Foto: Henrique Grandi (Folha PE)

Angra: Rebirth 20th Anniversary Tour (resenha do show em Fortaleza, 16/07/2022)

Há momentos em que se faz necessário renascer. Seja em qual nível, área ou intensidade for, essa teimosa troca de pele/saída de um casulo/reforma geral nas gavetas da alma faz parte inegável da essência humana. É desconfortável de início, pois toda mudança causa dor, mas mudar se mostra saudável e um passo obrigatório na nossa necessidade de evolução. Se falarmos antropologicamente, praticamente todas as culturas humanas possuem ritos de passagem, onde a mudança também causa estranheza e traz algum grau de dor (seja física ou emocional), mas possui um propósito recorrente e imprescindível para um novo estágio da vida social. Assim, é natural que em algum momento passemos por esse processo de renascimento de nós mesmos, mudando conceitos, percepções e modos de encarar e se portar diante das pessoas e da vida.

Fazendo um paralelo com estes tempos em que estamos tão rodeados por essa urgência em voltar à vida “normal” – após períodos terríveis trazidos por uma pandemia que insiste em não acabar, é que um concerto de rock pode se mostrar tão importante a ponto de nos lembrar de nunca perder a esperança em mudar e viver melhor. Perdi um grande amigo para o coronavírus há exatos 1 ano e 15 dias, mas na noite deste 16 de julho de 2022 tive a alegria e oportunidade de reencontrar e celebrar alguns daqueles que ainda estão ao meu lado. Saudade que eu tava de saber como é cantar a plenos pulmões, pular, dançar, extravasar e celebrar o privilégio de estar vivo. A sensação de tudo isso melhora mais ainda quando a banda que tá tocando é o Angra, e o disco executado ao vivo na íntegra é justamente aquele cujo título carrega uma palavra que resume todo esse sentimento de renascimento e mudança: “Rebirth”, uma obra que envelheceu muito bem nestes inacreditáveis 20 anos desde seu lançamento.

Divulgação das datas da turnê “Rebirth 20th Anniversary Tour” pelo Brasil (imagem: Top Link Music)

A obra é um disco emblemático do Angra, banda orgulhosamente brasileira, que serviu de trilha sonora para muitos na época da minha adolescência e de quando comecei a ser apresentado ao gênero power metal. Lançado em 2001, “Rebirth” marcava justamente um sincero “renascimento” do grupo: sua antiga formação, que contava com o saudoso e lendário Andre Matos nos vocais, havia lançado até então três albúns revolucionários na música pesada nacional: “Angels Cry” (1993), “Holy Land” (1996) e “Fireworks” (1998). Após um período turbulento que se seguiu ao lançamento deste último – com diversos problemas de gerenciamento e relacionamento entre os músicos, a banda seguiu em frente com Rafael Bittencourt e Kiko Loureiro (guitarristas da formação original) e renasceu em 2001 trazendo agora a voz de Edu Falaschi acompanhado de Felipe Andreoli no baixo e Aquiles Priester na bateria.

Dentro de um conceito narrativo em torno de um mundo que sucumbiu num futuro pós-apocalíptico, o álbum traz faixas épicas, rápidas, melódicas e com uma tensão orquestral que pontua momentos chave da dramática história, além das já conhecidas influências da música brasileira que a banda sempre inseriu em meio às guitarras velozes e bateria enfurecida. E foi em celebração aos 20 anos desta grande história que o Angra trouxe a Fortaleza o show “Rebirth 20th Anniversary Tour” na noite de 16 de julho de 2022. Na formação atual, Rafael e Felipe seguem como membros mais antigos desta geração e hoje são brilhantemente acompanhados pelo “mago” Fabio Lione nos vocais, Bruno Valverde na bateria e Marcelo Barbosa na guitarra.

Foto: Henrique Grandi (Folha PE)
O Angra em sua terceira geração. Da esq. para a dir.: Felipe Andreoli (baixo), Rafael Bittencourt (guitarra), Fabio Lione (voz), Bruno Valverde (bateria) e Marcelo Barbosa (guitarra). Foto: Henrique Grandi – Folha PE

O show se deu em um dos pavilhões do Centro de Eventos do Ceará durante o SANA, evento de cultura pop japonesa que acontece todos os anos aqui na cidade, e teve como banda de abertura a duvidosa Opus V. Digo “duvidosa” porque, sinceramente, hoje em dia me irrito profundamente com bandas que preferem (burramente) dar mais destaque a um pretenso virtuosismo egoísta por parte de todos os músicos do que à música si. A equalização do som para o local também não ajudava em nada: shows anteriores que já aconteceram neste pavilhão não me deixam mentir, pois a acústica é difícil de se tratar, visto que o lugar é praticamente uma “caixa” fechada por onde o som rebate nas paredes e não tem por onde escapar. Junte-se essa dificuldade natural do lugar a um volume absurdamente alto do teclado desta banda e a uma penca de músicos que, na melhor das palavras que posso encontrar, produzem um som chato, enfadonho e cansativo.

Eu não conhecia o som da Opus V, respeito quem gostar, mas é inegável o fato de que os caras simplesmente pareciam querer só aparecer e enfiar duzentas e cinquenta notas em um compasso a todo instante, encaixando solos e riffs intermináveis em um pretenso metal progressivo sem o mínimo senso de direção. Eu juro que tentei gostar do show, mas desde que parei de acompanhar o Dream Theater há alguns anos, constatei que fico pistola com esse virtuosismo exagerado e zuadento que não respeita nem o formato mais básico e compreensível de uma canção e muito menos quem tá ouvindo. Eram quebras de tempo tão impossíveis de se entender que mal se sabia quando terminava uma faixa e começava outra. Desejo-lhes sorte na carreira – até porque talento e técnica essa banda pode até ter, mas noção e senso de composição eu já não sei!

Finalizada essa tortura inicial, o Angra entrou pouco antes das 21h para um show que eu mal esperava ser tão memorável. Após o clássico “Tom Sawyer” do Rush, ouvimos a bela e misteriosa “Crossing”, faixa incidental do disco “Holy Land”, soar no P.A. acompanhada de uma bela animação num telão de LED logo atrás da bateria. A faixa abriu o clima para a pedrada que já sabiamos vir em seguida: “Nothing To Say”, primeira canção deste disco temático sobre o descobrimento do Brasil (do qual já fiz um texto sobre ele aqui). Cantada em uníssono pela plateia, a energia da banda era evidente para aquela noite que já prometia uma verdadeira celebração. Num setlist que eu teimei em tentar não ver de antemão na internet (não gosto muito de spoilers, prefiro ser surpreendido!), logo a banda encaixa o petardo “Black Widow’s Web”, que sempre se mostrou funcionar muito bem ao vivo. Apesar de alguns probleminhas acústicos (como o excesso de efeitos na voz do Lione e um rebote no bumbo da bateria que embolaram demais o som no início) e da óbvia ausência dos vocais da Sandy e de Alissa White-Gluz, as funções vocais são muito bem preenchidas pela versatilidade de Fabio, Rafael e Felipe. Sensacional!

Na sequência, o ato principal do show em si começa: “- Bem-vindos à Nova Era”, convida o frontman do Angra para iniciar a execução do álbum “Rebirth” de cabo a rabo. A introdução “In Excelsis” dá o tom e o clima em meio aos gritos de uma multidão em êxtase, e logo a rapidíssima “Nova Era” vem cheia de energia e um certo peso adicional que não sei bem explicar, mas que somou muito bem à faixa. Aliás, o show inteiro mostrou, digamos, um “Rebirth 2.0”, pois senti que o disco todo foi tocado com uma energia, um peso a mais que só mostrou o quanto esses 20 anos o fizeram amadurecer muito bem. “Millenium Sun”, segunda faixa do disco, literalmente me levou às lágrimas, pois ela é para este que vos escreve uma canção muito especial. Para acompanhá-la, o telão projetava um lindo e poderoso sol vermelho e a nossa “ordinária Terra velejando pelo espaço”. Em seguida vem “Acid Rain”, mais pauleira do que nunca e com um sinistro dueto de guitarras esbanjando em alto brilho a já conhecida técnica dos monstros Marcelo e Rafael.

Foto: Eduardo Melo

Minha segunda faixa favorita, “Heroes Of Sand”, traz também muita emoção nesta semi-balada com uma letra também lindíssima que torna ainda mais especial esse início da noite. Passada a relativa calma e dando uma esfriada nos nervos, “Unholy Wars” (canção mais longa do disco) nos traz um afago no coração com aquele familiar toque nordestino incidental presente na faixa – só senti falta da banda cantar a linha “meu maracatu é da coroa imperial / é de Pernambuco, ele é da casa real“, mas o “ê lá iê lá iê lá iá” já me deixou satisfeito!

