25 anos de “HOLY LAND”, a obra que cantou a ORIGEM DO BRASIL em heavy metal

“O que faz o brasil, Brasil”? O antropólogo Roberto DaMatta fez essa pergunta em sua obra homônima lançada no longínquo ano de 1986, o mesmo em que nasci. Esse questionamento em forma de um livro tão relevante já dura, portanto, o tempo da minha vida e certamente não para de crescer talvez no mesmo ritmo em que ganho peso, dores nas juntas e cabelos brancos. Acessível e riquíssima nesta reflexão, a obra nos joga numa boa conversa com o passado, futuro e presente de nossa própria cultura, trazendo um apanhado sociológico interessantíssimo sobre pontos cruciais que formam o Brasil como nação.

No estudo de DaMatta, o autor pesquisa e traz à luz as formas como nossa identidade como nação se edificou em diversos gestos, costumes e crenças, tudo num caldeirão de características (para o bem e para o mal) que convergem desde a chegada do DNA europeu-colonizador até o tempero com outras misturas tão nossas – como os hábitos alimentares, o Carnaval, a política, religiões, economia e até mesmo o futebol. É também nesta obra que se pontua, com muita propriedade, o tal “jeitinho brasileiro” e muitas outras nuances de nosso lindo e complexo povo. Um livro fundante e que deveria facilmente constar nos currículos obrigatórios do ensino fundamental, para que desde cedo pudéssemos compreender e debater melhor as raízes sociais de nosso país. Pena que esse projeto de formar uma sociedade crítica desde a base escolar provavelmente não seja um objetivo muito desejado por nossas últimas gerações de políticos.

Mas agora, já que o assunto aqui é quase sempre a arte dos sons, vamos imaginar: como seria possível definir o Brasil em música? Se somos uma grande sinfonia de tantos estilos, ritmos, compassos e notas das mais variadas, como seria se o próprio DaMatta contasse essa história em um álbum musical? Bem, se o autor é roqueiro, ainda não sei. Mas imagino que uma baita inspiração para uma tarefa ousada poderia vir a partir do disco “Holy Land” da banda brasileira Angra, que completou no último dia 23 de março seus 25 anos de lançamento. Já falei num outro texto sobre o saudoso Andre Matos (vocalista da formação clássica da banda) e de toda sua importância para levar a música brasileira para o exterior, mas hoje vamos nos debruçar sobre a importância desta obra em específico.

O APOGEU NO SEGUNDO ÁLBUM

Para quem não conhece, o Angra é um grupo de power metal criado no início da década de 1990 a partir da amizade do guitarrista Rafael Bittencourt e do vocalista Andre Matos quando eram colegas no curso de Composição e Regência da Faculdade de Artes Santa Marcelina (SP). Montada a banda, lançaram em 1992 uma fita-demo chamada “Reaching Horizons” com composições embrionárias do que viria a ser seu primeiro álbum, o aclamado “Angels Cry”, que viria a ser lançado em 1994. Após o sucesso da crítica e do público com o lançamento mundial deste, a banda experimentava uma justa crescente de popularidade e reconhecimento internacional. Inovador, ousado e com pinta de produção gringa (que, aliás, foi mixado na Alemanha), o debut chamava atenção do mundo inteiro por misturar o estilo power metal com alguns ritmos brasileiros – coisa que o Sepultura também já fazia – e ainda música clássica, elevando toda essa combinação à enésima potência com composições de altíssimo nível e, claro, a já conhecida e celebrada voz de Andre Matos.

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A capa do álbum “Holy Land” (1996)

Chegamos até a história do Holy Land quando, dois anos após o primeiro disco, a banda decide se isolar por 3 meses em um sítio no interior de São Paulo para iniciar as composições do segundo trabalho. Sem telefone, televisão ou rádio, o Angra estava em contato direto com a natureza – inclusive colocavam a bateria e os outros instrumentos na varanda da casa, de frente para uma montanha, na hora  de ensaiar. Assim, o foco no trabalho e a liberdade para escrever e compor era a melhor possível.

