas mais no fundo do salão de festas, agora vazia – sentado ali, sozinho, com jeito de estrangeiro, fala de italiano?
– Não. Na verdade, nem prestei a atenção…
– Pois ele quer conversar com você… assim que vocês terminarem a apresentação.
– Onde? – Quis saber Luizinho, já demonstrando certo interesse.
– Ele disse que está tudo no cartão.
– Certo. Vejo já isso.
Seguindo as orientações, após comunicar o fato aos “parceiros”, quando sugeriu que devessem ir e não esperar por ele, já que não tinha a menor ideia do que se tratava nem tampouco do tempo que levaria a “conversa” com o italiano, pegou um dos elevadores e subiu até o último andar da edificação. Vislumbrou, lá no fundo de extenso corredor, algo que sugeria ser um escritório, sem hall de acesso e sem secretária. Caminhou até lá, nervosa e decididamente. Sentiu-se movido por uma curiosidade nunca sentida. Na porta, o usual aviso: “Bata antes de entrar”.
Após um olhar panorâmico, certamente para evitar surpresas, percebeu apenas a existência de câmera com foco no acesso à porta. Nada mais natural nos dias atuais. Respirou profundamente e… bateu. Logo o italiano, de porte físico e aparência no geral, faixa etária inclusive, a revelarem perfil de homem de negócios com abrangência além das fronteiras marítimas do país, recebeu-o, com serenidade, em ambiente confortável que transpirava sobriedade. Pediu-lhe para sentar-se em uma das duas cadeiras de madeira maciça estrategicamente colocadas em frente à grande mesa de trabalho – mais para significar “poder” que para compor projeto arquitetônico –, no tampo apenas algumas folhas de papel em pequena pilha, ao lado um notebook em pleno funcionamento. E o empresário e investidor – conforme se revelaria na sequência –, com um português ainda com alguns resquícios macarrônicos, mas já plenamente inteligível, iniciou a “conversa”, ou melhor, o interrogatório:
– Então, senhor Luiz Antônio… não sei se você percebeu… no cartão de visitas… eu também sou Luigi… o “combatente ilustre”. Confirme, por favor, os seus dados pessoais. – Desfiou, então, um rosário de informações coligidas sobre o Luizinho, detendo-se e enfatizando algumas como a referente a “solteiro e sem filhos”; e todas, sem exceção, foram confirmadas com o monossilábico “sim” seguido de meneios de cabeça afirmativos. E o italiano prosseguiu: – Me interessa muito o seu perfil de mestre de obras, bem como a sua habilidade com… com… como se chama aquele violão pequeno?
– Cavaquinho, senhor. Há quem o chame também de “cavaco”, numa “redução de responsa”, como diz um colega de pagode. Mas o nome mesmo é cavaquinho.
– Isso. Você é muito bom nisso…

“Filho, o homem é o que faz. Se um trabalho vier até você, nele coloque o que de melhor puder oferecer.” (Xykolu, em Orgulho-me de ser seu filho, na obra Sinfonia – em prosa – d’uma existência (prodigiosa); Expressão Gráfica e Editora; págs. 70-71).

Já no elevador em descida, a maior preocupação do rapaz consistia, no momento, em como conter a natural, para ele, disposição do fogoso alazão sobre cujo dorso cavalgava o seu impulsivo e aventureiro espírito, segurar-lhe as rédeas, dominá-lo. Tratava-se de decisão tão séria que não podia ser tomada assim, de afogadilho. Já não era mais aquele adolescente destemido, intrépido, intimorato, que agia conforme a ocasião, sem sequer avaliar as prováveis consequências. No caso, não lhe cabia tomar qualquer atitude de que viesse a arrepender-se. Havia, agora, pessoas que, de uma forma ou de outra, seriam alcançadas pelos efeitos colaterais dos seus atos. Na verdade, cumpria-lhe entender que a sua vida estava prestes a seguir um rumo jamais imaginado; sofreria, isto sim, uma reviravolta profunda. Estaria, por acaso, pronto pra isso?
