Como Jesus de Nazaré lidou com a violência romana

“Vocês pensam que eu vim trazer paz à terra? Não, eu digo a vocês. Ao contrário, eu vim trazer a divisão”.

Desde o início do seu governo, em primeiro de janeiro de 2019, o atual presidente da República, com seu marketing estratégico de criar uma sua imagem vinculada ao ethos de pessoa religiosa – encarnação real de um sepulcro caiado – decidiu-se por disparar publicamente frases de efeito, retiradas do livro sagrado da tradição cristã, a Bíblia. Inaugurou tal estratégia publicitária com a frase: “Se permanecerdes fiéis às minhas palavras, conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo, 8:32), utilizando-se apenas da segunda parte desta assertiva, omitindo deliberadamente a enunciação da condição necessária sem a qual tal conhecimento das verdades evangélicas não se realiza, ou seja, a fidelidade à mensagem jesuânica.

Segundo pesquisadores, em 1.287 dias ocupando a função de presidente, ele deu 5.724 declarações falsas, mentirosas ou distorcidas, numa média de 4,5 mentiras diárias. Em recente encontro no dia 18 de julho de 2022, com embaixadores estrangeiros residentes no Brasil, para atacar o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), como mais uma etapa de sua ação deliberada de desmoralizar a Instituição que controla as eleições, na busca de evitar a sua anunciada derrota, afirmou: “Tudo que vou falar aqui está documentado na minha cabeça (sic!).  Atentar contra as eleições e a democracia, quem faz isso é o próprio TSE. Será que esqueceram que eu sou o chefe supremo das Forças Armadas?”. Ou seja, mais uma construção de narrativa golpista, inverídica e autoritária de ameaça à democracia brasileira.

Em resposta imediata a tais disparates proferidos pelo chefe supremo das Forças Armadas, o presidente do TSE, ministro Edson Fachin, em evento ocorrido na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), no mesmo dia, em Brasília, declarou:Há um inaceitável negacionismo eleitoral por parte de uma personalidade pública importante dentro de um país democrático e é muito grave a acusação sem apresentar prova. Essa é a manipulação que estamos todos a enfrentar: tentar sequestrar a ação comunicativa e assim, ao fazê-lo, sequestrar a opinião pública e a estabilidade política”.

Ontem, 23, numa profícua reunião, por quase três horas de diálogo, com os coordenadores nacionais do Movimento Político Pela Unidade (MPPU), Flávio dal Pozzo, Edejohnson Pinto e Almir Franco, que estão realizando uma caravana pelo Nordeste do Brasil para dialogar presencialmente com suas comunidades de base cristã, pudemos tratar desta questão, como tão bem assinalou acima Edson Fachin, da violência semiótica do bolsonarismo no sequestro da opinião pública, o qual vem influenciando fortemente certa parcela do eleitorado cristão devido, entre outras razões, à ausência de espaços permanentes para a realização de um processo de atualização formativa coletiva e continuada dessas comunidades, diante deste fenômeno voltado para a construção de narrativas manipuladoras de consciências, como é o bolsonarismo, levando-as a conclusões superficiais, equivocadas, reducionistas, chegando até a gerar apoios escancarados de lideranças nacionais religiosas de perfil conservador, como estamos tendo a oportunidade de acompanhar desde a campanha de 2018.

Num dos temas tratados na conversação com os coordenadores do MPPU, fizemos algumas pontuações acerca de como estamos buscando entender um pouco mais a mensagem e a postura jesuânica diante da violência do império romano contra as comunidades de camponeses judaicos daquele tempo, a partir dos estudos produzidos pela sociologia da religião, do professor emérito Richard Horsley, da Universidade de Massachusetts (Boston, EUA), examinador, em novas e críticas pesquisas, da evidência que os Evangelhos oferecem da prática e pregação de Jesus de Nazaré, acarretando como consequência uma reavaliação crítica de nossas próprias suposições e abordagens sobre ele. A busca desse entendimento visa estabelecer nexos com o tempo presente, na tentativa de encontrar novas compreensões e encaminhamentos concretos para o nosso agir humano.

Um ponto dessa temática tratada em nossa conversa gostaríamos de aqui elucidar: paz não significa ausência de conflitos; mas o enfrentamento corajoso e sereno dos conflitos pode conduzir a sínteses de paz. Segundo o autor, a tradição dos Evangelhos está repleta de conflitos, muitos deles com dimensões violentas. Todos os três Evangelhos Sinóticos começam e terminam com conflitos. No início do texto de Mateus, encontra-se o massacre dos meninos inocentes abaixo de dois anos de idade, ordenados por Herodes (Mt 2, 16). Em seguida, Herodes Antipas manda prender e executar João Batista, autorizando cortarem sua cabeça (Mt 14, 9-11). No evangelista Lucas, Maria mãe de Jesus canta um Deus que “derruba do trono os poderosos e eleva aqueles que estão na base da sociedade judaica” (Lc 1, 52). Além disso, no Discurso da Planície, Jesus oferece o Reino de Deus aos pobres e pronuncia “ai de vós” contra os ricos (Lc 6,20-24). Quando avisado que Herodes Antipas procura mata-lo, Jesus declara que continuará a exercer suas atividades repreensíveis (Lc 13, 31-33). E no evangelista Marcos, após o primeiro ato de Jesus no chamamento dos seus apóstolos, na alegoria do “espírito imundo”, anota-se: “O que tens a ver conosco, Jesus de Nazaré? Vieste nos destruir?” (Mc, 1,24). Portanto, para Horsley, em termos de espiral da violência, as tradições dos Evangelhos deixam claro que Jesus se opôs diretamente contra a opressão praticada por grupos governantes e que sua conduta era virtualmente um convite aberto a enfrenta-la.

O mais proeminente dos conflitos apresentado pela tradição dos Evangelhos é a crucificação de Jesus de Nazaré pelos romanos. As acusações que incidiram sobre ele não eram completamente falsas. A execução na cruz não era uma pena imputada a quaisquer tipos de crime, mas aplicada pelo Império Romano àquelas pessoas que conspiravam e buscavam romper a ordem dominadora. Ao anunciar a iminência da chegada do Reino de Deus, Jesus estava anunciando o fim da ordem antiga, da pax romana. Ou seja, a qualificação do crime de Jesus continha uma dimensão política. Ele não chegou à condenação de cruz por nada, por não ter anunciado nada ou nem por não haver agido buscando influenciar na queda da ordem social opressora de então. Ele foi condenado, torturado e executado na condição de criminoso político. Portanto, para os fiéis de hoje que pretendem uma fidelidade à mensagem jesuânica, a simbologia da cruz deve ser algo sempre esperado em seu dia a dia de ação política da superação dos conflitos em vista de “novos céus e nova terra”.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Editora Dialética); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .