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CONTO DE UMA VIAGEM: Flor margarida ou bem-me-quer ou crisântemo (1)

“De tudo ao meu amor serei atento (…) // Quero vivê-lo em cada vão momento (…) // Que não seja imortal, posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure.” (Vinícius de Moraes, em Soneto da Fidelidade).

Eles – dois jovens recentemente admitidos na maturidade – se encontraram na plataforma de embarque de passageiros da secular estação ferroviária de Baturité, à espera do trem das sete e meia da manhã que, vindo da capital, tinha a cidade do Crato como destino final. Não se conheciam. Não se haviam cruzado até então os seus respectivos caminhos pela vida, protagonistas que eram de narrativas espacialmente bem distintas. Quis o Destino que ali ocorresse o inaugural ponto de contato.

A primeira troca de olhares sem qualquer motivação perceptível, nada neles despertou, nem curiosidade; restou apenas a naturalidade do gesto. A repetição desse gesto é que provocou em ambos um incontido intercâmbio de sorrisos ainda despretensiosos, embora esta atitude tenha revelado quão próximos fisicamente estavam, um do outro. Ele, após alguns passos estratégicos em direção a ela, quebrou o silêncio, que certamente torcia para que isso logo acontecesse (talvez porque se soubesse improdutivo em momentos como esse). Há, experientes leitoras e leitores, registros de forças estranhas e até imperceptíveis que agem no sentido de estimular pessoas – em especial, os jovens – em situações fáticas que certamente não se confirmariam sem sua intervenção; são as translúcidas deidades e os seus desígnios geralmente infalíveis na construção de realidades jamais esperadas por quem, ao fim e ao cabo, protagonizam-nas. E o jovem foi direto e simples:
– Perdoe-me, mas você está indo pra onde?
E a jovem, com ar de acolhimento, disposta a dar prosseguimento a uma boa conversa, alongou-se:
– Olha, estou indo pra Juazeiro. Moro lá, mas estudo em Fortaleza. – Há poucos dias se iniciara o período das férias escolares do meio do ano. – Passei este fim de semana aqui, na casa de um irmão, pra matar saudades e rever a minha sobrinha. E você?
– Interessante como há alguma semelhança… Estou indo pra Iguatu, minha terra natal, onde meus pais moram, mas também estudo em Fortaleza…
– É mesmo?!
– É, sim. Faço Direito na Unifor.
– Eu… Odontologia na UFC. Mas por que Baturité?
– É que também tenho um irmão que mora aqui. Ele é funcionário do Banco do Brasil. Vim fazer uma curta visita a ele, algo que já devia há muito tempo e que ele não se cansava de me cobrar. E os meus sobrinhos – um casal de pirralhos – são uma doçura de crianças…

A conversa, ali mesmo, no meio de pessoas que ou iriam também viajar ou só estavam ali como acompanhantes, mas provocavam barulho e rebuliço, num indo e vindo quase enervante, os jovens, não se curvando a esses naturais incômodos, deram curso normal à conversa, às vezes usando o recurso da maior aproximação ou da mão em concha à altura da boca, a qual, à medida que avançava pelos meandros das peculiaridades de cada um, mais interesse neles despertava, mais os envolvia.
Numa decisão que mudaria profundamente o estuário vital das suas existências humanas, o rapaz se propôs a:
– Se você não fizer objeção, também vou a Juazeiro. Eu tenho parentes lá. O que você acha?
E a moça assim aquiesceu à proposta:
– Por mim, tudo bem. Se lhe faço boa companhia, confesso que a sua me é muito agradável. Ao seu lado, será uma viagem bem mais interessante. Mas seja rápido, o trem está chegando.

Desvencilhou-se da aglomeração de gente. Tão logo chegou à janela da estação por onde se dava a venda de passagens, ouviu de um retardatário: “Uma para Iguatu!”. Ele interpôs-se entre o viajante desconhecido e o solícito agente, emendando: “Pra Iguatu, não; pra Juazeiro.” Virou-se para o homem e, com jeito de bom negociador, logo o convenceu: “O senhor me compra esta pra Iguatu, pelo valor que paguei.” E o negócio se concretizou num abrir e fechar de olhos. E, mais uma vez, ó compreensíveis leitoras e leitores, as forças estranhas a que me referi lá atrás intervieram em favor do bom encaminhamento desta narrativa. E o autor a elas agradece.

O trem chegou. Houve, então, o natural movimento de pessoas, todas com o intuito de ocupar um bom lugar no vagão que escolhera. Era um frenético sobe-e-desce. Enquanto os passageiros que concluíam a viagem lutavam para descer os degraus de acesso com as suas bagagens, os que a iniciariam se esforçavam por subir os mesmos degraus com os seus pertences. O rapaz se prontificou a ajudar a moça no embate do embarque, numa atitude cavalheiresca. Por sorte, conseguiram um banco de duplo assento, onde se acomodaram; ela do lado da janela e ele a protegê-la pelo lado do estreito corredor, por onde se dava o fluxo das pessoas. E o trem partiu. Para eles, assim se iniciavam não apenas uma longa viagem de quase um dia inteiro e muitas estações a parar, mas um processo de conhecimento mútuo e de maior aproximação. E os deuses do Olimpo se irmanaram, como nunca na história da mitologia grega, para oferecer àqueles jovens as condições de se descobrirem para o amor verdadeiro que, desde a primeira troca de olhares, inocente e sem propósito, já vinha presidindo os seus atos.

No transcorrer da viagem se enamoraram… na verdade, formaram um belo casal. E se comportaram como todo e qualquer casal de enamorados em viagem. Nada demais que exigisse do narrador, por mais onipresente que seja, o debruçar-se sobre. Exigia-se dele, ao contrário, que não os importunasse, não revelasse, a quem quer que fosse, o que entre eles ocorria. Houve um momento apenas que vale a pena a indiscrição. Na estação de Quixadá, alguém oferecia flores. O rapaz escolheu um buquê de brancas margaridas, beijou-as com extremo fervor e o deu à amada. Coisas do amor que, inclusive, inspiram os românticos poetas, para quem, como Luís Vaz de Camões, o “Amor é fogo que arde sem se ver (…) / é um cuidar que ganha em se perder” ou, como Vinícius de Moraes, “Não há você sem mim / E eu não existo sem você” ou ainda, como o Xykolu (2), “Amada, amante, amo-te muito mais hoje do que te amei ontem…” e, por isso, “Em sua vida, é que eu existo… / Fora dela, só sei que nada sou!”.

É recomendável concluir assim: os dois jovens mantiveram um relacionamento futuroso por alguns anos, graduaram-se nas suas respectivas áreas de conhecimento – ele para cuidar das “causas” dos outros; ela para tratar dos sorrisos dos outros –, construíram a base material que lhes assegurasse um seguro começo de vida a dois e, então, casaram-se. E o amor, a mais importante das forças estranhas que também movem, sem que percebamos, as nossas vidas, manteve-os unidos, até que a morte não os separe.

Ao casal, um belo buquê de margaridas amarelas.

Quanto ao narrador, dou-me por satisfeito.

Notas do autor:
(1) A flor margarida significa inocência, juventude, virgindade, sensibilidade, pureza, paz, bondade e afeto.
(2) Em poemas que constam de livro que ora o autor ainda labora, com título provisório de Flor de cacto & outras que tais.

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