Já em casa, ainda pensativo, melancólico, taciturno, tomou um banho daqueles que reconfortam até a alma – o banho, diz-nos a experiência, sempre se mostrou a melhor das terapias em momentos de pressão, de stress –, que parece colocam as coisas nos seus devidos lugares. À mesa para um jantarzinho domingueiro à base de saborosa sopa de feijão, feita no capricho de quem domina uma cozinha bem nordestina, baixou a guarda e expôs com clareza o que ora tanto o afligia:
– Tio, tia, há pouco, lá no hotel onde o grupo se apresentava, recebi uma proposta que me… me abalou, digamos assim, profundamente. Um italiano rico, investidor no Brasil, quer me contratar para substituir um funcionário dele que está indo para a Europa… Espanha, se não me engano. Me acena com contrato de longo prazo, apenas com um curto período de adaptação, salário simplesmente convincente, convidativo, além de outros benefícios. Só tem um “porém”, tio e tia. Tem de ser em São Paulo, mas precisamente na baixada santista, Guarujá ou Peruíbe, ainda não sei bem especificar, só entendi que na região dos morros, em empreendimento dele que abrange hotel, casas de veraneio, parque aquático, churrascaria de praia. E os serviços de manutenção de tudo isso ficaria sob a minha supervisão técnica. Responsabilidade muita. Ah! Ainda sugeriu que formasse um grupo de pagode, lá, para animadas tardes domingueiras, segundo ele.
Os tios, calados e atentos, tudo ouviram. Após um curto tempo de silêncio absoluto – era como se quisessem digerir tudo aquilo, pegos, como foram, de surpresa – o “chefe” da casa pigarreou e argumentou:
– Meu filho – já o tratava assim desde algum tempo –, você não acha tudo isso muito arriscado?
– Risco sempre há, né tio! – Ponderou o rapaz, deixando transparecer para onde pendia a sua eventual escolha sobre o caso em questão.
– Você sozinho… tão longe… sei não!
– E a senhora, tia, o que acha?
– Não sou de meter o bedelho em assuntos de homem… de mexer angu de caroço com a minha colher de pau, mas, em se tratando de você, meu filho – ela também o considerava assim; afinal, pra ela, que não sentira a dor prazerosa de parir um sequer, servia, no mínimo, como compensação –, eu tenho coragem de me arriscar. Então… se eu fosse você… jovem, saudável, capaz… (quase dizia “bonito”, mas se conteve a tempo) e, ainda mais, sem um rabo de saia e reca de filhos para atrapalhar… bem… eu já estaria lá; já teria pegado um asa dura… de ônibus não, que é muito cansativo… desgastante… já tinha ido mostrar pra muita gente do que sou capaz. Por mim, vá! E nada de arrependimentos depois.
– Mas antes não deixe de consultar os seus pais, as suas irmãs… a doutora, principalmente. – Ponderou o tio.
– E a sua avó também. – Enfatizou a tia.
– É. Eu tenho quinze dias para me decidir e mais quinze para arrumar as coisas e me despedir. Então, vamos agir. – E ali, naquela hora, Luizinho já estava decidido a partir para Santos. E que todos os santos o protegessem.
Certo é que toda a família, com alguma reserva de preocupação dos mais velhos, estimulou-o a acolher a proposta do senhor Luigi. Coube a avó, como sempre, ser a mais decisiva – Você já tem a minha bênção! Era a senha que faltava para o “estar livre para voar”. Na construtora, o fato mereceu o tratamento dispensado a rupturas de contratos funcionais, no rigor dos seus aspectos formais; apenas houve uma rápida negociação sobre direitos e obrigações de ambas as partes, daí resultando um bom saldo em favor do mestre de obras em desligamento, pago no ato da assinatura do respectivo distrato. Com os parceiros do pagode, a conversa fluiu com naturalidade; era como se já estivessem preparados para este momento de desenlace. Agiriam com responsabilidade. Tudo fariam para honrar os compromissos assumidos pelo grupo, e isso significava que nenhum contrato seria quebrado. – Em sua homenagem, ó Lulu do Cavaco, vamos fazer como manda o figurino! – Assim falou o mais “folgado” deles. E a despedida aconteceu numa memorável roda de pagode, numa tarde domingueira, sob o frondoso cajueiro do fundo do quintal da casa dos tios, com a ilustre presença do jovem engenheiro que ainda era o empresário do grupo. (E que Deus seja servido! – Pensou alto o Luizinho. E nós, aqui e agora, complementamos: Com certeza, sê-lo-á!).

EPÍLOGO

“Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas.” (Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas).

