AMÉRICA CRISTÃ – Alexandre Aragão de Albuquerque

Amanhecemos esta segunda-feira com um golpe de estado clássico na Bolívia, de forte violência armada, civil e militar. Diferentemente do Golpe no Brasil de natureza jurídico-parlamentar perpetrado pela minoria dominante brasileira para assegurar seus privilégios de classe diante da maioria da população trabalhadora das cidades e dos campos. Conforme demonstra uma vasta literatura, um golpe de estado necessariamente não precisa revestir-se da violência militar – uma ditadura – podendo assumir diversas formas, dependendo das circunstâncias concretas em que for consumado. Um golpe nunca é um golpe ideal, mas é sempre um golpe possível, como aconteceu no recente caso brasileiro, com a destituição da presidente Dilma Rousseff em 2016 e a prisão política do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em abril 2018, desaguando na eleição de um candidato de extrema-direita com fortes relações com as milícias do Rio de Janeiro e com a indústria bélica.

Como Lula que foi o primeiro presidente brasileiro líder sindical metalúrgico, Evo Morales é o primeiro presidente boliviano de origem indígena e líder sindical dos trabalhadores do campo, assumindo o poder em 22 de janeiro de 2006. Quando na presidência, a Bolívia possuía um Produto Interno Bruto (PIB) de 5 bilhões de dólares e um PIB per Capita de apenas 900 dólares. Enquanto os governantes de direita anteriores se ocupavam em utilizar o Estado boliviano para o acúmulo de suas riquezas familiares, Evo implementou mudanças na economia, em especial no trato dos recursos naturais, além de uma profunda nacionalização e recuperação de empresas estratégicas, praticando investimentos mistos com o setor privado em pequenas e médias empresas. Além disso, em seu governo houve uma “refundação” política do país, alterando seu perfil de um Estado colonial para um Estado plurinacional, com especial atenção para os movimentos indígenas e de mulheres. O resultado dessa política de inclusão praticada por Evo foi a brusca mudança naquele país que tinha 78% de sua população na extrema pobreza, passando a ter menos de 15%, com o PIB per Capita chegando a atingir o valor de 4 mil dólares e o PIB alcançando o valor de US$ 41 bilhões, numa clara política de distribuição da riqueza produzida.

Um dos maiores intelectuais da atualidade, o linguista e filósofo Avram Noam Chomsky, denunciou que os EUA tinham elaborado dois planos para derrubar ou para assassinar Evo Morales. Disse: “O golpe é promovido pela oligarquia boliviana e conta com o apoio total do governo dos Estados Unidos, que há muito tempo anseia por expulsar Evo Morales”. Mariane Scott e Rolf Olson, funcionários do Departamento de Estado dos EUA, em território boliviano, mantiveram reuniões com diplomatas do Brasil, Paraguai, Colômbia, Equador, Reino Unido e Chile para coordenar um não reconhecimento dos resultados eleitorais. O cenário do golpe estava montado, com violência disseminada nas ruas e com a raposa instalada dentro do galinheiro: a OEA não reconhecendo o resultado das eleições.

Esse cenário de violência ultradireita no continente sul-americano nada mais é do que a investida direta dos Estados Unidos para desestabilizar os governos progressistas democráticos da primeira década do século em virtude dos ganhos efetivos econômicos e sociais auferidos pelas populações empobrecidas decorrentes das políticas públicas de inclusão praticadas por esses governos, como também pelo realinhamento internacional ao buscarem fortalecer as relações entre os países membros do continente, dinamizando o mercado interno continental, além de uma nova postura de diálogo multilateral na cena mundial não subserviente aos interesses dos EUA. Sabe-se que a elite neoliberal mundial havia prometido que suas políticas levariam a um crescimento mais rápido e que os benefícios iriam ser melhor repartidos. Mas para se chegar a esse patamar, os trabalhadores e trabalhadoras teriam de se submeter a salários mais baixos e às democracias deveriam impor-se cortes substanciais em programas governamentais sociais e de desenvolvimento. Passados 40 anos dessa ideologia neoliberal, os números apresentados são o inverso do prometido: os frutos do desenvolvimento concentraram-se de forma esmagadora nas mãos de uma minoria que está no topo do poder ao passo que os salários despencaram, aumentou o desemprego e foram retirados direitos sociais das populações.

Entre tantas estranhezas que ocorrem neste período, uma que nos causa espécie é saber que esse cenário de violência indiscriminada contra trabalhadores e trabalhadoras acontece num continente de raízes culturais tipicamente cristãs. Segundo a Doutrina Social da Igreja Católica, o trabalho é um dos aspectos perenes e fundamentais, sempre atual, que exige uma renovada atenção de todos para os problemas que o atacam. Ela considera como uma tarefa sua fazer com que sejam sempre tidos presentes a dignidade e os direitos dos homens e mulheres do trabalho, estigmatizando todas as situações em que são violados, contribuindo para orientar as eventuais mutações no mundo do trabalho para que visem sempre mais a um autêntico desenvolvimento das pessoas e das sociedades. Como um seu tradicional princípio fundamental, a Igreja Católica afirma a primazia do trabalho sobre o capital, uma vez que o trabalho é sempre uma causa subjetiva e eficiente, enquanto o capital, sendo o conjunto dos meios de produção, permanece apenas um instrumento ou causa instrumental.

Os gritos de dor de populações inteiras de trabalhadores e trabalhadoras sul-americanas impõem respostas concretas se não se quiser permanecer cegos e surdos diante das violências a que estão sendo submetidas. O presidente Lula em seu último discurso do dia 09 destacou que será com a ampliação das solidariedades que conseguiremos superar esse estado de coisas: “É o amor que vai vencer nesse país”, afirmou. Mas não pode ser um amor abstrato ou cheio de intenções. Precisa ser um amor consequente, concreto, consciente de sua missão histórica, comprometido com o bem da humanidade.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

Mais do autor

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .