Canaquina – CLAUDER ARCANJO

A cidade fervilhava tomada por uma discussão acirrada: o uso medicinal de uma nova droga, a canaquina, no combate à peste da Covid.

Meu amigo, não existe um caso sequer de contaminado entre aqueles que vêm seguindo, à risca, a minha recomendação profiláctica contra coronavírus! bradava o Batista do Zé Aguiar.

Não diga isso, meu filho. Pode ser que outros aproveitem para cair na…

Seu Zequinha, preste bem atenção no que estou a lhe dizer. Você é um homem digno, um dos melhores que esta terra já pariu. Pois bem, não se deixe levar por preconceitos. Eu, inclusive, sou um caso típico de sucesso: não uso máscaras, não guardo nenhum isolamento social, nem me lembro da quantidade de doentes que conduzi, nos braços, ao Hospital de Licânia e… olhe bem para mim: forte feito um touro! argumentou Batista, frente ao Zequinha Arcanjo.

E toda a Ciência, o que dirá dessa sua… Como poderei falar? interrogou-o.

O que a Ciência Acadêmica tem a dizer acerca do meu achado científico, Seu Zequinha, isso pouco me importa. Apenas lhe peço, em nome do bom senso, que não me deixe interromper os meus testes de cura daCovid-19.

Enquanto argumentava, Batista do Zé Aguiar, com os olhos acesos pela luz da confiança, não parava um instante sequer de caminhar. De lá para cá, de cá para lá, olhando e sondando tudo ao redor. Como se com receio de que alguém estivesse a escutá-lo.

O que tanto o aflige? Você está na minha calçada, e aqui ninguém o importunará procurou aquietá-lo Zequinha.

No senhor, Seu Zequinha, eu confio plenamente. Meu pai sempre nos ensinou: “Enquanto todos falharem perante o mundo, filhos, um homem permanecerá firme, de pé, abraçado com a ética e a decência. Esse homem se chama: José Bosco Arcanjo, o meu compadre Zequinha Arcanjo”.

Tais palavras são fruto da bondade do seu pai, Batista. Mas, voltemos à questão: e qual a ajuda, exatamente, que você precisa de minha parte?

Ceda-me a sua Fazenda Eldorado por uns tempos. Lá eu montarei o meu laboratório avançado para aplicação, de forma preventiva, da canaquina. Para lá seguirão os meus pacientes primeiros: Gazumba, Edir, Martônio, Chico Caubi, Uélsson, Peditão, Lau, Chico do Galvino, Antônio do Eurico, João Alves, João Américo e eu. Formaremos, de início, uma dúzia de notáveis pinguços desta terra de Padre Antônio Tomás como primeiros escolhidos para o primeiro teste. Ou seja, serão submetidos ao tratamento à base de canaquina, no teste de campo como voluntários.

Seu Zequinha, ao ouvir o nome da droga, arrepiou-se. Com pouco argumentou:

E quanto ao risco de… Quanto ao risco de se viciarem ainda mais?

Batista, em tom acadêmico, asseverou:

Não se vicia quem já viciado está, garantiu-nos um dos nossos mestres, Seu Zequinha, o filósofo João Américo.

Zequinha Arcanjo solicitou algum tempo para pensar. Logo depois, pediu que o Batista do Zé Aguiar se recolhesse, retornasse para casa e aguardasse a sua resposta. Não demoraria muito, garantiu-lhe.

Instantes depois Zequinha seguiu em direção à residência do protofilósofo de Licânia.

Boa noite, caro João Américo.

A que devo a honra da visita de tão nobre cidadão? indagou-lhe João Américo, acorrendo ao portão.

Meu amigo João Américo, eu preciso de sua orientação.

Entraram, e Seu Zequinha explicou-lhe o pedido que lhe fizera, a poucos instantes, o filho do Zé Aguiar.

João Américo escutava tudo de olhos atentos. Ao final observou:

Bem, amigo, a canaquina, em doses diárias e controladas, não me parece submetê-los a nenhum risco. Como defendo há décadas: o que não mata um bêbado o engorda.

E a posteridade não me cobrará a responsabilidade de ter…

João Américo não o deixou concluir. Pôs a mão ossuda sobre o ombro do amigo e anunciou:

Aqui, isolados e sós, eles estão apenas no tratamento à base da cana, da pinga; o mero isolamento os levou a doses cavalares da maldita. Você bem sabe. Com relação ao pedido do Batista, hipoteco meu apoio e, para sua tranquilidade, eu irei junto, comporei o primeiro grupo de teste. Não se preocupe, lá seremos submetidos a doses diárias e controladas da canaquina. Após quatorze dias de tratamento, prometo-lhe, os devolveremos ao convívio licaniense. Curados. Isso, claro, depois de um desmame. Comum em toda prescrição de droga controlada. Contudo, precisaremos da companhia de mais doze voluntários; estes constituídos de homens ou mulheres não afeitos ao álcool. Explico. Tal grupo não dependente tomará doses do placebo. Tudo como reza os compêndios da ciência.

Concordou, mas entregaria as chaves do Eldorado sob a condição de que o João Américo exercesse o papel de tutor daquele experimento científico.

Aceito.

E outra coisa, João Américo, se o experimento sair do controle, você tem a minha autorização expressa para suspender tudo. Neste caso, basta me chamar que eu seguirei para recuperar a posse do Eldorado.

De uma clareza solar. Agradeço, Zequinha, mais uma vez a sua confiança. Não lhe decepcionarei. Melhor, não lhe decepcionaremos. Os doze apóstolos da canaquina estarão…

Zequinha não o deixou continuar:

Aqui estão as chaves, com um bilhete meu ao vaqueiro Pedro Chagas, autorizando a estada de vocês no Eldorado. Sintam-se em casa e se cuidem. Que Senhora Sant’Anna abençoe a minha decisão, bem como o tratamento de vocês.

Mal o dia raiou, o jipe do Lourenço deixava Licânia em direção ao Eldorado, levando os doze apóstolos da canaquina.

Como couberam todos em um só veículo?, você me indaga, exigente leitor.

Não tenho resposta para tal mistério; encontrarei uma solução; isso no próximo capítulo.

Por enquanto, acredite em mim. Ou se não, vá para a baixa da égua, leitor descrente de uma figa!

Confesso que faltei com os bons modos, esta vida de ficcionista pandêmico de Licânia não me tem sido nada fácil.

Clauder Arcanjo

Clauder Arcanjo é escritor, membro da Academia de Letras do Brasil. Autor das obras Licânia, Novenário de espinhos, Uma garça no asfalto, Cambono, O Fantasma de Licânia, entre outras.

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Clauder Arcanjo

Clauder Arcanjo é escritor, membro da Academia de Letras do Brasil. Autor das obras Licânia, Novenário de espinhos, Uma garça no asfalto, Cambono, O Fantasma de Licânia, entre outras.