Conciliar para governar, por que e pra quê

Há um consenso de que não dá para governar o Brasil sem se ceder às exigências do parlamento que jamais será da esquerda como hegemonia paritária, e isto ocorre em todo o mundo com maior ou menor intensidade.

Mas, apesar disso, todos querem que o pé de laranja dê manga, ou seja, que haja governabilidade mesmo dentro dos parâmetros existentes.

O parlamento ocupa sempre majoritariamente as cadeiras do parlamento não porque os eleitores do Brasil sejam majoritariamente de direita, porque se o fossem Lula não teria ganho as eleições, mas porque as eleições proporcionais são manipuladas pelo poder econômico e político do Brasil profundo, onde imperam os chamados currais eleitorais.  

A grande maioria dos deputados federais e estaduais não se elegem por relevantes serviços prestados à comunidade, mas pela compra de votos junto aos chefetes políticos locais e verbas federais ou estaduais que conseguem liberar para os seus municípios e com isso obterem (ambos) o dinheiro das comissões pagas pelas empreiteiras visando às eleições que ocorrem a cada quatro anos para prefeitos e parlamentares em datas alternadas.  
Há parlamentares que se elegem sem comparecer regularmente aos estados pelos quais foram eleitos, e moram em Brasília e em alguma grande capital brasileira sem que os seus leitores sequer tenham ouvido falar em seus nomes.  

O que estou afirmando não é nenhuma novidade e todos sabem disso.  
Mas porque insistimos em considerar democrático tal processo??? É que normalizamos a corrupção política, bem como, na visão do eleitor incrédulo ou ingênuo, que o poderio econômico eleitoral é o momento propício para a  obtenção de algum benefício direto.  

É simplesmente imoral a verba eleitoral dos partidos políticos recentemente aprovada pelo TSE em proposta do orçamento federal de R$ 1,2 bilhões (já foi de mais de R$ 2 bilhões, e diminuiu um pouco por conta do escárnio à nossa inteligência o que isso representa) num país de renda média mensal dos assalariados, que segundo o IBGE se situa em torno de R$ 2.533,00, o que bem demonstra a nossa pobreza coletiva, se considerarmos a grande desigualdade de salários de uns e outros.
Podemos constatar, pelo baixo nível de renda per capita, que a grande maioria do eleitorado apenas sobrevive miseravelmente e aguarda o momento da eleição para obter um ganho ilusório qualquer.

Se dividirmos a verba partidária pelo número de deputados federais veremos que cada um deles custa anualmente aos brasileiros cerca de R$ 2,4 milhões, e para “defender” os interesses da “cidadania democrática”.

O que você acha que os partidos políticos brasileiros, que mais parecem empresas privadas com um dono na presidência, fazem com essa dinheirama???

Tudo converge para um processo eleitoral parlamentar viciado, e esta é a razão de termos no parlamento muitos elementos cujos currículos pessoais fariam qualquer pai de família zeloso do futuro de sua filha alertá-la para o mau casamento caso pretendesse escolher um desses para casamento e vida familiar.
 
Mesmo nos partidos de esquerda os candidatos mais combativos e líderes comunitários ou de movimentos sociais apenas servem de escada para o pequeno número dos seus companheiros que se elegem porque atuam com mais desenvoltura nestes quesitos de relações políticas interioranas de influência maléfica e compra de votos.  

O problema não pára por aí. Há o lobby parlamentar das grandes corporações setoriais; dos grandes interesses econômicos; e até mesmo do crime organizado que financiam candidatos e os elegem.  

A democracia burguesa funciona assim, e há quem ainda diga que é um mal menor, ou seja, que fora disso é a ditadura! Um engano assombroso.

Tenho dito repetidamente que o governante não governa, mas apenas se equilibra no poder tal qual um surfista que apenas se equilibra na onda para cegar à praia, sem alterar em nada a força da sua natureza.  
O estado nacional é uma criação do republicanismo burguês, doutrina tida e citada como princípio e código moral e ético de conduta pelos luminares do poder institucional a ser seguido e obedecido.  
Na verdade, a política institucional não tem soberania de vontade, vez que é dependente dos impostos que cobra e extrai da vida econômica burguesa, por ela mesma injusta e socialmente segregadora, e tudo faz e age no sentido não apenas de sua preservação, mas do seu desenvolvimento como remédio charlatão que serve para a cura de todas as doenças.  

Do Papa a Lula; do economista e líder dos sem-terra João Pedro Stédile ao chefe do Gabinete do ódio, Carlos Bolsonaro, o Carluxo, todos querem o desenvolvimento econômico, cada um à sua maneira, como se a preservação da relação social sob a forma-valor (dinheiro e mercadorias) fosse algo tão natural e ontológico como tomar água e se alimentar diariamente.  
     
Como toda unanimidade é burra, como diria Nelson Rodrigues, acho que todos os capitalistas deveriam eleger um novo Deus para adoração, porque o Deus valor, no seu processo de autodestruição, quer matar (e está matando) a sua própria criação: todos os serem humanos que o adoram e a ele estão subjugados.

É dessa forma que todos querem que o pé caiba no sapato, independentemente do tamanho deste último, vez que estão todos inseridos num mesmo contexto basilar, ainda que professem credos diferenciados.
O Estado é apenas a instância reguladora e regulamentadora de uma ordem econômica que lhe é subjacente e que pauta os seus procedimentos sempre dentro do desiderato de manutenção de sua existência como modo de relação social.

Quando se obedece ao preceito do ajuste fiscal, por exemplo, como acabou de se aceitar no governo Lula, tal procedimento é a régua econômica que determina que o Estado não pode gastar além do que arrecada (ainda que quem emita moeda forte possa fazê-lo sem ter problemas mais graves de inflação, porque a exportam e todos a aceitam ingenuamente), tal obediência mais não é do que a subjugação governamental a duas regras básicas:
* a) imposição da lógica ditatorial capitalista para a preservação das finanças do Estado (que assim mesmo está falido) como sentinela da ordem econômica do capital; e
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* b) manutenção da credibilidade do padrão monetário estatal por ele emitido como fator indispensável à relação social capitalista.  
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 Ainda hoje assisti a um debate no qual o interlocutor de esquerda exaltava os ganhos obtidos com a vitória do Lula no campo das conquistas sociais, bem como das posturas humanistas que recolocaram o Brasil num conceito de país mais civilizado e acolhedor de todas as etnias e credos.

Dizia ele, entretanto, que isso não era bastante, porque a direita além de estar crescendo, tem atualmente uma militância popular que lhe confere alguma legitimidade, representada pelo crescimento e união de neopentecostais, viúvas da ditadura miliar, ruralistas latifundiários, empresários do agronegócio, setores beneficiados com subsídios e/ou isenções fiscais, etc., etc., etc.  

Até aí estava tudo bem, mas a solução por ele apresentada, era a conscientização da população de que deve se opor a esse crescimento mediante uma estrutura de organização de base conscientizadora, sem dizer exatamente os conceitos dessa conscientização, deixando parecer que tudo seria apenas uma questão de ação política popular menos preguiçosa e mais ativa, e de modo a se estabelecer um governo estatal (com tudo o que se lhe incorpora, valor, impostos, etc.) mas tão popular que fosse capaz de se tornar independente da conciliação com os donos do parlamento e do PIB.  

Algo assim como se tudo fosse uma questão de competência administrativa da esquerda institucional, mesmo sob as velhas bases de relações sociais escravistas, que se deduz que o entrevistado considera, equivocadamente, como possíveis de ocorrer se se derem numa correlação de forças majoritárias de esquerda apoiada pela população.

Admitindo que no governo Lula a economia vai melhorar, citava ele como exemplo de sua cruzada conscientizadora contra a conciliação, a ineficácia da conciliação política havida no governo Dilma, que resultou em sua queda num golpe de direita.  

Concordo, como de resto venho demonstrando em inúmeros artigos, que há que se conscientizar a população, mas não podemos querer que as coisas se consertem e obtenhamos apoio popular permanente para um projeto político fadado ao fracasso se não combatermos as causas e estruturas que lhe dão sustentação.

Assim, considero que:
– a economia brasileira globalizada, ainda que venha a ter melhorias pontuais, não resistirá à depressão econômica internacional, aliada aos efeitos danosos do aquecimento global e guerras, e tende a sofrer dificuldades ao longo do mandato de Lula;
–  há que se fazer um esforço comunitário para que a população seja conscientizada sobre o fato de que no capitalismo não pode haver estado democrático e um governo daí derivado que seja capaz de protege-la e, principalmente, sobre a essência e raiz dos seus problemas de modo a que possa se livrar do fetichismo da mercadoria, que tal qual os apostadores da loteria, promove prognósticos esperançosos mas inatingíveis de riqueza individual;  
– acabar com o eterno pêndulo entre direita e esquerda institucionais, que atuam sob uma mesma base, e sem que nenhuma das duas possa oferecer alternativas de soluções dos problemas sociais e ecológicos que nos afetam e que aumentam a cada dia e de modo cada vez mais acentuado e contundente.

A conscientização tem que se dar pela negação do negativo.  

Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;