Apenas o jogo pode se contrapor ao sacrifício – PEDRO HENRIQUE

Existe uma relação entre arte e história bastante curiosa. Deve ser alguma espécie de magia, ou dom profético, que a primeira tem, sobretudo nos tempos modernos, de passar ao campo da segunda, ainda que nem sempre do modo como esperamos. Aquilo que foi, num primeiro momento, apenas figurado pela imaginação passa logo em seguida ao terreno da verossimilhança conforme se desenvolve o curso do capitalismo no mundo; e este é como uma espécie de feitiço que se volta contra seu feiticeiro, atendendo, como o demônio Mefistófeles, aos anseios dos “homens”, mas de maneira que nunca consigam realizá-los verdadeiramente.

Se tomarmos um problema político como exemplo, isso fica um tanto nítido. Quando uma das frases dos movimentos de 1968 foi logo atendida como uma modernização das técnicas de controle da subjetividade: “viver sem tempo morto e gozar sem entraves”. É o princípio prazer que passa a se tornar uma forma de captura da subjetividade humana, que passa a capturar a sua inconformidade com a realidade social existente.

Quanto à arte, não se trata nem de dizer que o mundo unidimensional do capital a penetra capturando sua capacidade sublimadora, de figuração utópica, submetendo o imaginário à distopia: a reprodução piorada do mesmo. Isso porque mesmo Goya, pintor numa época em que ainda havia alguma autonomia nas produções artísticas, diante das atrocidades das invasões napoleônicas na Espanha, resolveu pintar as cenas “bárbaras” da guerra, em Los desastres de la guerra, no intuito de mostrar aos “homens” sua insanidade, acreditando que assim poderia contribuir para que não fossem “bárbaros”:

– “Certa vez, um criado dele, Isidro, impressionado com as Pinturas Negras com que decorou La Quinta, perguntou-lhe qual o motivo dele enfocar as ‘barbáries dos homens’, Goya então lhe respondeu: ‘Eu as pinto para ter o gosto de dizer eternamente aos homens que não sejam bárbaros’”.

Talvez haja mesmo é uma espécie de afinidade eletiva, uma espécie de cruzamento genético mutante, de engenharia genética mutante da história, na distinção entre alegoria e símbolo. Se o símbolo diz respeito a um momento em que arte e realidade histórica se harmonizam, em que a arte aparece, imediatamente, como tradutora da verdade de um tempo (fenômeno típico do classicismo); a alegoria é sempre algo de desarmônico, porque o próprio tempo em que está inserida oscila em seus fundamentos: a fragmentação alegórica é proveniente de um mundo fraturado em seu próprio fundamento (fenômeno típico do barroco no século XVII).

A questão, para nós, é que, conforme vai se desenvolvendo a degradação capitalista, certas produções artísticas vão deixando de ser apenas alegorias diante de um mundo em ruínas para se tornarem os próprios símbolos da terra arrasada da história. A alegoria como símbolo do mundo degradado. É assim que podemos encontrar a paisagem histórica do presente num filme de Ingmar Bergman, O sétimo selo, ou mesmo no cenário das peças de Samuel Beckett, Esperando Godot e Fim de Partida, sua tragicomédia, ou comitragédia, em que o riso não é nada redentor, não é a crítica das condições que produzem a vida como tragédia, mas um riso diante da própria falência, um riso impotente de moribundo, figurando-se diante do nada, da terra arrasada de sua cultura, do ambiente natural e de sua subjetividade.

Particularmente em O sétimo selo, Bergman busca um olhar para o passado – talvez aquele olhar de Orfeu, impotente em retirar a poesia do futuro –, a escatologia do fim da Idade Média, que não tem quase nenhuma redenção à vista; trazer o passado escatológico para apresentá-lo como o que há de mais presente, atual, parece ser o feito de Bergman. Esse filme tem como antecedente uma peça sua, O retábulo da peste, e encontra nos manuscritos medievais musicados por Carl Off no século XX, Carmina Burana, uma inspiração, pois trata da fortuna dos “homens”, de seu destino, ou de sua história como destino, ou desse entrecruzamento de destino e história:

– “No trono da Fortuna/ eu sentara, elevado,/ coroado com as flores/ multicoloridas da prosperidade;/ apesar de ter florescido/ feliz e abençoado,/ agora do alto eu caio/ privado de glória./ A roda da Fortuna gira;/ eu desço, diminuído;/ outro é levado ao alto;/ lá no topo/ senta-se o rei no ápice?/ que ele tema a ruína!”.

Seu cenário em preto e branco nos remete à luz e sombra do barroco, de seu olhar lutuoso, e permanece ainda mais barroco quando a única esperança latente frente à espreita da morte torna-se a travessia dos artistas saltimbancos, seu teatro, sua alegoria, sua ludicidade, mostrando-nos que apenas o jogo pode se contrapor ao sacrifício.

Pedro Henrique

"Anota aí: eu sou ninguém"

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