Uma das primeiras tentativas modernas de explicar a complexa relação entre indivíduo, sociedade e Estado advém de Thomas Hobbes, principalmente no “Leviatã, ou matéria, forma e poder de uma república eclesiástica e civil” e no “Beemote, ou o longo Parlamento”. As duas obras foram batizadas com metáforas oriundas da Bíblia, dois personagens-monstros, a saber, um dragão ou serpente marinha, o Leviatã, a designar o poder soberano do Estado, que promove a paz; o outro, o Beemote, figurado como um hipopótamo gigante, provocando a divisão e o enfraquecimento do Estado, atiça e promove o conflito que leva à guerra civil.
Para este pensador político inglês do século XVII, os indivíduos (competitivos, desconfiados e vaidosos), antes de constituída a sociedade e o Estado, viviam num “estado de natureza”, estabelecendo verdadeira “guerra que é de todos os homens contra todos” e partilhando “nenhum prazer na companhia dos outros”. No entanto, por meio de um contrato social, em que se destacam, em primeiro lugar, a associação entre os indivíduos e, em segundo, a sujeição consentida de todos ao poder do Estado, os indivíduos evitaram, no limite, o fim da própria espécie humana e afastaram o “constante medo e perigo da morte violenta”
A ideia hobbesiana de que, em última instância, a segurança é dever fundamental do Estado não perdeu a força e transcendeu o tempo em que foi formulada, estando consignado na Constituição Federal brasileira, inclusive, que se garantirá aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à segurança. De fato, os tempos modernos estão indelevelmente marcados pelo consenso de que o poder político é aquele que está em condições de recorrer, em última instância, à força ou coerção física, ou, como ressalta Max Weber, no ensaio “A política como vocação”, o Estado contemporâneo é uma comunidade humana, que, dentro dos limites de determinado território, reivindica “o monopólio do uso legítimo da violência física”.
No Brasil atual, o poder do Estado, tomado este numa acepção mais ampla, passa por severo relativismo na capacidade de formular, decidir e implementar a política de segurança pública, observando-se, em unidades federativas subnacionais, situação extremamente mais grave ou mesmo desesperadora. Com certeza, o Estado do Ceará é uma delas, e, em Fortaleza, é onde mais se materializam os índices de dissolução do poder estadual. A capital do Estado e a sua região metropolitana têm-se destacado, a crer nos meios de comunicação, ora como campeã de mortes violentas ora como refúgio tranquilo de “capi” de organizações nacionais e multinacionais. E, renitentemente, vítima do “constante medo e perigo da morte violenta”.
Aqui, o Leviatã foi cercado perigosamente pelo Beemote, o monstro da guerra e da desintegração social. Capitalistas selvagens de diversos jaezes de negócios criminosos, cujos exércitos de operadores são em grande medida arregimentados nos bolsões de pobreza, abandono e preconceito, desestabilizam o cotidiano urbano, relativizam as instituições estatais e fazem a sociedade retornar ao estado de natureza. Em tal guerra, como em outras, a primeira vítima é a verdade. Consequentemente, meias-verdades, pós-verdades, inverdades campeiam, oriundas do poder político oficial: aqui é o chefe do governo a afirmar que está tudo sob controle, ou numa formulação canhestra da lei newtoniana da Física a proclamar que a cada ação haverá uma reação, ali é o secretário da segurança a produzir um atacadão de afirmações patéticas e de diatribes ao Estado de Direito, acolá outra autoridade a proclamar que nos cárceres desta terra reina uma paz… de cemitério. Acima de tudo, espraia-se pela sociedade e, pior, pelos fautores do crime e da desordem, a desconfiança de que as forças da ordem não têm força, que o poder político está atarantado e que a delinquência, contra o Estado ou entremeada no Estado, progride.
Para a reflexão, lembre-se que Hobbes, no “Leviatã”, no capítulo denominado “da condição natural da humanidade relativamente à sua felicidade e miséria”, diz que, sem o Estado, “a vida do homem é solitária, sórdida, embrutecida e curta”. No Estado do Ceará, ter-se-á o engenho e arte necessários para, suplantando a situação a que se chegou, reverter o caminho da barbárie e retomar o caminho da civilização? Ou se caminhará na marcha batida de volta ao estado de natureza, de vida solitária, sórdida, embrutecida e curta?