Quando começaram de fato a escrever, os músicos não haviam pensado ainda no direcionamento temático que viria a dar um tom específico na obra: segundo seus próprios relatos à época, as composições com influências brasileiras começaram a chegar naturalmente, principalmente quando tomavam como inspiração músicas como “Never Understand”, uma das faixas do álbum anterior dotada de melodia e ritmo que em muito lembravam forró e baião.

MATRIZES NACIONAIS, GUITARRAS E MUITA HISTÓRIA

Foi a partir daí que o Angra enxergou um ponto que poderia ser explorado, e logo começaram a inserir nas composições a temática das grandes navegações, o conceito de “Terra Santa” e de toda uma jornada até um novo continente (no caso, a exploração e “descoberta” das Américas). Mais além, a obra se propunha a cantar a formação do Brasil como nação e povo. Explorando o lado trágico e romântico da mixórdia de nossas matrizes culturais, Holy Land foi um ousado projeto que só cresce durante o processo de sua audição: surpreende desde o ouvinte mais desatento, pois conta toda essa grande história não só nas letras mas ainda mais nas nuances sonoras regionais, devidamente representadas e inseridas numa epopeia regida por guitarras furiosas e as inalcançáveis notas de seu vocalista. E o melhor de tudo é que o disco faz isso com uma baita competência e maturidade para uma banda que, até aquela época, tinha menos de uma década de existência.

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Formação do Angra no “Holy Land” – Da esq. para dir.: Ricardo Confessori (bateria), Rafael Bittencourt (guitarra), Andre Matos (voz), Kiko Loureiro (guitarra) e Luis Mariutti (baixo).

A capa e o encarte do CD são uma obra de arte que falam por si só. Cheia de signos, códigos e ilustrações belíssimas feitas pelo artista Alberto Torquato – que já havia inclusive assinado as artes de trabalhos anteriores do Andre Matos, o encarte se torna, ao abrir, praticamente uma carta náutica, lembrando as utilizadas pelos navegadores do séc. XIII em diante. Assim, a arte é lindamente permeada por seres mitológicos (bestas marinhas) e também como os quatro titãs que sopram os ventos sobre a Terra. Chama atenção no encarte um trecho do poema “Mar Português” de Fernando Pessoa, que é também indiretamente sempre referido ao longo das letras.

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O riquíssimo encarte do disco: uma carta náutica cheia de mistérios!

Apesar de um grande investimento e excelente produção na época (contando com os créditos dos renomados músicos e produtores alemães Charlie Bauerfeind e Sascha Paeth), Holy Land não foi tão bem recebido ou sequer ‘digerido” logo de início pelos fãs e crítica especializada em seu ano de lançamento. Por conta de tantas misturas folclóricas nos sons, foi taxado pejorativamente de “Axé Metal”. Felizmente, essa torcida de nariz se deu apenas de início: pouco tempo depois, o álbum converteu-se em vendas muito boas tanto no Brasil quanto na Europa, garantindo à época disco de ouro (100 mil cópias) à banda.

Poucos sabiam naqueles tempos, mas o disco também representava uma alusão e homenagem de Andre Matos a um sítio que, coincidentemente, também ficava perto daquele onde se isolaram para a composição. Segundo seus familiares relatam em sua biografia, foi neste sítio que o cantor passara a sua infância, e era um local muito especial para ele, uma verdadeira “terra sagrada”. São inúmeras as histórias de bastidores que poderia me deixar falando aqui por dezenas de parágrafos, mas vamos prosseguir comentando brevemente sobre cada faixa do disco só pra deixar você, que talvez ainda não conheça, mais curioso(a) em ouvir.

FAIXA A FAIXA

1. “Crossing”: a audição do álbum começa com essa faixa instrumental de quase 2 minutos. Sons de pássaros e natureza se alternam entre cantos e vocalizações, costurando uma imagem sonora para o início da aventura. Nos segundos finais, já ouvimos sons de trovões e água, elevando-se também uma nota tensa de violino – é a assinatura verdadeira de que “Crossing” se trata justamente do começo dessa “Travessia”. Curiosidade: a música é na verdade parte de uma peça clássica do compositor renascentista italiano Giovanni Pierluigi da Palestrina.