Encerrada a primeira metade do disco, já sabemos que a faixa seguinte é a música-título, e quando o violão é colocado perto de Rafael, aguardamos aquela introdução que praticamente todo o mundo já ouviu: “Rebirth” é o ápice da representatividade desta obra redentora que nasceu na virada do milênio, após um momento anterior tão turbulento de uma carreira que sempre foi tão importante. Não preciso dizer que todo mundo cantou e se emocionou junto. “Judgement Day” chegou na sequência sem grandes surpresas e depois deu lugar a “Running Alone”, na minha opinião a terceira melhor do disco, tendo inclusive marcado presença quase obrigatória nas turnês mais recentes da banda e sendo muito bem vinda a cada execução. Pra fechar magistralmente o álbum, a triste “Visions Prelude” dá o devido destaque ao mago Fabio Lione que manda inclusive um verso em estilo operístico demonstrando mais uma vez a versatilidade de sua potente voz.

Pensando que acabou? Nada disso! A banda não cansou de surpreender e não deixou a peteca cair após acabar de tocar por quase 1 hora sem parar. O setlist seguinte trouxe pérolas surpreendentes que pinçaram os melhores momentos do Angra em cada disco. Difícil escolher a melhor faixa de cada álbum dentro de 30 anos de carreira e 8 discos de estúdio, mas a banda parece estar ouvindo bem os fãs e também imprimindo, sem nenhuma autocensura, seu gosto pessoal e meteu um repertório que certamente agradou a gregos e troianos, surpreendendo e levando todos ali a uma viagem nostálgica por sua história.

A sequência que veio nos presenteou com “The Course Of Nature”, “Metal Icarus”, a épica “The Shadow Hunter” – com a sensacional introdução de violão flamenco do Rafael – e “The Rage Of The Waters”. A surpresa da noite foi a belíssima balada “Bleeding Heart”, e confesso que fiquei esperando eles darem uma zoada ou até a própria galera puxar o refrão de “Agora Estou Sofrendo”, versão que a banda de forró Calcinha Preta fez para a canção anos atrás e se tornou um hit da internet. Finalmente, fechando para o bis, a paulada progressiva “Upper Levels”. Despedidas feitas, a banda dá aquela saída pra água enquanto a gente ouve a incidental “Unfinished Allegro” e já vamos à loucura pois o que está por vir é o eterno hino “Carry On”. A banda parece que volta endiabrada pra executar esse clássico que encerra a noite, e que me fez até entrar numa roda punk. Loucura, loucura!

Celebrando o Rebirth com os amigos! (Foto: acervo pessoal)

Mais do que satisfeito, abraço minha mulher e meus amigos e dou aquele sorriso de orelha a orelha por novamente relembrar toda essa sensação de renascimento que o Angra trouxe pra nos presentear. Um show com pouquíssimas falhas técnicas e que teria funcionado bem melhor se tivesse sido em um local com acústica apropriada, mas nada disso tirou a mágica desta celebração de 20 inacreditáveis anos do Rebirth e da carreira do Angra como um todo. Aguardemos o próximo show, o próximo disco e as próximas novidades. E eu, volto renovado pra casa e até com mais vontade de escrever, de viver, de renascer!

Te vejo no próximo play!

 

Serviço:

ANGRA – Rebirth 20th Anniversary Tour

16/07/2022 – 20h | SANA – Centro de Eventos do Ceará

Banda de abertura: Opus V

Setlist Angra:

Tom Sawyer (Rush) – incidental

Crossing – incidental

1 – Nothing To Say

2 – Black Widow’s Web

In Excelsis (incidental)

3 – Nova Era

4 – Millenium Sun

5 – Acid Rain

6 – Heroes Of Sand

7 – Unholy Wars

8 – Rebirth

9 – Judgement Day

10 – Running Alone

11 – Visions Prelude

12 – The Course Of Nature

13 – Metal Icarus

14 – The Shadow Hunter

15 – The Rage Of The Waters

16 – Bleeding Heart

17 – Upper Levels

Encore:

Unfinished Allegro (incidental)

18 – Carry On


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Sérgio Costa

Bacharel em Ciências Sociais pela UFC e em Comunicação Social (Publicidade e Propaganda) pela Fanor/DeVry. Publicitário por profissão, empresário por coragem e guitarrista por atrevimento. Apaixonado incurável por música, literatura, boas cervejas, boas conversas, viagens inesquecíveis e grandes ideias. Escreve quinzenalmente sobre música para a coluna Notas Promissoras do portal Segunda Opinião.

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