AULA MAGNA DE UM ESTADISTA

Na sexta-feira, 26 de fevereiro, tivemos a possibilidade de assistir a uma inteligente entrevista conduzida pelo jornalista Luís Nassif com o presidente Lula, a partir de uma perspectiva muito bem concebida pelo entrevistadorao sair do lugar comum das últimas conversações rralizadas recentemente por outros profissionais da imprensa, buscando resgatar a memória da dimensão mundial do estadista e ex-presidente: uma pessoa que se dispôs a mudar o Brasil e o mundo.

Na primeira resposta a Nassif, Lula relatou o seu momento inaugural no Fórum Econômico de Davos (World Economic Forum), no dia 26 de fevereiro de 2003, precedida de sua ida ao Fórum Social Mundial, em Porto Alegre – RS, o evento global que demarcava o contraponto às ideias que o Fórum Econômico representa, num gesto de grande força simbólica, buscando unir em sua pessoa naquele momento um fórum ao outro. O seu foco em Davos objetivava a clara determinação em não se contentar com a geopolítica internacional na qual éramos tratados de forma secundária como nação. Lula tinha como determinação política, em plena unidade com o seu chanceler Celso Amorim, a transformação do Brasil num país protagonista na cena mundial. Seu desempenho foi reconhecido no mundo a partir de então. Lula foi o primeiro presidente brasileiro a receber o prêmio de Estadista Global, no ano de 2010, por sua atuação em defesa do meio ambiente, da erradicação da pobreza, da redistribuição de renda e da paz.

Seu discurso de 30 minutos em Davos reafirmou para o mundo inteiro o compromisso de campanha de combate à fome, à miséria e à desigualdade, explicitando com a firmeza de estadista que “combater a fome não é apenas uma tarefa de um governo, mas de toda a sociedade. A erradicação da fome pressupõe transformações estruturais, exige a criação de empregos dignos, além de mais e melhores investimentos”. Com relação à paz mundial, Lula afirmou: “A paz não é só um objetivo moral; mas um imperativo de racionalidade. Por isso, defendemos que as controvérsias sejam solucionadas por vias pacíficas e sob a égide das Nações Unidas. E é necessário admitir que, muitas vezes, a pobreza, a fome e a miséria são o caldo de cultura onde se desenvolvem o fanatismo e a intolerância”. E concluiu seu discurso de forma altiva e visionária: “Meu maior desejo é que a esperança que venceu o medo, no meu país, também contribua para vencê-lo em todo o mundo. Precisamos urgentemente nos unir em torno de um pacto mundial pela paz e contra a fome”.

A título de brevíssima comparação, em sua aparição em Davos, em 2019, Bolsonaro falou por ínfimos 06 minutos e 37 segundos. Sem nenhum norte conceitual, sem acervo gramatical, nem visão estratégica ou análise da conjuntura mundial, não sabendo o que dizer, Bolsonaro centrou esforços em apresentar-se como um injustiçado na campanha presidencial tendo vencido as eleições gastando menos de US$ 1 milhão (sic!), afirmando que “pela primeira vez no Brasil um presidente montou uma equipe de ministros qualificados. Aqui entre nós, o meu ministro da Justiça, Sérgio Moro, o homem certo para o combate à corrupção e para o combate à lavagem de dinheiro” (sic!). E continuou: “Queremos governar pelo exemplo. Nossas relações internacionais serão dinamizadas pelo ministro Ernesto Araújo, implementando uma política na qual o viés ideológico deixará de existir” (sic!). O que dizer de uma apresentação como esta?

