Carnaval: silêncio no salão, barulho no coração

A metade dos 90 já tinha chegado quando brinquei o meu primeiro carnaval nas matinês do icônico Brejo Santo União Clube (B.S.U.C). Era época dos pagodes 90, com passinhos coreografados e teclados estridentes, – shortinhos, abadás, guaraná e loló. Golas de camisas umedecidas no entorpecente e cabeças encostadas nos ombros dos meninos,  em um abraço coletivo, a cada poucos minutos era o tempo da galera cheirar, dançar, beijar e reprisar. Na fronte de muitas de nós estava escrito: somos filhas de pais ciumentos; fosse ele doutor, jogueiro ou banqueiro, motorista, vaqueiro ou auxiliar de qualquer coisa. A festa era de famílias inteiras, um bocado gostoso de tempo gastávamos todos os dias da temporada.

Mesmo num grande grupo de amigas, cada uma tinha a sua bestfriend, que quase não desgrudava por nada, separavam as mãos somente na hora de abraçar os seus inocentes amores de carnaval.

No primeiro dia que a banda tocava, as serpentinas caíam e todo mundo era feliz. Do salão do clube, no final da tarde, para o chão da Praça Dionísio Rocha de Lucena, lá se iam, todos em procissão pelas asseadas ruas da pequena cidade.

Não me recordo se tinha tantos animais morando nas ruas, quanto tem nos atuais dias.

A festa continuava! O loló acabava, a fome apertava e a gente corria pra comer as esfihas mistas ou de carne com molho de pimenta na Pizzaria de Wiron, ou os deliciosos hamburguers no Trailer do seu Nilo.

Era divino. Divino carnaval, divino beijo, divina pimenta na esfiha.

Quisera eu,  cheia de saudade e quase vinte anos depois, tivesse ainda as matinês de domingo e terça-feira no referencial B.S.U.C. É certo que deixei para trás o Mercado dos Pinhões, a Praça da Gentilândia ou até mesmo o blues da Serra, a fim de passar um feriado mais aconchegante com parentes e amigos, mas é claro que lá nos esconderijos da mente eu gostaria de me esbaldar nas extintas matinês.

Primeiro, fui até a feira do centro, comprei um punhado de camomila fresca, cravo, canela e alecrim. Depois fiquei o resto da manhã sentada na praça redesenhando cada lembrança da Dionísio Rocha. Um gato de rua se agasalhou nos meus pés enquanto mirava um cãozinho que dormia embaixo do arco.

Do outro lado, a Caldeira do Inferno, o bar: um capítulo à parte expondo a nossa alma a concretude e densidão de um passado presente. Lugar de eternas saideiras, reuniões de políticos, críticos e doutores; o professor de História ajusta, com um copo de pinga na mão, os mais complicados ou fáceis enredos; das confidências trançadas e destrançadas no tempo e assistidas pelos ilustres, velhos e cúmplices frequentadores. lembrando o Sarau de Joaquim Manuel “todos murmuram e não há quem deixe de ser murmurado”. Ah, seu Chico e a Caldeira – imortais! E o seu Tião? Sem dúvidas, ele faz parte da estética do lugar.

Passado o carnaval, fui até a Igreja Matriz e descobri que os santos estavam todos cobertos com um tecido marrom ou preto, eu já nem lembrava mais dessa tradição por não praticar o catolicismo. Fato que somente serviu para aumentar a beleza inconfundível da Matriz. Foi o mesmo espanto com o qual vi os ex-foliões, brincantes e passistas do sábado gordo, quase todos com a cruz de cinza na fronte, depois da missa de Quarta-Feira de Cinzas (um símbolo do dever da conversão e da mudança de vida, para recordar a passageira fragilidade da vida humana). É misterioso como alguns lugares nos trazem uma visão nova a cada vez que o revisitamos. Em outra vez que estive nessa mesma igreja, o que me chamou a atenção foram os banquinhos da praça, pra onde muitas vezes fugia para namorar escondido de papai.

Preferi ir à igreja no momento em que ela estava vazia: no confessionário, década de 90, uma uma fila de adolescentes se preparava para a Primeira Comunhão, de sapatos lustrosos  e batina impecavelmente engomada, o Padre Dermival cruzava o salão da Paróquia. Uma imagem tão eterna quando os santos fixos nas paredes.

Por fim, fui até B.S.U.C com minha irmã. Era tarde de quinta-feira, as portas abertas, ele parecia imenso, silêncio, vazio. O cimento, levemente esburacado pelos passos de dança de uma vida inteira, me fizeram encostar numa das colunas, fotografar e gastar silenciosos minutos ali.

Silêncio no salão, barulho no coração.

Não que o B.S.U.C fosse o melhor clube do mundo, mas era bem diferente dos clubes da capital. Era o lugar onde passei os melhores carnavais.

Fiquei toda feliz quando cheguei à porta de casa e vi os gatinhos de estimação de papai me esperando, se pudesse salvaria todos os que encontrei na rua, e os cachorrinhos também. Ouvi falar que na cidade tem alguém que salva muitos animais, mesmo em tempos de carnaval eles nunca serão invisíveis.

Por muitos anos deixei de ir em BS, e fazia tempo que não acordava em uma Quarta-Feira de Cinzas sentindo um cheiro irresistível de café Ojuara com pão. Como algo tão simples pode trazer tanta felicidade? Eu não sei.

Quem tem medo da nostalgia não se atreve imaginar o que seria o passado se de repente ele voltasse a ser visível. No palco a banda toca “a cor dessa cidade sou eu”, no meio dos confetes, cola no peito, enfia a língua no céu da boca e sente o chão do B.S.U.C girar. É carnaval!

Foto: Heliana Querino

Heliana Querino

Heliana Querino Jornalista

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Heliana Querino

Heliana Querino Jornalista

3 comentários

  1. Heliana Querino

    Queridos leitores, me sinto enaltecida com vossos comentários.

    Pedro Gurjão, quanta honra!

    Adriana, obrigada pelo carinho.

  2. Adriana

    Direto do tunel do tempo historia mais pura e verdadeira de um tempo único e maravilhoso onde um quarteto fantástico formado por 4 lindas gatas 2 irmã e duas irmã causavam arrasavam e brilhavam eita tempo bom inesquecível … amo demaisssss parabéns Heliana por faser nos voltar ao passado com tanta emoção.

  3. Pedro Gurjão

    Há muito não lia uma crônica tão bem escrita quanto essa da jornalista e pesquisadora Heliana Querino, colunista do Segunda Opinião.
    Um belo passeio pelos escaninhos e impressões da memória, revisitando as mais significativas lembranças dos inesquecíveis carnavais – que não voltam mais.
    Impressionante a riqueza de detalhes, revivendo momentos que, embora idos, insistem em não passar.
    Congratulo-me com a ilustre Escritora e com os Editores do Jornal/TV Digital Segunda Opinião – Professores Osvaldo Araújo, Ricardo Coimbra e Josênio Parente pela excelência do trabalho que vêm desenvolvendo.
    PG saudações,
    Pedro Gurjão