A manipulação social dos conceitos

         As palavras têm a força do sentido que encerram. É graças a isto que devemos ter o cuidado de entender o espírito daquilo que elas significam e, principalmente, as transformações que nelas possam ocorrer em razão do uso indevido e intencionalmente deturpado.

         As metamorfoses perigosamente manipuladas do significado das palavras que podem passar a ter (e têm tido) ao longo da vida social é o que tratamos neste artigo.

Assim, passamos a analisar algumas metamorfoses e conceitos semânticos e/ou duplos e contraditórios sentidos que detêm, senão vejamos:

A sacralidade dos preceitos constitucionais – há quem considere, principalmente no mundo jurídico, que a obediência e imutabilidade dos preceitos constitucionais é fator de estabilidade social, configuração e solidificação de comportamentos sociais pretensamente virtuosos.

         A dialética do movimento social e os princípios da formatação do direito estão a nos ensinar que não deve ser a norma aquilo que deve engessar o comportamento social, mas é o comportamento social e suas vontades e interesses coletivos regidos a partir de princípios éticos e morais elevados, aquilo que deve promover as reformas normativas constitucionais e o direito dela derivado.

         Devemos considerar que a Assembleia Nacional Constituinte, encarregada da elaboração de qualquer constituição (como recentemente ocorreu no Chile, após os protestos de rua contra os resquícios da ditadura Pinochet e da derrocada da economia chilena), é sempre decorrente de um conjunto de parlamentares eleitos sob a influência econômica que sempre marca as eleições parlamentares burguesas.

         Na eleição burguesa, desde sempre, elegem-se, majoritariamente, parlamentares burgueses. Parlamentares burgueses significa que farão uma constituição burguesa, voltada para os interesses do capital, e como o capital é intrinsicamente opressor, a constituição que o preteje também o é.

         A constituição burguesa é a norma que pauta o direito ordinário burguês. Por sua vez o direito ordinário burguês é, em muitos dos seus institutos, marcadamente injustos para com a maioria da coletividade. Um antidireito no sentido fas.

         A constituição burguesa prevê, por exemplo, o direito à propriedade como cláusula pétrea. Complementarmente, vem o direito civil e concede possibilidades de acúmulo ilimitado da propriedade sem considerar a hipoteca social da dita cuja.

         Há quem não tendo nenhuma propriedade aspire por tê-la e, assim, defenda o direito à propriedade tal como está prevista na constituição burguesa. Um fetiche opressor.

Ora, como a propriedade é sempre uma mercadoria na sociedade burguesa, alguém pode ter 1.000 ou mais casas alugadas a quem não tem nenhuma e cobrar o aluguel destas como renda pessoal patrimonial, despejando o devedor desempregado inadimplente no aluguel; o magistrado incumbido de tal processo de despejo terá que obedecer ao direito burguês estatuído sob pena de ter reformadas as suas sentenças por desacordo normativo e em alguns casos de repetição receber punição das instâncias superiores da magistratura por descumprimento da norma.

Assim, o Poder Judiciário sob a constituição burguesa é o cutelo opressor do capital, e tudo sob o manto da pretensa e hipócrita realização do ideal de justiça. O pior, é que é o povo quem paga, pela via da cobrança de impostos constitucionalmente definidos, o valor-dinheiro-mercadoria que subvenciona a sua própria opressão.  

Muitos outros exemplos do caráter opressor da constituição burguesa poderiam ser citados aqui, mas citamos apenas este em particular, para demonstrar que aqueles que querem rasgar a constituição (como os ultraconservadores nazistóides) em benefício ditatorial próprio, são diferentes e o oposto daqueles que querem uma constituição verdadeiramente popular e voltada para o interesse majoritário da coletividade.

Neste caso a virtude não está no meio, ou seja, entre aqueles que preferem a conservação do status quo constitucional burguês atual por medo do retrocesso da dita cuja.

Não é jurando obediência a uma constituição burguesa, como forma de contraposição à ameaça de uma constituição ditatorial, que se avança na busca de um estágio superior de civilização social.

Cidadania – o filósofo grego Sócrates no momento em que se formavam as cidades-estado grego (como Athenas) e o conceito de cidadania como pretensa proteção social aos cidadãos, afirmou que “o cidadão é o cadáver do homem”.  

         Qual a diferença, enquanto ser humano e indivíduo social, entre alguém que se arrisca a atravessar as fronteiras dos países do G7 por barco temerário cheio de gente, caminhando pelo deserto ou em tuneis cavados, com filhos menores e arriscando a própria vida, e aqueles que viajam de avião após terem obtido o visto de entrada e que até obtêm o green card depositando U$ 1 milhão num banco qualquer? A diferença reside no conceito de cidadania atribuído a cada um deles.

         O ser humano rico é cidadão bem recebido e com honras de turista nos países ricos; o outro é um marginal invasor que se não morrer na travessia, e for preso, tem seus filhos amotinados separadamente dos pais em jaulas, todos a serem deportados como seres indesejados.  

         O cidadão comum, assalariado, é aquele que é explorado pelo capital na extração de mais valia na produção das mercadorias por subtração da mercadoria hora-valor de trabalho abstrato, e obrigado a pagar o imposto em qualquer mercadoria que compre para o seu sustento material, e com isto sustentar a reprodução vital capitalista e seu Estado regulamentador e opressor.  

         Esta é o mundo da cidadania e da mercadoria, este “quid pro quo” destinado a oprimir sub-repticiamente o ser humano transformado em cidadão!

O benemérito empreendedor – durante a Comissão Parlamentar de Inquérito para apuração das mortes por covid19 no Brasil, que se apresenta como detentor da triste primazia de ter o maior número relativo de mortes por conta desta pandemia no mundo, e que já se aproxima do número absoluto de 700 mil mortes, vimos um empresário se jactar (e com a anuência dos parlamentares) de que era um benemérito social.

