Cartas amorosas. por PEDRO HENRIQUE

“Todas as cartas de amor são

Ridículas.

Não seriam cartas de amor se não fossem

Ridículas.”

(Álvaro de Campos)

 

I

Me desculpe a falta de jeito, o abraço acanhado, me desculpe as palavras não ditas, o meu silêncio, me desculpe a indecisão. Espectros de mim que ainda me rondam.

Além do pedido de desculpas, pretendo um desfecho digno, à altura de nossas pretensões. Não me contentei com o seu desdém, e até esperava outra postura – mais franca – de sua parte, apesar de compreender bem o significado dele, e as minhas contribuições para isso.

Relações afetivas normalmente são assim, um lado sente com maior pesar a perda – como diz o matuto: a corda sempre arrebenta do lado mais fraco –, nesse caso fui eu. E sim, meu coração ainda está estirado no paredão de fuzilamento. Mas, além do espectro da subversão radical a me rondar, eu não conheço melhor combustível para uma poética que o velho coração partido.

No primeiro anti-filme de Debord (Uivos para Sade) uma das vozes diz que o amor é válido apenas em um período pré-revolucionário. Adorno, não sei bem onde, diz que depois de Auschwitz fazer poesia é um ato de barbárie. Como de costume, ainda não tenho uma posição acerca disso, mas pensei andando que um coração partido, e mais, uma poética sobre essa base, num contexto como o atual – de crise –, é um ato de barbárie, e isso basta para uma autocrítica e para ressignificar os próximos passos.

No mais, procurei não ser objetivo nesta carta, espero que você compreenda o significado dela, que não tenho mágoas, que ainda lhe acho linda e perigosa, apesar de já não nutrir esperanças com relação a nós. Um abraço, e força na sua cabeleira!

 

II

A senhorita me pediu trégua mal eu declarei guerra. Minha estratégia era justamente a sutileza, ir lhe cercando até chegar a hora certa de lhe render. Acabei sendo surpreendido e tive de dar um tiro no desespero. Sun Tsé diria que falhei em dois pontos da arte da guerra: “Por mais críticas que sejam a situação e as circunstâncias, não aceite o desespero… quando se é surpreendido, deve-se surpreender o próprio inimigo”. Mas me elogiaria num outro: “quando já se esgotaram os recursos, deve-se contar com todos os recursos”. Carl von Clausewitz diria que não aprendi nada com sua obra Da Guerra, mas me elogiaria a paixão. A verdade é que nem tudo na vida se resume numa estratégia. Essa lição talvez Che Guevara tenha aprendido, quem sabe lendo Guerra e Paz de Léon Tolstói. Coincidentemente, ao ler uma crítica de Marx sobre o dinheiro, me deparei com o seguinte fragmento: “Se tu amas sem despertar amor recíproco, isto é, se teu amar, enquanto amar, não produz o amor recíproco, se mediante tua externação de vida como homem amante não te tornas homem amado, então teu amor é impotente, é uma infelicidade”. Não posso dizer que não lhe quero, mas, se for o que me restar, aceito um velho conselho de Drummond: os amores passam, fica o coração.

 

 

 

III

Sinto informá-la a falta do tempo: não visitá-la-ei, já que mo falta; não amá-la-ei, já que me devorou. Por motivo trabalhista e monetário não hei de vê-la esta noite, nem mesmo nas próximas… sabe-se lá quando a verei!

– Que ilário, o aumento do salário só amplia o meu calvário!

Espero que me desculpe por ter deixado escapar assim o tempo, do qual goza até quem nada mais possui; espero que me desculpe por não fazer valer o velho princípio: a vida é breve, se vivemos é para sobrevoar acima da cabeça da abstração real, déspota esclarecido dos modernos homens sem qualidades: o dinheiro!

 

IV

 

*

Ao fim da tarde,

te procurei:

um doudo a vaguear…

Te encontrar, não encontrei:

senão que no abstrato pensar…

E ao término

deste passeio dominical

soliloquente

fiquei sem saber

quando hei de me encontrar.

 

**

“Inês é morta”, dizia sem perdão D. Pedro no dia em que mandou arrancar o coração dos assassinos de D. Inês, sua amada.

Teus olhos, que são tristes, me expressaram indiferença e desprezo. Além do grotesco espetáculo do “eclipse de uma paixão”. Simplesmente emudeci.

Queria eu poder morrer de amores, como noutros tempos. A objetividade do mundo já não me permite tal regalia, à qual costumei perseguir feito um cão obstinado durante boa parte de minha vida.

Decerto o difícil será suportar num só peito de homem, sem que ele estale, o acontecido. Ao menos, me restam os ideais, onde assento minha caminhada, e a certeza de que noutro contexto as coisas teriam sido bem diferentes de como foram…

– E a de que, agora: “Inês é morta”.

 

***

O reino que nunca tive para reacender a chama que deixei apagar. O reino que não tenho para reaver o que deixei escapar. O reino que jamais terei pela tempestade que deixei abrandar.

O reino que não herdarei. O reino que não tomarei de assalto. O reino que não me aceitaria nem mesmo como servo! Por uma carícia, um olhar de encanto, uma doce palavra sequer.

O reino que se tivesse abdicaria para saber “Qual poema eu te escreverei por entre os mitos do amor e as palavras do ocaso? Por onde encontrá-la entre ramos de absinto e relvas imemoriais?”.