2. “Nothing To Say”: a “pancadaria” começa misturando guitarras graves com uma bateria em um ritmo de baião acelerado. A primeira faixa abre majestosamente o disco, com muitas quebras de ritmo, belos solos de guitarra e uma letra vibrante e tensa retratando as memórias daquele que, de volta à sua terra, se lembra do quanto batalhou e do que devastou há muito tempo atrás quando partiu a desbravar a “Terra Sagrada”.

3. “Silence And Distance”: iniciando com voz e piano, logo evolui para um rock progressivo cheio de melodias de tempo intrincado. A letra canta a perspectiva da solidão do navegante refletindo e se questionando com todos os seus medos e dúvidas, mas com coragem e esperança, quando se lançou ao mar. O sujeito lírico também se lamenta de quem ele deixou pra trás ao partir: um  grande amor que ele nunca esquecerá.

4. “Carolina IV”: uma das faixas mais aclamadas, inicia com uma percussão que é basicamente o Olodum com guitarra! Os versos também começam em bom e claro português, fazendo uma bela reverência à nossa cultura orixá: “Salve, salve, Iemanjá / Salve, Janaína / E tudo que se fez n’água!”. A letra versa sobre o navio da nossa história, batizado Carolina IV, com os desafios e perdas da tripulação no meio do oceano. Uma canção empolgante e épica, que em seu rico instrumental traz ainda uma citação melódica a Hermeto Pascoal.

5. “Holy Land”: talvez a mais musicalmente brasileira de todas, é permeada sempre por um pianinho e uma flauta quase infantis, com um toque retirado diretamente da nossa capoeira – inclusive tem um berimbau na melodia. Em contraponto, a letra fala da chegada na nova terra austral, onde o “homem branco” se fascina com toda a beleza, mas logo vê o quanto seus objetivos e crenças serão chocados com tudo aquilo, o que invariavelmente provocaria um triste conflito armado em busca da dominação.

6. “The Shaman”: uma das minhas faixas preferidas. Tensa e também rica em ritmos nossos, representa um relato de medo e descoberta quando o homem branco mergulha na mística religiosa da Terra Sagrada. A busca pelo conhecimento (talvez até uma cura para alguma nova enfermidade contraída ao chegar) o faz ver o quanto ele é pequeno frente as grandes forças sobrenaturais que o povo dali cultua. O narrador descreve com espanto para seus colegas um ritual de alguma tribo que ele presenciou, mencionando como eles dançam e cantam. No meio da música, há inclusive a narração real de um pajé falando sobre plantas medicinais.

7. “Make Believe”: a balada mais “comercial”, por assim dizer, do disco. Inclusive foi utilizada para ser o single/música de trabalho da época, tendo ganho inclusive um videoclipe muito bem produzido e que inclusive concorreu a prêmios como o MTV Music Awards de 1996. A letra, porém, é meio melancólica trazendo uma espécie de reflexão na forma de memórias e arrependimentos do personagem que largou tudo em sua terra para se aventurar no além-mar, e que se arrepende desejando que tudo aquilo fosse apenas um “faz de conta” do seu passado.

8. “Z.I.T.O.”: antes de ser uma das canções mais empolgantes e rápidas do disco, a faixa “Z.I.T.O.” faz parte, até hoje, de um grande – e divertido – mistério criado pela banda! Isso porque, conta-se, todos os membros (inclusive os antigos) fizeram voto de jamais revelar seu real significado. Assim, o acrônimo é cercado de inúmeras hipóteses, que variam desde o nome de uma entidade alienígena que havia visitado em sonho o guitarrista Rafael Bittencourt, até a hilária história de um garotinho “punheteiro” conhecido da banda. Neste link tem um compilado bem interessante das melhores teorias sobre a música. No meu caso, há tempos prefiro me ater a um dos significados mais pé no chão defendido há anos por fãs: nesta interpretação, “Z.I.T.O” nada mais seria do que a junção das palavras Zur, Incognita, Terra e Oceanus presentes no próprio mapa do encarte. Traduzindo, seria algo como “Terra Incógnita ao Sul do Oceano” que era como os navegadores se referiam ao continente desconhecido. Faz mais sentido ainda quando você entende que a letra fala de descobertas, sendo – em minha interpretação – uma grande homenagem ao Brasil, às suas maravilhas e à magia da descoberta, do desejo por novidades, da paixão pela aventura.

