Para que serve o cinema? Entreter, compartilhar visões autorais das leituras que fazemos do mundo? Também! Alguns filmes, entretanto, rompem algumas dessas barreiras, num misto de improbabilidade, aposta e experimentalismo. E é nessa atmosfera que surgem trabalhos como o distinto “Amor com Cheiro de Naftalina” (2016).
Escrito e dirigido por Raiane Ferreira, o curta metragem é um ensaio poético sobre as variantes das relações amorosas e como elas acabam moldando o próprio ser de cada pessoa que mantém algum laço de amor romântico com outro alguém. Idealizado como um projeto de conclusão de curso em cinema e audiovisual da Unifor, o documentário tem no seu tom sóbrio e técnico-estilístico, suas maiores potencialidades.
Raiane poderia ter pensado uma estrutura bem convencional para a obra. Mas decide brilhantemente apostar no exercício referencial. Assim, ela se mune de um arcabouço teórico, ancorada na perspectiva do amor líquido do filósofo Zygmunt Bauman, para criar a base teórica no qual o filme ganha sua forma. A partir disso, ela junta teoria à problematização por meio do entrelaçamento de visões e relatos dos personagens que dão voz ao filme.
Todas as falas e histórias que vemos no curta foram captadas pela realizadora como material documental e de pesquisa da obra. Entretanto, ela opta por não colocar na tela a apresentação “crua” dos casos ali relatados. Antes, recria esses depoimentos por meio de convidados, em sua maioria atores, que encenaram as vozes e discursos, então captados. Sempre em uma narração off, acompanhadas de um conjunto de imagens, que em sua maioria fazem alguma menção às transformações químicas em estados líquidos, gasosos, por exemplo.
Com isso, Raiane preserva a identidade e individualidade de cada depoente que cedera a estória para o filme. E dota o curta de uma característica que o potencializa como uma obra iminentemente contemporânea. Porque “Amor com Cheiro” é abertamente autoral, ou seja, ele carrega uma assinatura das questões que afetam a realizadora de um modo muito direto, uma vez que o amor e a natureza dos sentimentos humanos são um dos traços mais perceptíveis na obra de Raiane. Seja em seus filmes, nas artes visuais, a partir das suas pinturas, ou na literatura, por meio dos seus ensaios, poemas e crônicas.
E essa implicação é o índice máximo da cinematografia contemporânea e também fonte de toda sua força e relevância. De ser mais que mercado, ser uma força de expressão e um exercício ético na prática do ato artístico. Por entender isso é que o curta se expande para além dos seus próprios limites pensando-se igualmente enquanto forma e sentido. Nisso, o belíssimo trabalho de fotografia, aliado à montagem e à composição do som ao longo do filme, cristalizam seus aspectos técnicos em alinhamento à mensagem que a obra divide conosco.
Apesar de lidar com a delicada relação dos discursos e vivências, nem sempre exitosas no campo dos relacionamentos amorosos, “Amor com Cheiro”, também pode ser interpretado como um honesto trabalho de observação e escuta da natureza humana. Ele não se coloca como um trabalho em busca de respostas, ou que objetiva tolher a posição de quem fala à câmera. Pelo contrário, seu fluxo apresenta uma mescla de olhares de pessoas que encontraram parceiros na vida, bem como àqueles que sofreram e sofrem as agruras na busca pelos amor partilhado.
Cativante e honesto, “Amor com Cheiro de Naftalina”, une a ideia do exercício estético com a verve do ensaio poético na reconfiguração do documentário para discutir os tons da nossa subjetividade. O filme fala diretamente ao nosso consciente e surge como uma daquelas obras às quais atuam como um afago à percepção de quem a assiste.
Como do espectador que vem ao fim da sessão, agradecer com um abraço à diretora, pelo simples fato de o curta existir. Isso ocorreu de verdade, em uma das suas sessões de exibição, e é uma das respostas à pergunta no início da crítica. Uma vez que é para isso que o cinema, na verdade, existe.
FICHA TÉCNICA
Título Original: Amor com Cheiro de Naftalina
Tempo de Duração: 21 minutos
Ano de Lançamento (Brasil): 2016
Gênero: Documentário, Drama
Direção: Raiane Ferreira