Candidaturas avulsas no STF – FILOMENO MORAES

Consta que, diante da pretendida separação da Catalunha, Antonio Jiménez Barca, ex-diretor da edição brasileira do “El País” e que voltara a Madri, confessou a um colega: “Se eu pudesse, voltaria para o Brasil. Aí os problemas são graves, mas reais, e por isso acabam tendo solução, enquanto aqui os inventamos” (segundo Clóvis Rossi, Folha de São Paulo, 1º out. 2017).

Talvez o jornalista tenha somente exagerado no otimismo quanto à capacidade brasileira de resolver os seus problemas reais, mas, com certeza, errou grave deixando só à Espanha a capacidade de inventar problemas. Um veemente exemplo de que, nestas plagas, também se inventam problemas é o da “sem-razão” perpetrada por ministro do Supremo Tribunal Federal, com a história das candidaturas avulsas. Num recurso extraordinário referente a candidatura sem filiação a partido político, negada em 2016 pela Justiça Eleitoral do Rio de Janeiro, reconheceu-se repercussão geral. E, nesta semana, promoveu-se no STF, com estardalhaço, audiência pública para tratar do assunto, sobre o qual o próprio ministro destacou o seu papel “vazio de convicções prévias” e acenou com a promessa de “liberar esse tema para a pauta no primeiro semestre do ano que vem”.

Dois problemas, entre outros, estão embutidos no não-problema. Primeiro, o STF parece ter uma teoria política que ojeriza a representação política, um dos sustentáculos do Estado democrático. Representação política se faz e se concretiza com partidos e candidatos, campanhas e eleições, parlamentos como órgãos de decisão que congregam parcialidades em conflito incruento, para, afinal, lograr decisões que acabem por formular a continuidade das cláusulas do pacto de associação de indivíduos e do pacto de sujeição desses indivíduos às decisões constitucionais e democráticas. Evidentemente, por mais que se reconheça a legitimidade constitucional do STF, ele não é, definitivamente, o lugar de poder da representação democrática, haurida e renovada periodicamente por meio de eleições livres e justas. Também, não convincente, senão especioso e inconstitucional, agentes políticos com capacidade jurisdicional pretenderem reserva de mercado iluminista e civilizatória.

O outro problema do não-problema concerne à própria natureza da candidatura avulsa. Primeiro, há o dispositivo constitucional, vigente e eficaz, acerca do monopólio partidário das candidaturas para mandatos de presidente da República, governadores de Estados e prefeitos municipais, e deputados federais, deputados estaduais e vereadores. Evidentemente, o sistema político não deve ser algo pétreo, infenso às mudanças e vicissitudes da vida social, política e cultural. Por conseguinte, as instituições representativas necessitam do escrutínio permanente do debate público, na sociedade e nos órgãos competentes do Estado. Todavia, sob pena de estar-se relativizando o Estado de Direito, não devem estar à disposição de julgadores, “supremos” ou não, para golpes de interpretações temerárias. Afinal, a Constituição Federal é algo muito relevante, para ser deixada somente nas mãos do STF, cumprindo que a soberania popular vigie o vigia.

Sabe-se bem que as intromissões do STF no desenrolar do o experimento representativo têm sido responsáveis pela abertura de caixas de Pandora, com consequências desastrosas no que diz respeito à consolidação institucional. Não à-toa, entre outras, recorde-se a declaração de inconstitucionalidade da cláusula de barreira aprovada pelo Congresso e a decisão sobre a fidelidade partidária. Agora, nova possível intromissão do STF, realizando a reforma política das candidaturas avulsas, em detrimento do já combalido sistema partidário, poderia – parece até brincadeira, mas não é – exacerbar a maior fragmentação decisória do mundo. É que, no limite, a institucionalização das candidaturas sem partido poderia acarretar uma Câmara dos Deputados, não com três dezenas de partidos, e sim com 513!

A cada dia, uma agonia. Ontem, foi a proposta do “distritão” do vice-presidente entronizado presidente da República, no devido tempo rechaçada pelo Congresso Nacional. Agora, um sem-votos ministro do STF patrocina – “vazio de convicções prévias” (sic) – a invenção de um problema, demonstrando que tal capacidade não constitui exclusividade espanhola. Aonde se vai?

Filomeno Moraes

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou os livros “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021) e “A ‘outra’ Independência a partir do Ceará: apontamentos para a história do nascente constitucionalismo brasileiro” (Fortaleza: Edições UFC, 2022), e o e-book “Crônica do processo político-constitucional brasileiro (2018-2022).” (Fortaleza: Edições Inesp, 2022).

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Filomeno Moraes

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou os livros “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021) e “A ‘outra’ Independência a partir do Ceará: apontamentos para a história do nascente constitucionalismo brasileiro” (Fortaleza: Edições UFC, 2022), e o e-book “Crônica do processo político-constitucional brasileiro (2018-2022).” (Fortaleza: Edições Inesp, 2022).