AVENIDA NOITE À NOITE

Para Bálint Urban e

Eduardo Francelino

Caminhemos então

Pois somos pobres

Temos somente

O somente do somente

E além disso um ao outro

O mundo

— Amor, eu prometo —

Nada saberá

Das nossas guerras secretas

O mundo

Não saberá

(Nem quer saber, aliás)

Que nos corroemos

Que temos ossos de metal

Que se desgastam à maresia

O mundo

Sobretudo e principalmente

Não vai saber

Vai não, amor

Não vai nunca saber

Disso que não digo

Quando tuas amigas

Brancas ricas intocáveis

Andarem de um lado ao outro

Comentando Michelangelo

Não entre na conversa

Nem em compensação cries

O assunto

Da nossa sorridente

Infelicidade conjugal

Apenas peça um vinho e

Se quiser chorar sim

Vá ao banheiro

É sempre conveniente refazer a maquiagem

O trem da minha vida

Mui desgovernado

Mesmo ele é conduzido

Por um homem bem maquiado

E isso tranquiliza a minha terrível morte

Ocidental—acidental

Nunca me avisaram que eu tinha um destino

Apenas os meus pais tinham muita esperança

Que eu nunca me tornasse um vagabundo

Amor

Estranha criatura de

Desejos afetos vontades ressentimentos

Me perdoe

Eu não sabia

De verdade inda nem sei

Amor

Minha semelhante minha irmã

O mundo ainda é o que é

Mesmo que queimem

Em notícias fuliginosas

De jornais fuliginosos

Aquilo que sabemos

De verdade ou ouvir dizer

Somos pobres

Porque precisamos caminhar

Caminhamos

Eu me lembro de você olhando o céu

Nuvens escuras

Ia chover e não tínhamos ondes

Nosso relacionamento terminaria em horas

Eu tinha disso uma profunda intuição

E por isso mesmo

Nunca te amei tanto

Foi quando já estávamos

Muito perto de casa

Que choveu

Permanecemos acordados

E nem sequer nos abraçamos

Era uma chuva de verão

Uma bela e estranha chuva de verão

Na varanda o cão se revoltava

Olhava muito fixo um ponto muito fixo

Cuja geografia pra mim era bem estranha

Airton Uchoa

Escritor, leitor e sobrevivente.