Já se passaram não menos de cinco anos. Luizinho permanecia no posto de Supervisor de Manutenção e Reformas, cumprindo rigorosamente, no cotidiano profissional, técnico, tudo o que dizia respeito à função e merecendo elogios das suas chefias e dos subordinados. Abandonara o pagode (Por um tempo! – Costumava dizer), mas não o cavaco. Agora formava, com dois nordestinos – um pernambucano, de Cabrobró; e um paraibano, de Alagoinhas – o trio de cordas Acordes do Sertão para “clássicos” da Música Popular Brasileira, a gloriosa MPB; atendia uma demanda qualificada que sempre se mostrava satisfeita. Conhecera Teca, a imperturbável e respeitável senhorita Terezinha de Jesus, chefe da cozinha do hotel e filha de dona Maria Tereza, viúva de alguns anos e locadora de uma vila de modestas casas construídas pelo marido na base das encostas de um dos morros, ora todas ocupadas, de que obtinha uma boa ajuda para cobrir as despesas domésticas, já que o valor mensal recebido na condição de pensionista, naqueles tempos de penúria da Previdência Oficial, já não era suficiente para atender sequer as suas necessidades básicas.
Entre Luizinho e Teca ocorreu o romântico “amor à primeira vista” que logo envereda pelo “realismo” do “unidos para sempre”. Tanto é que, em cerimônia simples, casaram-se. Da sogra e mãe, receberam, como presente de casamento, um terreno declinoso e contíguo à última casa da vila, já na parte mais próxima da encosta, por ela adquirido recentemente e já incorporado formalmente ao patrimônio dela. Ali, após o devido nivelamento, construíram um dúplex, com estrutura reforçada – por exigência de quem entende do riscado: ele!; e com exageros, ao ver da sogra, bem mais parcimoniosa (“mão de vaca”, no dizer popular) –, em cujo térreo moravam, já que o andar superior carecia de algum acabamento, planejado já para as próximas férias de ambos. Tinham uma filha, a Ana Tereza – Ana, da avó paterna; Tereza, da avó materna –, já na fase dos balbucios e dos primeiros passos; pretendiam ter mais, mas tudo ao seu tempo. Enquanto trabalhavam, confiavam a filha aos zelosos cuidados da avó; só a recolhiam quando, ao término de cada dia de labuta, retornavam ao recesso do lar para a necessária recuperação de energias. Viviam bem. Usufruíam do que podiam, como queriam.
Naquela segunda-feira, o enfado de sempre. O cotidiano se fazia modorrento. A preguiça passeava lepidamente entre todas as pessoas de tão pacata localidade. Fartos eram os bocejos e os alongamentos de braços. O pessoal da Manutenção e Reformas é que se desdobrava para atender todos os casos de pequenos reparos, em função do fluxo de pessoas, maximizado em fim de semana de período de alta estação. No mais tudo em paz. E tudo sugeria que ia continuar assim. Até o meio da tarde quando um calor quase insuportável pegou de surpresa a todos. Não se tinha registro de fato igual. Assim que o sol descerrou completamente as suas cortinas, e a noite banhou de escuridão os campos e as cidades, num confronto direto com as iluminações artificiais – onde as pessoas podiam usufruir de tal recurso –, todos se recolheram ao recôndito das suas moradias, à procura do que pudesse aplacar a “fúria” da Natureza, o ventilador em destaque.
Janela do quarto de dormir aberta para o lado do morro, na esperança de que por ali penetrasse uma aragem que fosse, Luizinho perturbou-se, aí pela madrugada, quando percebeu que o céu, quase sempre naturalmente pintado de estrelas cintilantes, mostrava-se encoberto por véu extremamente plúmbeo, tendendo a absoluto negror, ameaçando com carranca nunca até então por ele vista. Assistiu, estupefato, perplexo, ao cair dos primeiros pingos – grossos, barulhentos, violentos. Apenas exclamou: Meu Deus! E, não demorou muito, todas as comportas diluvianas se abriram ao mesmo tempo, jorrando caudaloso e torrencial fluxo de água pluviátil que, furiosa e impiedosamente, flagelava toda a área frontal do morro, desde o cume até… até… não lhe sobrou tempo nem para pensar. A volumosa torrente que o morro desnudava, arrancando-lhe a pele e toda a sua proteção arbórea, avançou, como uma rajada de vento, janela adentro, agora numa mistura altamente destrutiva de lama e galhos e troncos de árvores, tudo arrastando e destruindo, destruindo e arrastando. Nada sobrou em pé. Nenhuma vida resistiu. A vila de dona Maria Tereza simplesmente do mapa sumiu. E tudo virou um apocalíptico monte de escombros, sepultando desejos e sonhos de vários matizes.