No segundo momento da entrevista, o presidente Lula relembrou alguns dos muitos acontecimentosinternacionais em que o Brasil, no seu governo, atuou com papel de destaque como protagonista. Desde a construção de pontes de diálogo entre os presidentes Barack Obama (EUA) e Hugo Chaves (Venezuela), ou como interlocutor da paz entre Palestina e Israel; como um dos principais articuladores do G20, que viria a ganhar importância mundial por transformar-se no principal foro de decisões internacionais entre os grandes países; na criação da UNASUL e da CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), em 23 de fevereiro de 2010, com papel inovador, por ser o primeiro bloco que reuniu países latino-americanos e caribenhos em torno da construção de um foro de diálogo e prospecção política para a região, ampliando o desenho anterior dasestruturações cooperativas de base apenas econômica.

Em maio de 2014, na cidade de Santa Cruz de la Sierra, no “Seminário sobre mudança climática e modelos de desenvolvimento”, Lula discursou demarcando que a ALCA era um projeto estadunidense que só buscava utilizar os países da América do Sul como mero importadores dos produtos dos norte-americanos, enquanto a CELAC começou a ser gestada porque os estados da América Latina se reuniram sozinhos, sem a participação dos EUA, visando a integração de nossa região: “Podemos trocar investimentos, estabelecer cadeias produtivas internacionais, gerar mais empregos e mais desenvolvimento para o nosso continente. Unidos nos tornamos mais fortes em negociações globais, na luta contra barreiras que restringem nosso acesso aos mercados, impedindo o desenvolvimento de nossos países”.

No ano de 2017 o governo chinês propôs a criação de uma zona de livre comércio entre a CELAC e a China. Em 15 de janeiro de 2020, o governo de Bolsonaro, alinhado com Donald Trump, por meio do seu chanceler Ernesto Araújo, suspendeu a participação do Brasil na CELAC, ignorando os inúmeros apelos do México, à frente da presidência daquele organismo, para a sua permanência.

Por fim, Nassif tocou na entrevista num ponto nevrálgico, denominado pelo jornalista de “republicanismo ingênuo” pelo qual Lula não conseguiu perceber nem evitar a gênese golpista instalada em 2005, a partir do processo conhecido por “Mensalão”, que condenou, sem provasbiografias como as de José Dirceu e José Genoíno, por meio de uma tese insustentável do “domínio do fato”, mas que, inexplicavelmente, encontrou acolhida pela maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Segundo Nassif, lá teria sido o laboratório do golpe que viria a se consolidar onze anos depois, em abril de 2016.

Lula respondeu em três vertentes de raciocínio. O primeiro problema, com relação às Forças Armadas, ele tinha como presidente eleito total desarticulação com esse segmento da estrutura do Estado brasileiro. Não conhecia ninguém. Paradoxalmente, cabia-lhe a obrigação de nomear os chefes do Alto comando das três forças. Em segundo lugar, com relação à Mídia e o Mercado, a pauta é publicizada e alimentada pela Rede Globo. A correlação de forças, no início do seu primeiro mandato, não lhe garantiria partir para um confronto aberto com esses dois setores. Se pensarmos na composição da Câmara Federal, em 2003, o PT contava com 90 deputados, o PSB com 20, o PDT com 13, o PC do B com 10, perfazendo um total de 133 deputados. Ou seja, o restante da base parlamentar do governo de 376 deputados era composto de partidos de centro e de direita, além dos votos da oposição de mesma origem ideológica. Por fim, com relação à Burocracia estatal, ele simplesmente não se atentou para o risco que foi o de manter-se fiel ao seu princípio republicano de respeitar os nomes mais votados nas listas tríplices. Um aprendizado que lhe custou muito caro.

Sem dúvida, essa entrevista converte-se numa aula magna de política, que nos permite conhecer um pouco melhor, por dentro, os desafios de se implementar, num país atrasado culturalmente na vivência democrática como o nosso, projetos de emancipação do Estado brasileiro no cenário mundial, bem como de desenvolvimento da qualidade de vida do seu povo. Como lembra Paulo Freire, o aprendizado se dá de forma continuada. Fica aqui nosso agradecimento a Luís Nassif e ao Presidente Lula.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Editora Dialética); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .