Confidências a Akhmátova

Na janela, o álamo murmura:
“Teu rei já não é mais deste mundo”
.

Hoje, não quero falar de álamo, não há álamos no meu sertão. Existem espinhos ferinos; os mais cruéis são aqueles, Anna, que despontam no tronco das línguas dos próximos, fingidos, a nos murmurarem palavras de consolo, enquanto, inocentes, somos alvos dos seus ferrões. “E nós, perturbados, amargos mas altivos,/ não ousamos erguer do chão os nossos olhos.”

Esta é a canção do último encontro.
De novo olhei a casa sombria.
No quarto apenas, brilhavam velas
com um fogo amarelado e indiferente
.

Cada morada de infância, na memória, tem um fogo amarelado e constante, chama de vela infinda, a retornar nossos mortos em canções de gestas, hinos de dor e lamento.

Não, não foi sob um céu estrangeiro,/ nem ao abrigo de asas estrangeiras –/ eu estava bem no meio de meu povo,/ lá onde o meu povo infelizmente estava.”

Vivo como o cuco no relógio
não invejo os pássaros no bosque.
Esta missão me foi dada e eu canto.
Sabe, destino semelhante,
só a um inimigo poderia desejá-lo.

Akhmátova, o povo russo, como toda nação, expressa melhor seu destino na pena de seus vates. Quando os poderosos os degredam, no exílio o estro mais se apura, e o poema, pássaro sem fronteiras, se torna porta-voz do mundo. “Mas, no quarto do poeta degredado,/ o Medo e a Musa velam em rodízio,/ e uma noite cai/ que não traz esperança de alvorada.”

A orquestra toca uma música bem alegre
e os meus lábios formam um sorriso.

Que música pode ser mais consequente do que as palavras por ti geradas, flor de sal e candura, na noite mais fria a todos ofertada? Toda poesia é uma música singular de pranto. “Quem há de chorar por essa mulher?/ Não é insignificante demais para que a lamentem?/ E, no entanto, meu coração nunca esquecera/ quem deu a própria vida por um único olhar.”

Aprendi a viver com simplicidade, com juízo,
a olhar o céu, a fazer minhas orações,
a passear sozinha até a noite,
até ter esgotado esta agonia inútil
.

Os mais simples reinarão na eternidade da Poesia, terra prometida. Os exilados se reconfortam ao escreverem, com pena e sangue, as orações agônicas que os sublimam. “Para mim, o exilado é digno de dó,/ como quem está preso ou está doente./ Sombria é a tua estrada, peregrino,/ vermes infestam o teu pão estrangeiro.”

***

Mas que poder tem esse homem
que nem sequer me pede ternura…
Mal posso erguer as pálpebras cansadas
quando ele pronuncia o meu nome.

Quem pronuncia o teu nome, poetisa, de olhos cerrados, se autoproclama senhor de um tesouro, semeadura de letras e mitos; quanto mais valioso, quanto mais calcinado. “É como se afastasses minha alma peregrina/ tanto do inferno quanto do céu.”

A verdadeira ternura não se confunde
com coisa alguma. É silenciosa.

Corro céus e terra e me confundo entre tantas léguas; quando não se sabe o que se busca, todo caminho é um desterro prenunciado. “Algum desocupado inventou/ essa história de que há amor no mundo.” E o amor me obriga a continuar caminhando silencioso, sonhando, mesmo que, Akhmátova, o colhido seja a messe do Nada.

Como conheço bem esses insistentes
e insatisfeitos olhares teus.

Teus olhares na página, teus versos na noite. E eu, cativo, revisito cada estrofe tua, Anna Akhmátova, e tua poética nada decifra. E, por isso, mais me encanta. “Dentro de cada ser há um segredo/ a que nem a paixão consegue acesso”.

Diante de meus olhos, que eram cegos,
ressurge concreto um mundo inteligível e familiar.

O Deus dos Céus cicatrizou minha alma
com a gélida calma da ausência do amor.

No dia a dia, a alma se insurge, insatisfeita com o instante incolor, com o pensar insosso, com o futuro sem rumo. “E a Musa, com o vestido rasgado,/ canta uma triste canção:/ é em sua angústia, rija, jovem,/ que está sua incrível força.” Bato a poeira da sola do tempo e invado o amanhã. No alto, cegos pássaros ecoam esgares infernais.

Mais do que todos os esquecidos aprendi a esquecer.
Serenamente fluem os anos.
Esses lábios inviolados, esses olhos sem sorriso,
não os encontrarei nunca mais.

O esquecimento no ouvido, no tato, no paladar. O olvido na voz, no silêncio do quarto frio, no retrato que te traz e me viola. “E o corpo espanta-se ao sentir-se leve/ e já não reconhece a própria casa”.

Já é hora de alçar voo sobre os campos e os rios,
pois nem consegues cantar
e tua mão nem tem forças
para enxugar tuas próprias lágrimas
.

Obs.: trechos em itálico, e entre aspas, extraídos da obra Antologia poética, de Anna Akhmátova; seleção, tradução, apresentação e notas de Lauro Machado Coelho (Porto Alegre, RS: L&PM, 2014).

Clauder Arcanjo

Clauder Arcanjo é escritor, membro da Academia de Letras do Brasil. Autor das obras Licânia, Novenário de espinhos, Uma garça no asfalto, Cambono, O Fantasma de Licânia, entre outras.

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Clauder Arcanjo

Clauder Arcanjo é escritor, membro da Academia de Letras do Brasil. Autor das obras Licânia, Novenário de espinhos, Uma garça no asfalto, Cambono, O Fantasma de Licânia, entre outras.