ARMAR A POPULAÇÃO PARA QUE? por Alexandre Aragão de Albuquerque

Na sentença considerada infantil por muitos jornalistas e acadêmicos, enunciada pela ministra – aquela que viu Jesus na goiabeira – há um sinal plenamente associado à ideologia defendida pelo novo governo brasileiro. A ministra, que se auto-define como “terrivelmente cristã”, mediu muito bem as palavras lançando um torpedo midiático contido naquele slogan. Ao definir a linha que será adotada por seu ministério, afirmando a instalação de uma nova era no comando federal, Damares a resumiu com a seguinte sentença: a partir de agora, menino veste azul e menina veste rosa. O tom risonho e aparentemente inofensivo esconde o terror de sua concepção de defesa de direitos humanos, centrada na ideologia do novo governo anunciada por mais de uma vez pelo capitão eleito em seus discursos de posse: hierarquia e disciplina, típicas de estamentos militarizados.

Duas cores, porém, ficaram ausentes nessa chamada midiática damariana, provavelmente de forma consciente, para não revelar a essência de sua estrutura de pensamento. A primeira cor ausente seria o verde, tão bem representado na campanha eleitoral do capitão aludindo às camisas verdes de Plínio Salgado, fundador do integralismo brasileiro, em 1932, de traço especificamente fascista, cuja terminologia brasileira – integrismo – foi bastante utilizada pelos membros da Igreja Católica, sustentando que o governo deve impor a ordem aos indivíduos para que eles possam atingir o seu objetivo final. Para o integralismo, uma sociedade só pode funcionar com ordem e no respeito às hierarquias sociais e à harmonia social. Coincidentemente, o verde estava muito presente nesta semana na vestimenta de uma jornalista da Globo News no dia do anúncio do decreto autorizativo da posse de quatro armas para cada cidadão. Além disso, na cobertura editada da cerimônia em rede nacional, o verde se fez presente simbolicamente nos três generais fazendo o pano de fundo do capitão ao assinar o decreto.

A outra cor ausente no slogan de Damares é a cor da pele, daqueles meninos e meninas brasileiros que nunca foram, não são e nem serão contemplados por uma inclusão verdadeira do nosso sistema político-econômico. São meninos e meninas invisíveis, vítimas de nosso egoísmo estrutural desde os tempos da Casa-Grande.

A socióloga Juliana Melo, professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, em entrevista publicada no site IHU-Online, ao analisar a violência no estado do Ceará, detonada desde o dia primeiro de janeiro do corrente, com ações de depredação de patrimônio público e privado, de forma generalizada, coordenadas pelas facções do crime organizado do tráfico de drogas, acusa que a ausência de um Estado capaz de criar políticas efetivas de diminuição da desigualdade social gera nesses jovens das periferias brasileiras um sentimento de descrença e desilusão existencial.

Ocorre que jovens impedidos de terem acesso aos bens materiais e culturais, produzidos socialmente pela classe trabalhadora deste país, descrentes de seu futuro e desiludidos com as instituições, têm sido facilmente capturados pelas redes do crime e o fazem com o primeiro objetivo de superarem seus problemas de ordem material. Todavia, num segundo momento, esses jovens objetivam conquistar uma rede de apoio e reconhecimento social, ainda que limitados aos seus próprios pares. Além disso, fazer parte de um coletivo, mesmo sendo um coletivo criminoso, implica fazer parte de “uma família” na qual o padrinho tem um papel fundamental para ajudar na estrada a ser percorrida. A socióloga adverte que há um grande contingente populacional desses jovens brasileiros na “fila de espera” aguardando a sua vez de ingressar no grupo: “para cada jovem preso ou assassinado, há mais de um esperando para ocupar a vaga deixada”.

Um governo cujo candidato a presidente evitou participar de debates políticos em época eleitoral; que em vez de lançar programas de governo, incitava o ódio pelas redes sociais; que discriminava abertamente em campanha as minorias, inexplicavelmente obteve a maioria dos votos da população. Um candidato vazio, achincalhador, promotor da discórdia e da divisão. Não surpreende que o seu primeiro ato como presidente seja incentivar o uso de armas pela população em vez de pensar o país de forma estratégica e inclusiva de seus filhos e filhas, secularmente massacrados por um sistema de exploração e produção de violência estrutural. Eis o ovo da serpente cultivado pelo Brasil desde o golpe de 2016. Alguns já estão fortemente arrependidos, basta ver a entrevista de FHC em Paris. Mesmo sabendo que FHC não merece desde há muito tempo nossa consideração, em todo caso é importante registrar a sua representação de forças do Capital. Enquanto representante, ele está sinalizando com esta entrevista o mal-estar presente em seus representados com a armadilha que eles mesmos armaram. Agora é a hora de desatar o nó, antes que a violência aumente e se instale de forma endêmica no País.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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