         Tal benemerência se certificava no fato de alegar que proporcionava cerca de 100 mil empregos diretos em seus empreendimentos.

         Este rico homem, que acumula poder econômico considerável e, com ele, passa a ter poder político decorrente, esqueceu-se de dizer que são justamente aqueles 100 mil assalariados que sequer os conhece pessoalmente, quem lhe oportuniza a acumulação do capital extraído de cada salário por tempo-valor produzido, e que é exatamente isto o que faz a sua fortuna e poder.

         Assim, de quem é a benemerência? De quem ganha um salário baixo e enfrenta diariamente uma viagem de ônibus cheio de gente trabalhadora de ida e volta do trabalho gastando mais da metade de seu dia numa faina exaustiva, ou aquele que viaja de jatinho particular para depor numa audiência parlamentar e desfilar com sua arrogância de capitalista e cônscio do seu poder e influência social?

         Por conta do conceito inverso subliminar introjetado diariamente nas mentes coletivas o beneficiário passa a ser benfeitor, e os explorados promotores da riqueza aleia são considerados como seres felizmente beneficiados por quem os explora.

         Há uma falsa conceituação sobre a benemerência do capital na promoção da vida social e é isto que faz com que todos (direita e esquerda institucional) pugnem para retomada do desenvolvimento econômico como apanágio do bem, e fórmula capaz de promover uma melhoria na distribuição da renda e fortalecimento do Estado enquanto ente benfeitor incumbido do suprimento das demandas sociais.

A corrupção que não é crime – o poder econômico que tudo comanda na sociedade do capital e que subjuga o poder político, advém de um ato de corrupção oficialmente aceito.

         O termo corrupção, que no vernáculo tem significado amplo. Tanto pode significar decomposição do estado físico; putrefação, como pode significar apenas alteração das características originais de algo.

         Há corrupção de menores para a prostituição; há corrupção de valores morais e éticos para a prática de crimes comuns; etc., etc., etc.

         Aqui tratamos da corrupção econômica, aquela instituída como forma de relação social destina à escravização indireta do ser humano para extração de mais-valia, que nada mais é do que a apropriação indébita pelo capital da mercadoria força de trabalho pela via do valor-tempo de trabalho abstrato do trabalhador na atividade empresarial dos vários setores da economia (primário, secundário e terciário).

É por isto que ao invés de defendermos os direitos do trabalhador, devemos lutar para superar esta categoria primária da formação do capital. Tentar melhorar algo que é intrinsicamente ruim é diferente de superar a sua própria existência , e este é mais um exemplo do capcioso significado de cada intenção embutido nas palavras.  

         O direito burguês admite oficialmente, dentro de regras jurídicas da relação capital/trabalho, que alguém se aproprie do valor global produzido por um trabalhador abstrato (assim considerado por produzir valor abstrato na venda da mercadoria força de trabalho) durante determinado período (hora-valor de trabalho abstrato), sem que tal apropriação seja indébita, ou seja, que tal corrupção não seja assim considerada.

         O direito burguês tem a característica de fazer firulas na ciência jurídica capazes de transformar o justo em injusto e o injusto em justo (o fas em contraposição ao jus, na ciência do direito). A questão da conceituação da corrupção econômica é uma delas.

         Entretanto, a apropriação de dinheiro dito público, advindo dos impostos cobrados a uma população exaurida em sua grande maioria pelo próprio capital, feita por políticos ou empresários com estes primeiros mancomunados, é considerado crime (dependendo de quem o pratique e no momento em que ocorre).

         Tal ocorre porque o Estado é a cidadela de regulamentação e coerção das regras constitucionais burguesas pelo Poder Judiciário.

         O Estado deve estar economicamente fortalecido para cumprir a sua função de apoio e sustentação da ordem da relação social estabelecida pelo capital e o desvio de tal finalidade pelo segmento administrativo (Poder Executivo que administra o orçamento dos valores arrecadados pelo erário via cobrança de imposto) pode representar um desserviço ao objeto para o qual foi concebido.

         Há outras palavras cujos conceitos e significados deturpados, manipulados ou imprecisos devemos analisar e dimensionar tais como: terrorismo de estado, estado democrático de direito, exercício da soberania do voto, liberdade de imprensa, patriotismo e nacionalismo, obediência civil, conceito de segurança pública, conteúdo da educação, direito à saúde, meritocracia e competitividade, tacocracia, dentre outros, que pretendemos fazer em outros artigos, gradativamente, para proporcionar ao nosso leitor uma reflexão mais aprofundada sobre nosso pensar.

         Por fim, não devemos esquecer de dizer que neste momento da decrepitude da lógica capitalista decorrente da contradição autodestrutiva dos seus próprios fundamentos, o Estado definha conjuntamente e se endivida além do que seria recomendável, e é por isto que o segmento mais consciente do stablishment não gosta da corrupção com o dinheiro dito público e olha atravessado para muitos dos seus empresários e representantes políticos que a praticam em benefício próprio e individual.

A falência estatal decorrente da falência do capital que defende, ocorre concomitantemente à depressão deste último, e se constitui como mais uma das suas muitas contradições, sendo a primeira anunciação da inflexão social que está prestes a acontecer num tempo indeterminado, mas historicamente próximo.

         As palavras, mais cedo ou mais tarde, tendem a demonstrar aquilo que verdadeiramente significam e, assim, serem conceitualmente modificadas ou substituídas por outras que espelhem melhor seus reais, prejudiciais ou virtuosos significados.

Dalton Rosado.

Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;

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