Apesar de você

“Hoje você é quem manda / Falou tá falado / Não tem discussão / A minha gente hoje anda / Falando de lado / E olhando pro chão, viu? / Você que inventou esse estado / E inventou de inventar / Toda a escuridão / Você que inventou o pecado / Esqueceu de inventar / O perdão”.

A arte tem, entre as suas principais funções, a função sinfrônica, isto é, a capacidade de extrapolar os limites cronológicos, reatualizando-se e, por isso mesmo, imortalizando-se e ao seu criador.

Um romance calcado em bases estéticas consistentes, um conto bem tecido em sua perspectiva formal e conteudística, um poema capaz de expressar a verdade dos sentimentos humanos mais profundos, um texto de teatro elaborado em conformidade com os elementos teóricos e estruturais da grande dramaturgia, uma composição pautada na lógica matemática dos pressupostos musicais, um filme em que sobressaiam o domínio da linguagem cinematográfica e a percepção sensível dos conflitos do homem, exemplificam a arte atemporal, sintonizadora, que se ressignifica e se adequa a cada momento histórico de um país, de um povo ou da própria humanidade. Com a arte popular não é diferente.

“Apesar de você / Amanhã há de ser / Outro dia / E eu pergunto a você / Como vai se esconder / Da enorme euforia / Como vai proibir / Quando o galo insistir / Em cantar / Água nova brotando / E a gente se amando / Sem parar”.

Os versos de Chico Buarque aqui citados, para ficar num exemplo extraído do cancioneiro popular brasileiro, pertencem à canção Apesar de Você, de 1970, inspirados nos horrores infligidos aos brasileiros desde o golpe militar de 1964.

Lançada, em princípio, em compacto simples, a obra seria proibida de ser executada nas rádios brasileiras e retirada de circulação até 1978, tornando-se carro-chefe do LP Chico Buarque, uma dos álbuns mais importantes da história da Música Popular Brasileira.

“Quando chegar o momento / Esse meu sofrimento / Vou cobrar com juros, juro / Todo esse amor reprimido / Esse grito contido / Este samba no escuro / Você que inventou a tristeza / Ora tenha a fineza / De desinventar / Você vai pagar e é dobrado / Cada lágrima rolada / Nesse meu penar”.

A canção seria gravada por Clara Nunes, uma das cantoras brasileiras de maior prestígio à época. Numa interpretação marcada pelo rigor técnico que era mesmo uma das marcas da sambista carioca, Apesar de Você seria objeto de uma das ocorrências mais bizarras no que diz respeito à censura militar e suas práticas hediondas: sob ameaças inconfessáveis, que iam de uma provável prisão ao assassinato de pessoas da família, fragilizada moral e psicologicamente, Clara Nunes negociaria o perdão militar com sua participação como cantora oficial das Olimpíadas do Exército de 1971.

“Apesar de você / Amanhã a de ser / Outro dia /  Você vai ter que ver / A manhã renascer / E esbanjar poesia / Como vai se explicar / Vendo o céu clarear / De repente, impunemente / Como vai abafar / Nosso coro a cantar / Na sua frente”.

Chico Buarque, após um autoexílio na Itália, retornaria ao Brasil em 1970. Supostamente incentivado a voltar por diretores de sua gravadora, a Philips, sob a alegação de que o país vinha passando por mudanças que apontavam para a redemocratização, o artista depararia com um cenário tenebroso: tortura, desaparecimento de pessoas contrárias à ditadura, perseguição desenfreada a intelectuais, professores e estudantes, prática de bandalheiras acobertadas pelo regime militar (que golpeara de morte a democracia sob o pretexto da moralização no trato da coisa pública), enfim, um país politica e eticamente devastado.

“Apesar de você / Amanhã há de ser / Outro dia / Você vai se dar mal / Etc. e tal”.

Carregada de metáforas simples e belas, que Chico Buarque estrutura em versos a um tempo fáceis e rebuscados, pois que dando a ver o pleno domínio da carpintaria poemática explorada pelo autor, Apesar de Você é sugestivamente dirigida a Emílio Garrastazu Médici, o ditador de plantão à época, mas constitui exemplo clássico de uma arte capaz de reatualizar-se com igual força e incontrastável oportunidade tantos anos depois. O caráter sintonizador e atemporal da arte a nos dar confiança no porvir.

Em tempo: O quadro de inominável terror que tomava conta do país, ocultava-se canhestramente sob músicas de cunho nacionalista do tipo Eu Te Amo Meu Brasil, da dupla Dom e Ravel, e Pra Frente Brasil, há poucos dias mal entoada em rede de tevê pela atriz Regina Duarte. Sim: e as pessoas vestiam-se com a camisa da seleção brasileira a festejar a conquista do tricampeonato mundial de futebol, no México.

Alder Teixeira

Professor titular aposentado da UECE e do IFCE nas disciplinas de História da Arte, Estética do Cinema, Comunicação e Linguagem nas Artes Visuais, Teoria da Literatura e Análise do Texto Dramático. Especialista em Literatura Brasileira, Mestre em Letras e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. É autor, entre outros, dos livros Do Amor e Outros Poemas, Do Amor e Outras Crônicas, Componentes Dramáticos da Poética de Carlos Drummond de Andrade, A Hora do Lobo: Estratégias Narrativas na Filmografia de Ingmar Bergman e Guia da Prosa de Ficção Brasileira. Escreve crônicas e artigos de crítica cinematográfica

Mais do autor

Alder Teixeira

Professor titular aposentado da UECE e do IFCE nas disciplinas de História da Arte, Estética do Cinema, Comunicação e Linguagem nas Artes Visuais, Teoria da Literatura e Análise do Texto Dramático. Especialista em Literatura Brasileira, Mestre em Letras e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. É autor, entre outros, dos livros Do Amor e Outros Poemas, Do Amor e Outras Crônicas, Componentes Dramáticos da Poética de Carlos Drummond de Andrade, A Hora do Lobo: Estratégias Narrativas na Filmografia de Ingmar Bergman e Guia da Prosa de Ficção Brasileira. Escreve crônicas e artigos de crítica cinematográfica