9. “Deep Blue”: esta outra balada traz o sujeito lírico já num futuro pós-colonialismo lamentando o fim da Renascença e o declínio de Portugal como potência não mais tão relevante no cenário da conquista ultramarina. Seu título faz ainda uma direta referência ao sentimento de solidão do personagem, pois a palavra “blue” é também sinônimo para “tristeza”.

10. “Lullaby For Lucifer”: a canção que fecha o disco também traz uma mensagem similar à sua anterior. Nela, o personagem fecha a história de sua tragédia através de um lamento e uma lembrança de tudo o que ele perdeu. Ele abraça seus medos (subjetivamente representados por Lúcifer) e tenta superá-los, cantando para ele uma canção de ninar que irá adormecê-lo no fundo de sua alma, no íntimo de suas lembranças.

UMA OBRA PRIMA A SER CELEBRADA

Não bastasse a riqueza musical ao puxar influências de ritmos brasileiros, música erudita e o próprio heavy metal, as 10 faixas bebem generosamente de diversos textos célebres dos poetas e romancistas clássicos portugueses e também brasileiros: há inúmeras referências e citações a Fernando Pessoa, Camões, Gonçalves Dias e muitos outros. Na pesquisa para este texto, me deparei inclusive com um trabalho de conclusão de curso inteiramente dedicado à análise literária dos elementos que o disco representa e debate – confira neste link, vale demais a leitura!

Holy Land é, para muitos, uma magnum opus não só dentro da poderosa discografia do Angra, mas de significativo e merecido lugar de honra no panteão dos maiores grupos de rock/metal da história. Carregada de múltiplos significados e representações, traz uma sincera poética de celebração ao mar, aos seus perigos, mistérios e também suas belezas. É também uma crítica profunda aos conflitos e à colonização, bem como à destruição dos símbolos nacionais pela imposição da cultura europeia. Ao mesmo passo, canta com beleza e inspiração sobre o sonho, a esperança e as delícias do sentimento de descoberta – seja ela de qual tipo for. As diversas mensagens, códigos e discussões que o disco levanta são motivo não só de admiração, mas de debate até hoje entre os fãs do Angra.

Para finalizar essa análise, assim como fez Roberto DaMatta, te desafio a se fazer uma outra pergunta: “o quanto questionei meu país nos últimos anos?”. A polarização política, a pandemia, essa guerra chata e sem fim de direita X esquerda, de um apontando o dedo na cara do outro, não são todos motivos para em algum momento nessa atualidade tão diferente questionarmos nossa própria identidade nacional? De uma forma ou de outra, seja você “coxinha” ou “mortadela”, isso é um exercício necessário de refletir o Brasil. E sobretudo num momento tão difícil, pensar e dialogar (sim, dialogar, e não bater boca) sobre o que nos torna brasileiros pode ser mais palatável através da arte, por uma perspectiva diferente, lúdica, idílica. Talvez isso inclusive nos ajude a conseguir algum conforto neste último ano tão inesperadamente desesperador, onde independente de qual lugar nascemos nesta pátria amada, nesta nossa Terra Sagrada, estamos todos no mesmo barco buscando um final feliz para nossa jornada como nação.

Te vejo no próximo play!

Serviço

“Holy Land”
Angra
Gravadora: JVC/Paradoxx Music
Data de lançamento: 23/03/1996

Faixas:

1. Crossing
2. Nothing to Say
3. Silence and Distance
4. Carolina IV
5. Holy Land
6. The Shaman
7. Make Believe
8. Z.I.T.O.
9. Deep Blue
10. Lullaby for Lucifer

Leituras recomendadas:

“Andre Matos: o maestro do heavy metal” – Eliel Vieira e Luis Aizcorbe

“O que faz o brasil, Brasil?” – Roberto DaMatta

“O conceito de ‘Terra Sagrada’ no discurso do disco ‘Holy Land’ da banda Angra” – João Vitor de Carvalho Madureiratrabalho de conclusão de curso disponível em https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/19748/1/O%20conceito%20de%20Terra%20Sagrada%20no%20discurso%20do%20disco%20Holy%20Land%20da%20banda%20Angra.pdf

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