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CEARENSÊS PARA O BRASIL

Cada um de nós carrega consigo um pequeno mundo, cheio de idiossincrasias, que nos identifica e que nos insere dentro de um mundo pequeno das relações cotidianas. Essas relações fazem parte do processo de construção da vida em casa, na rua, no bairro, na cidade… no mundo.

Cada grupo que se forma é identificado pelas semelhanças e tende a instituir, às vezes, minimamente, um código próprio, diferenciador de outros grupos, pela linguagem. Assim são os grupos técnicos, os surfistas, os policiais, os marginais, os da zona norte, os da zona propriamente dita etc., todos, no entanto, têm contato uns com os outros através da língua comum que nos une, no caso a língua portuguesa. Ora, mas será que falamos língua portuguesa? Mas qual língua portuguesa? Certamente a nossa é uma superposição de línguas que vêm desde a galega, passando pela moura (que veio do Oriente) mais as neolatinas, vizinhas de Portugal, mais as africanesas, mais as indígenas e as inúmeras outras que deixaram palavras e expressões misturadas ao nosso portuguesinho arrastado. E arrastar o português já seria falar uma língua variante, que José de Alencar queria fosse a língua brasileira. 

E o que dizer ao se ouvir um diálogo entre um gaúcho (pode ser de sete facas), um paraibano e um caipira mineiro? Dá a impressão de que um ou outro não entende e não se faz entendido para o que ouve. Dá pra repetir? Como? Não entendi. Esse estranhamento é o que batizei de língua de casa. A linguagem, produto desta língua, leva muito tempo para se construir, várias gerações até. Como geralmente a gente leva a casa pra rua, a rua pro bairro e o bairro pra cidade, tem-se, ao longo desse processo, uma linguagem característica de uma determinada região, que levou um tempo considerável para ser construída e que a globalização imposta pelos meios multimídias não conseguirá desunir.

O que o cearense fala diferente da norma culta é uma decorrência do modo cearense de ser. Assim, do gentílico cearense surge, por analogia, o cearensês, a língua falada no Ceará. Como não resistimos a um neologismo, nós, cearenses, falamos numa linguagem alegre, moleque, relaxada das peias gramaticais, apesar dos intelectualoidese dos debilais, com um agravante, que a gente usa como atenuante, ou vice-versa, tanto faz. Mais vale uma piada na boca do que uma boca piada.

A maior parte dos termos enfeixados no Super dicionário de cearensês, livro por mim publicado no ano 2000, vem do povo. E estes termos foram coletados nas esquinas, nos bares, nas festas e nas conversas com os amigos em todo estado do Ceará. Algumas expressões são típicas da região centro-sul e Cariri, como “ô xente!”, “Eita!”, “Tá com a mulesta”, “Doidin”, “Caba véi”, dentre outras, embora tenham sido registradas também, mas com menos incidência, na zona norte e no litoral. Algumas são criações recentes, frutos do bum do humor cearense pelo Brasil. Outras foram ouvidas por aí e aceitas por aqui, tornaram-se antropofagicamente nossas. Há as que surgem como corruptela de outras já incorporadas pelo uso popular. Umas, ainda, fazem parte da zombaria que se faz de gente empolada que quer verborragizar o mais simples e termina acanalhando tudo. Pra eles, uma vaia. 

No Ceará, há algumas publicações que registram esse vocabulário criado, adaptado, parodiado, parafraseado, palimpsesteado, mas que faz a diferença na hora da gente abrir a boca pra falar. A maior parte das expressões e vocábulos por mim coletados, fazem parte do acervo do cearense anônimo, simples ou intelectual, nesse ponto tudo fica nivelado pela molecagem. Basta ver nos shows de humor, nas rodas de bate-papo do bairro, na praia, nas praças, nos botequins ou no alto soçaite, quando aquelas peruas, com as bolsas cheias de salgadinhos, conseguidos avançando sobre os garçons, comentam entre si com os lencinhos sujos de gordura e batom e que delicadamente levam à boca: “Tá vendo aquela sirigaita, querida, dizem que ela tá largada do Armando, agora amancebou-se com o Ludovico, aquele fuleragem que tem bafo de jaula. Oh, mulher do meu abuso!”. Tudo isso, afora os escritores que dão uma contribuição fenomenal, através dos neologismos, desde Alencar até José Alves Fernandes, o  estudioso mais aloprado no assunto.

Então, cabe aqui uma pequena pergunta muito simples: Que língua se fala no Ceará? Primeiramente, devemos lembrar que a língua é um produto e é produzida pelo povo, portanto, quem nasce no Ceará participa da produção de uma linguagem recheada de cearencismos. A língua, para o cearense, é mais do que um instrumento da cultura, é um instrumento da lambedura. Por ela, ele revela o seu modo de ser e de agir diante de determinadas situações.

Refazendo um processo inverso ao da colonização europeia, que trouxe a contribuição de todas as línguas estranhas ao Tupi, Guarani, Jê, Ianomami etc., o cearensês é um contributo arretado para o enriquecimento da língua portuguesa aqui misturada, neste rincão onde Iracema se banhou nos verdes mares bravios, escutando o canto alegre da jacaúna no coqueiro, depois indo tirar o sal na bica do Ipu, José de Alencar esticou a baladeira aí; onde Conselheiro reuniu seus beatos e partiu para fundar o verdadeiro Brasil; onde Padre Cícero pregou para libertar o povo da miséria, do Cariri para todo o Nordeste; onde Bárbara de Alencar, resoluta, disse não aos poderosos e amargou um calvário frio na Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção; onde um jangadeiro disposto desafiou os mares de Netuno e venceu a distância que separa o sonho do real, tornando-se um verdadeiro Dragão do Mar; muitos mais poderiam ser lembrados, como os anônimos que, após quatro tardes nubladas, viram o sol saindo preguiçoso na Praça do Ferreira e meteram a vaia. Ou os homens de pés rachados que plantam, ao menor sinal de chuva, a esperança para as nossas mesas. Este é o povo do Ceará. Um povo humilde e brincalhão, moleque e trabalhador. Um povo que, apesar das adversidades todas, ri da tristeza e gargalha na alegria. Um povo que fala a língua com a voz do coração.

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