 

V

quando fiz vinte e sete anos você me deu o presente mais bonito que eu podia receber. não só pelo desenho, mas pelo que estava escrito no verso. você me dava seu amor na esperança de ver brotar o que só me veio tão tarde – “quem sabe assim brote talvez do asfalto não uma flor, mas o amor como um cacto, resistente e com espinhos, despido de romantismos e demais conjecturas…”.

e mesmo não tendo te dado nada de presente, você ainda assim me retribuía a mesma esperança quando eu dizia que já não sabia o que sentia por você – “eu abri a porta para que você talvez fosse, mas eu nunca quis que você fosse de verdade, ou que fosse mas voltasse… eu abri a porta para que você fosse e você foi e eu pensei que talvez voltasse, quando eu vi você já foi… eu abri a porta querendo que você ficasse, você foi, mas eu queria que você voltasse, pode não ser nunca mais do mesmo jeito, eu posso mudar um monte de coisa, mas eu queria que você voltasse…”. e eu não consigo não engasgar quando leio. choro tanto… e hoje sou eu que te digo.

e mesmo quando eu não te ouvia, te deixava sozinha me dizendo essas coisas, e mesmo quando eu te gritava, te odiava quando a praga atingia meu plantio tão mal feito, você ainda assim me dizia que era possível juntar os cacos e colá-los. e hoje sou eu quem tenta juntar os cacos…

os índios desse Siará perderam na terceira expedição, Canudos caiu na terceira expedição, eu acho que consegui matar seu amor o negando três vezes. que amor resiste a três cruzadas contra si? Pedro negou Cristo três vezes antes do galo cantar, Pedro é homem de tão pouca fé que não aprendeu a remover montanhas, que não soube andar sobre as águas… mas Pedro é pedra e teima, mesmo não sabendo fazer milagres. seu mestre Jesus o redimiu de suas próprias renúncias com aquelas três perguntas amorosas: – Pedro, tu me amas? – Pedro, tu me amas? – Pedro, tu me amas?

não entendo como é possível fazer tanto mal a quem se ama. não entendo mesmo. quando fiz vinte e sete anos e o jogo de xadrez que eu jogava com a morte só para adiá-la me deu um xeque (quase mate), quando a ampulheta que marcava o tempo daquele Pedro que você conheceu se encerrava, eu não sabia o que fazer. me escondi, saí do trabalho, fiz tudo como se fosse aquele o último canto do cisne, o seu mais belo, antes do fim.

e foi assim que te disse não. você que eu olhava desde 2011 quando eu trabalhava de barman e te via entrando no mesmo ônibus; você que eu costumava olhar de longe, mas que sempre estava com outra pessoa. até que um dia, sem esperar, chegou minha vez, e eu te chamei pra dançar (logo eu, que até hoje nunca danço), e assim te conheci; quando te pedi um beijo, você me disse que não sabia, mas eu tinha certeza, e te beijei.

perdi tudo em que me sustentava nessa virada de ano. lambi todas as minhas feridas durante os últimos cinco meses de permanente dor de garganta e refluxo. que nem um José, já não podia beber, já não podia fumar, cuspir já não podia; estava sem mulher, sem discurso, sem carinho; e o dia não vinha, e o bonde não vinha, não vinha a utopia. cicatrizei-as todas, menos uma: você.

ironicamente, realizei aquela bad de lsd. nela eu assumia todas as possibilidades que o mundo me dava, queria tudo, sobretudo as desgraças. e as vivia em frações de segundo  como num sonho, e me perdia no labirinto das minhas pulsões. foi quando disse que te amava, quando percebi que você era ao mesmo tempo Virgílio e Beatriz a me tirar do meu próprio inferno.

nunca tomei o daime porque essa experiência me foi muito traumática. nunca tomei daime porque desde criança até hoje tenho medo de alma, de espírito. mas porque sou muito simples e profano, e mesmo muito racional e do contra, pra saber lidar com rituais. mas acho que aprendi a respeitar, e quero mesmo passar pela experiência.

tenho aprendido tanta coisa. estou sinceramente me esforçando pra construir meu próprio caminho, que quero muito que seja a partir do plantio e do cuidado com a terra, que tenho visto que pode ser também a partir da saúde, e tantas outras pequenas coisas que aos poucos estou resgatando.

mas tudo isso me pesa tanto porque sei o quanto gosto de você, e quanto nosso vínculo é único, o quanto queria uma segunda chance… mas acabei chegando tarde demais. como é que você pode ainda apostar em mim? tenho todos os contras possíveis, tenho todas as fixas do meu jogo esgotadas. e, no entanto, se eu não tivesse certeza de que você gosta de mim, talvez eu não fosse tão teimoso.

se eu não tiver outra escolha a não ser entregar minhas armas, as entregarei e vou sinceramente querer que você seja muito feliz.

 

“Não, meu coração não é maior que o mundo.

É muito menor.

Nele não cabem nem as minhas dores.

Por isso gosto tanto de me contar.

Por isso me dispo,

por isso me grito,

por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:

preciso de todos.”

(DRUMMOND, Mundo Grande)

Pedro Henrique

"Anota aí: eu sou ninguém"

Mais do autor

Pedro Henrique

"Anota aí: eu sou ninguém"