Bombeiros e equipamentos de busca; profissionais da saúde e ambulâncias, macas, instrumental de primeiros socorros e corre-corre; jornalistas, microfones e câmeras; gente humilde disposta a ajudar; todos envolvidos, em meio a densa lama e entulhos de difícil remoção, na procura inglória por vidas, na luta incansável e incessante pelo resgate de corpos que, à medida que iam sendo descobertos e identificados, eram excluídos da relação de desaparecidos, com dados criteriosamente recolhidos por agentes públicos devidamente qualificados para o mister. E os nomes de Luiz Antônio, Maria Tereza e Terezinha de Jesus já não mais dela constavam, agora incluídos na de óbitos, que só crescia em quantidade. Quando o tempo abriu um pouco, pôs todos em estado de perplexidade ante a vermelhidão dos lanhos abertos na carne do velho morro, quase expondo as suas vísceras. Meu Deus! – eis a uníssona exclamação de quem vivenciava a mais cruel das adversidades naturais.
Já no meio da tarde de terça, embora sob neblina intermitente, repetiu-se a onda de calor insuportável. Em seguida, lá no horizonte, surgia uma ampla e densa nuvem plúmbea e, com ela, a ameaça de um novo temporal. Todos se resguardaram. A chuva que caiu, no entanto, comportou-se dentro da normalidade. E todos voltaram à árdua tarefa da luta contra a Morte, com a “translúcida e imperceptível” já levando larga vantagem. Até que veio o consenso de suspensão das buscas, ante o alto risco de desmoronamentos, de mais deslizamentos – as terras da encosta do morro revelavam, a olho nu, excessos de umidade do solo –, bem como pelo rol de desaparecidos, então reduzido a um único nome: Ana Tereza, a filha de Teca e Luizinho, de quem não se teria conseguido qualquer sinal que orientasse a busca.
Os bombeiros, enlameados e cansados, já se preparavam para a retirada do front, já recolhiam os seus equipamentos, quando um deles, encarregado da “vistoria de abandono da área”, desconfiou ter ouvido um choro… aguçou os ouvidos… um choro de criança… onde?… aponta para um ponto específico dos atulhos… ali… e o choro tornava-se mais nítido… há vida ali… e se há vida, bombeiro tem de resgatá-la… pediu apoio… e os três seguiram, decididos a levar a bom termo o salvamento. Com cuidado e proficiência, abrem um estreito canal em direção ao choro, a luz no fim do túnel. Um deles, deitado de bruços no leito lamacento do acesso aberto, avança rastejando como se réptil fosse. E torce para que a criança resista e reaja… e chore… avança à medida que, cuidadosamente, vai alargando a passagem. De repente… de repente… numa pequena bolha de ar, ao pé de um resto de coluna com ferros retorcidos à mostra que funcionava como anteparo contra a violência da correnteza e de apoio a um resto de laje que lhe servia de teto… a Vida… dois espantados olhinhos da cor de esmeralda, buliçosos, carentes de luz… e uns balbucios frágeis, suaves: “Vovó! Mamã! Papá!”. Com técnica apurada e muita experiência em idênticas situações, palavras e gestos que acalmam e dão confiança, faz o resgate, protegendo a vítima contra qualquer tipo de ameaça, principalmente a do choque com o brilho de fora do casulo. E, de pé sobre os escombros, o fardamento completamente enlameado, a consciência do dever cumprido, a glória do ato heroico, ao lado os dois colegas que o auxiliaram, ele, com a mesma vibração de alpinista que atinge o topo da cordilheira, eleva ao ar a sua bandeira e solta um urro a plenos pulmões: Conseguimos! Nós conseguimos! Era a pequerrucha Ana Tereza que de nada daquilo entendia. Um dia, certamente, iria compreender.
Ana Tereza! A flor da lama! A flor de lótus!
Oh! crentes leitoras e leitores, Ele existe! Existe, sim! Resta-lhes, ainda, alguma dúvida?!

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