Cada povo tem o mito que elege

Piedade para a nação cujos homens não são humanos, mas ovelhas que seguem cegamente pastores a lhes indicar como se comportar. Piedade para a nação que elege líderes mentirosos e silencia sábios cautos. Piedade para nação cujas pessoas permitem que seus direitos sejam corroídos e suas liberdades levadas embora. Piedade para a nação que não levanta a sua voz contra aqueles que aspiram governa-la pela força e pela tortura. Piedade para a nação cujo centro é o sistema financeiro, onde poucos dormem o sono tranquilo enquanto muitos padecem necessidades. Piedade para a nação cujo oligopólio midiático manipula as mensagens de interesse público.
Segunda-feira, 06 de abril, o ministro da Saúde Henrique Mandetta, deputado federal pelo partido Democratas (DEM), tendo votado a favor do impeachment de Dilma Rousseff em 2016, firmado seu apoio à PEC do Teto dos Gastos e na Reforma Trabalhista, do governo Temer, depois de tensa reunião naquele dia no Palácio do Planalto, em função do descontentamento do presidente diante popularidade alcançada no enfrentamento da covid-19, comunicou em coletiva, de forma emblemática, que esteve lendo recentemente o Mito da Caverna (também conhecido como Alegoria da Caverna), do filósofo idealista Platão (428 – 348 a.C.), fundador da Academia ateniense, discípulo de Sócrates e professor de Aristóteles.

 

Qual a mensagem que o filósofo grego sugere neste capítulo do seu livro A República?

 

É um texto que provoca o leitor a pensar sobre a diferença entre ilusão e realidade, bem como em relação aos processos que retroalimentam a visão da aparência das sombras fazendo-as ser percebidas como o real. O ambiente em que se desenvolve a narrativa é uma caverna escura na qual os humanos estão aprisionados por correntes que lhes impedem de realizar movimentos livres sobre si mesmos e em relação aos outros ali encarcerados. Então, Platão pergunta: o que faria um prisioneiro que conseguisse se libertar? Embora dolorido pelos anos de imobilidade e escuridão, *começaria a caminhar* lentamente, dirigindo-se para a saída da caverna de onde vem a luz. No primeiro momento, ficaria completamente cego ao ver a luz do sol. Mas aos poucos, ao familiarizar-se com a claridade, enxergaria as próprias coisas descobrindo que durante toda a sua vida não vira senão sombras de imagens projetadas na tela de fundo da própria caverna. É o encontro com o conhecimento e com a possibilidade de conhecer.

 

Também outra tradição cultural descreve uma estória que em nosso ver possui uma estreita relação com o mito platônico. Trata-se da Alegoria da Criação, narrada pela tradição hebraica. O mito de Adão e Eva identifica a origem da História humana com um ato de escolha. Enquanto o homem e a mulher viveram em harmonia entre si e a natureza no Jardim do Éden, a paz dominava e não havia necessidade de trabalhar. Mas também não havia escolhas a fazer, nem liberdade e nem pensamento. O psicanalista alemão Erich Fromm ressalta que o ato de *colocar-se em movimento* em direção da árvore do bem e do mal e comer do seu fruto representa o primeiro sinal do nascimento da razão humana, sendo este o primeiro ato de liberdade. De acordo com o autor, essa liberdade diz respeito a uma independência do ser humano enquanto consciência, pois os instintos não exercem um controle total no ser humano governando sua vida como fazem com os outros animais. Comer do fruto coloca o ser humano frente à descoberta de sua própria liberdade. Fromm destaca o momento trágico da expulsão do paraíso onde o ser humano se vê fadado a ser livre para escolher seu próprio destino. Entretanto, estar livre parcialmente dos instintos não o liberta completamente, afinal ele está livre do “doce cativeiro” do paraíso, mas não está livre para governar-se e para realizar sua individualidade. É preciso uma gama de coragem frente à própria liberdade, e aquele que não consegue suportar a angústia desta liberdade se aliena, vinculando-se de forma infantil em uma identificação com o social e com o religioso. Com isto, o individuo nega viver sua liberdade, preferindo a cômoda segurança de uma identificação cega e alienada.

 

Qual a atualidade dessas parábolas? Em que cavernas nós estaríamos aprisionados?

 

Em que pese estarmos em plena era de informação ágil, farta e disponível, não significa que alcançamos a sabedoria apenas pelo fato de determos algumas informações. As redes sociais digitais revelam-se como cavernas modernas, na medida em que por meio delas é possível forjar sombras da realidade, manipular o mundo real e a verdade objetiva. Basta pensar a força que os algoritmos tiveram no referendum do Brexit, na eleição de Trump, nos EUA, e de Bolsonaro, no Brasil, por meio da manipulação da opinião pública e pelo disparo de milhões de mensagens por robôs.

 

Para o sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002), a opinião pública é um processo complexo no qual a verdade dos dominantes transforma-se em verdade de todos. Bourdieu destaca que a televisão em particular é um formidável instrumento de manutenção da ordem simbólica por deter o poder de atingir a todos, uma vez que há uma proporção muito grande de pessoas devotadas de corpo e alma à televisão como fonte de suas informações. Essas redes de televisão selecionam suas categorias de percepção de acordo com seus interesses corporativos e suas respectivas visões de mundo. Seus telespectadores terão acesso à informação a partir do que elas publicam. A televisão opera uma seleção e uma construção daquilo que é por ela selecionado, dramatizando textos, cenas e imagens dos acontecimentos. Palavras e imagens fazem coisas, criam fantasias, medos, fobias ou representações falsas.
Algo muito interessante neste episódio é vermos o ministro Mandetta com fortes vínculos com planos de saúde privados e que teve financiada a sua última eleição pela empresa AMIL, ter que precisar e defender o SUS para o enfrentamento desta pandemia covid-19. Dá o que pensar.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

Mais do autor

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .