Aqui se faz, aqui se paga

Mudam de céu, não de alma, os que correm para além do mar, Horácio, 65-8 a.C.

Foram necessários poucos anos para dar-se a ver a face implacável dos deuses. O herói de ontem, justiceiro aos olhos de turbas endiabradas do nacionalismo mais reles, cai por terra, enlameado pelas falcatruas que protagonizou; o “ex-presidiário”, objeto de suas desenfreadas perseguições movidas a ódio e infâmia, é presidente do Brasil; e, ironia do destino, o ex-presidente que ajudou a eleger-se, caminha a passos largos para se tornar “presidiário”, finalmente condenado, por viés indireto, pelos mais de duzentos mil mortos por falta de vacina (aos quais, perverso, imitava morrendo sem ar nos pulmões). Agora enreda-se em correntes de joias subtraídas ao patrimônio público.

Desmoralizado aos olhos de um país inteiro, à parte os três ou quatro gatos pingados que o aplaudem ainda, indiferentes às evidências de sua desfaçatez, Sergio Moro é alvo do próprio canibalismo de que se alimentou com a carne dos injustiçados, marcados a ferro e fogo por sua ira pautada em “convicções” sem provas.

Como cachorro caído de carroça de mudanças, tropeça perdido em busca da salvação para seu mandato, calcado a custo elevado de corrupção e apoios inconfessáveis.

Tal qual o canino infeliz do parágrafo acima, não sabe onde está a casa antiga, tampouco imagina onde fica a nova. Um passo mais, é-lhe o precipício.

Enquadrado em close up durante sabatina no Senado, quase a beijar Flávio Dino, e agarrando-se a ele como um náufrago à tábua de salvação, vota às escondidas, sem coragem para revelar o que decide, mesmo para o irmão-siamês, ex-procurador e ex-deputado Deltan Dalanhol, “desesperado” em face do resultado da votação que levaria o indicado do presidente Lula ao STF.

A exemplo das trocas de mensagens carregadas de sordidez, com que tramava com procuradores a condenação de Lula, expõe mais uma vez, desavisado e tolo, o que teclava com os poucos amigos que lhe restam hoje.

Em resposta a uma dessas mensagens, pode-se ver na imprensa, lê com apreensão o que o aguarda: “Amigo, pela estratégia relatada, aparentemente, não há o que ser dito. Eu disse ao Deltan que você sabe o que faz e estarei ao seu lado sempre…”. Esperemos o próximo capítulo do dramalhão.

Acorrentado à sujeira de suas asquerosas pretensões, vê-se alvo do fundamentalismo odiento dos bolsonaristas nas redes sociais, inconformados com seu desempenho à luz plena dos holofotes da tevê, e com o desfecho trágico que se anuncia para o mito e seus apaniguados, os destruidores da coisa pública e o ideário neo-fascista de que se nutriram nesses muitos anos.

Incomodado já no transcorrer da sabatina com o que define como “uma celeuma nas redes sociais”, Moro tenta, em vão, esquecer seu próprio entusiasmo quando as mesmas redes sociais que o espezinham hoje, erigiam-no, boneco inflado, como o novo herói da Nação.

Quando se juntou à boiada, faz pouco tempo, Sergio Moro não mediu esforços nem expedientes para fazê-lo, jogou a toga negra para dedicar-se ao projeto facinoroso, ajudando, como ficou dito, a eleger o mito que agora o canibaliza — e jactando-se justiceiro da gentalha.

Cuspindo à direita e à esquerda, à sombra do abandono, como um lagarto sedento, queda politicamente morto. E é indefensável como homem.

Alder Teixeira

Professor titular aposentado da UECE e do IFCE nas disciplinas de História da Arte, Estética do Cinema, Comunicação e Linguagem nas Artes Visuais, Teoria da Literatura e Análise do Texto Dramático. Especialista em Literatura Brasileira, Mestre em Letras e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. É autor, entre outros, dos livros Do Amor e Outros Poemas, Do Amor e Outras Crônicas, Componentes Dramáticos da Poética de Carlos Drummond de Andrade, A Hora do Lobo: Estratégias Narrativas na Filmografia de Ingmar Bergman e Guia da Prosa de Ficção Brasileira. Escreve crônicas e artigos de crítica cinematográfica