Alguns males do republicanismo burguês

“Digam ao povo brasileiro que a República
está feita.”

Marechal Deodoro da Fonseca

​Acredito que a humanidade caminha para a formatação de uma sociedade estruturalmente justa, ainda que considere que sempre haverá injustiças no seu interior, porque os seres humanos têm imperfeições que jamais serão eliminadas.
Isto se os súditos do capital não provocarem, eles mesmos, a própria extinção, seja pela agressão ecológica ou uma hecatombe nuclear, ou ainda se forem vítimas de fatores externos imponderáveis como a queda de um grande meteoro, como já ocorreu há milhões de anos, e que dizimou os grandes dinossauros.

O iluminismo burguês, que idealizou doutrinariamente a república burguesa, representou um avanço diante do absolutismo monárquico-clerical ou monárquico constitucional, mas, hoje, dá claros sinais de obsolescência, e não é a antítese do absolutismo nazifascista militarista (como pensam os acomodados defensores de tal polaridade); há outras concepções de estruturações sociais que fogem destes dois modelos caducos.

A república é um modo político de estruturação do Estado a partir de uma descentralização do poder (Boçalnaro, o ignaro, do alto da sua ignorância absolutista, após tomar posse declarou que tinha menos poder do que supunha), vez que é apenas a esfera regulamentadora e gerencial de interesses econômicos a que serve com a régua e compasso do capital, e que é a ele submisso.

O sistema de representação popular legislativo e executivo corresponde a um cheque em branco assinado pelo eleitor, que periodicamente outorga poderes de representação previamente delimitados pela constituição burguesa, e com pouca ou nenhuma interferência direta quanto ao exercício do poder outorgado.

Na república, o cidadão é um ente atrelado a um Estado que institui os poderes executivo, legislativo e judiciário, que serve a um poder econômico que o oprime; Estado que é sustentado pelo oprimido via cobrança de impostos, e o capitalismo é igualmente sustentado pelo trabalhador abstrato via extração da mais-valia a que é submetido.

Pior ainda, à medida que o capitalismo definha por seus próprios fundamentos, a opressão que lhe é inerente só aumenta.

O mais absurdo é que todos se referem ao ato gerencial republicano como meta moral a ser alcançada, e é comum se dizer e se ouvir, como fala recriminatória contra atos ilegais dos representantes dos podres instituídos que “este não é um proceder republicano”.

Ora bolas, todos os atos republicanos trazem a marca de mal original: a escravização indireta do capital que formata uma sociedade estruturalmente injusta.

Vejam os alguns dos males republicanos:

1. o aparelhamento do Estado – tanto a direita como a esquerda, quando nos governos e atuando sob a égide do capital que tudo define, aparelha o Estado aos seus interesses políticos eleitorais que são submissos a um poder que lhes é anterior e maior, e sobre o qual não têm soberania de vontade: o capital.

Assim, de acordo com a tendência ideológica de cada governo, os cargos de confiança de toda a estrutura governamental, que são os que decidem as questões de mando das esferas superiores e intermediárias, atuam facciosamente e obedientes a quem os nomeou para tais funções.

A República, assim, é uma farsa de democracia (se quisermos emprestar ao termo o sentido conceitual de que goza enganosamente) cartorial que se recicla temporariamente com a substituição nos cargos públicos a cada mandato eleitoral por submissos déspotas obedientes à estrutura constitucional burguesa e ao capital que tudo dirige verdadeiramente.

Os cargos e funções que atuam com independência administrativa, ou seja, as funções técnicas de mero expediente, além de serem pouco representativas no organograma hierárquico estatal, obedecem a estatutos jurídicos (leis ordinárias e constitucionais, regimentos, portarias, etc.) que nascem de uma outorga de representação popular que está longe obedecer aos interesses dos representados.
Vimos agora, por exemplo, os dirigentes do aparelho policial federal brasileiro serem nomeados por pessoas que expressam o pensamento governamental atual no Brasil e que por deterem cargos de poder pessoalmente outorgados nem sempre têm a isenção necessária no cumprimento da lei.
Manda quem pode e obedece quem não tem juízo.

2. a representação política infiel ao povo (mas fiel ao poder político-econômico elitista) – como sabemos, o processo eletivo republicano é dominado pelo poder econômico que se manifesta sob as mais variadas formas.

​A chamada classe média corresponde a cerca de 15% da população, e que se junta a chamada classe alta, que detém outros 5%, formando um conjunto que tem um poder de formação de opinião que costuma influir sobre a vontade soberana e consciente dos 80% restantes da população que têm interesses diversos daqueles dos que os influencia, definindo a vitória eleitoral dos seus representantes.

Neste mister são ajudados pela grande mídia e por disparos robóticos de comunicação via internet.

​Tal distorção eleitoral ocorre, principalmente, nas cidades do interior, que correspondem geralmente à maioria do eleitorado do estado membro, e que por ter maior dependência econômica local, quase sempre vota em parlamentares e governantes cujos propósitos desconhece, e que mesmo quando conhece superficialmente como seus representante políticos, não tem como fiscalizá-los eficientemente.

​O sistema de representação política democrática burguês é um cheque em branco passado pelo eleitor ao seu representante que o manipula quase que sem prestação de contas.

É evidente que a maioria das questões decididas nas esferas executivas e legislativas obedecem à lógica do capital que é algo avesso ao interesse popular, porque se assim não fosse o capitalismo não seria o que é; e se não fosse a manipulação das consciências não sobreviveria e não seria aceito pelos oprimidos como o sistema de exclusão e segregação social escravista que é.

​É sempre majoritária no parlamento a presença de políticos ligados a corporações elitistas e até criminosas (bancada ruralista, bancada da bala, do crime organizado, da religiosidade farisaica e fundamentalista, dos banqueiros do sistema financeiro ou dos jogos de azar, de grandes industriais, do agronegócio, das grandes cadeias de comércio, etc., etc., etc.).

​Os representantes institucionais das corporações de base popular (sindicatos e movimentos sociais) são sempre minoritários e, assim mesmo, estão presos a um juramento e decoro parlamentar ou administrativo que os enquadram constitucionalmente, e que assim, apenas cumprem a triste missão de dar legitimidade institucional pela via eleitoral a algo que é absolutamente ilegítimo: a ordem opressora político-econômica do capital.

​Mesmo antes da Proclamação da República no Brasil, que ocorreu em 15 de novembro de 1889 (e por um golpe militar conservador apoiado pela elite política conservadora nacional que achava o Monarca Dom Pedro II muito avançadinho, e sem participação popular – o povo foi apenas avisado pelo militar dirigente) até esta data, jamais tivemos um parlamento que fosse composto por representantes de corporações e partidos políticos de base por mais de 25% das cadeiras do congresso, e muito menos que isto de mulheres e negros, o que demonstra a teor do domínio eleitoral burguês elitista, racista, misógino, e pernicioso do qual ora falamos.

​O povo brasileiro não tem representação congressual legítima, e os cargos executivos são igualmente ocupados por representantes do capital na sua grande maioria; e os que não o são, e ousam contestar, costumam ser ejetados do poder burguês como um vírus estranho ao corpo no qual se instalou ingenuamente!

3. o absolutismo do capital – nas monarquias absolutistas de antes e de agora (vide a Arábia Saudita do cruel príncipe Mohammed bin Salman) o que vigora é a vontade do rei;
– nas ditaduras militares o que vigora é a vontade marcial da força bruta reluzentemente fardada;
– nas democracias de governantes com aspirações ditatoriais (e são muitos os que se elegem pelo voto e desejam eliminá-lo para governar sem quaisquer tipos de filtros) é a força bruta de milícias e aparelhos policiais que surgem das trevas do submundo político criminoso;
– nas democracias burguesas liberais (no sentido político, não econômico, que tem conceito diferente do conceito de liberalismo capitalista) são as instituições de predominância da lógica de mediação do capital que fazem o filtro de qualquer movimento popular de base.
​Mas todos estes regimes políticos têm um senhor que os comanda: o capital. O capital, como já dissemos em tantas outras oportunidades dos nossos escritos, não admite outro senhor que não seja ele mesmo.

​Como sabemos trata-se de uma lógica de mediação social coisificada, e na qual a forma-valor, uma abstração numérica ganha vida e dá vida às coisas inanimadas (os objetos da natureza, processados industrialmente ou obtidos in natura) transformando-os em mercadorias, e passam a teleguiar a ação dos seres humanos sob seu fetiche macabro tal qual uma bonita maçã envenenada que atrai perigosamente um faminto para a morte.

​Desde que se produza valor tudo é desculpável, justamente porque se considera que o valor é um Deus que dá vida e que por isto deve ser adorado.
​Ninguém questiona o fato de que em qualquer objeto material que sirva ao consumo ou qualquer serviço necessário não existe um grama sequer de dinheiro, a representação mefistofélica do valor. Mas todos dizem que somente se faz alguma coisa com dinheiro, e assim o é de fato numa sociedade completamente mediada pelo capital, e é por isso que devemos nos livrar das limitações que tal modo de relação social nos impõe e nos cega.

​Mas esta é uma conclusão obviamente equivocada, porque se assim fosse, Pedro Álvares Cabral não teria encontrado nas praias da Bahia há 522 anos algumas centenas de pessoas vivas, belas, a que chamou de índios, vez que não conheciam a forma-valor e as mercadorias (por isso trocavam ouro por espelhos), mas comiam, bebiam, pintavam-se numa nudez sem pecado, amavam sob um código moral livre, poligâmico sem patriarcado, ainda que fossem considerados pelos recém-chegados como seres sem alma que precisavam ser catequisados para adquiri-las.

​A concessão de US$ 800 milhões em armas para a Ucrânia pelos Estados Unidos repercute na nossa mente a ideia equivocada de que somente quem tem dinheiro pode produzir, seja arma ou alimento.

​Desta forma, todo o arcabouço republicano de poder se funda no ato de gerenciamento político de outro ato que lhe é anterior e soberano, qual seja produzir valor econômico, que nada mais é do que uma convenção de relação social imposta, determinada, escravista, segregacionista, ilusória, reificada, contraditória, com caráter onívoro, destrutiva da natureza e das boas relações humanas e sociais, e por fim autodestrutiva, porque destrutiva de sua própria forma.

​Muitos outros males poderiam ser elencados como crítica ao republicanismo burguês, uma forma política tida como sacrossanta, e que tem servido de parâmetro comportamental de vetustos senhores das esferas estatais de poder (nem sempre tão republicanos assim), e que não passa de um episódio histórico, e como tal, não ontológico da existência humana, e que um dia será visto como uma etapa atrasada e inferior do nosso processo evolutivo, caso não sucumbamos todos diante de sua irracionalidade fratricida.

​Por enquanto, paramos por aqui, mas tem muito mais coisa podre no reino do republicanismo burguês…

Dalton Rosado.

Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;