Albanisa Dummar, a menina que amava livros

A liberdade de brincar nos arredores da lagoa, subir em árvores, viver livre todos os dias e em contato com a natureza era a rotina da caçula, junto aos seis irmãos, quando criança, no sítio em Messejana. Lá, parecia muito distante da cidade, ainda mais quando as águas das chuvas transbordavam até o rio Cocó. Albanisa Dummar e os irmãos ficavam, às vezes, isolados, mas isso era uma coisa boa, pois o lado de dentro do portão pertencia a um mundo mágico, a mansão.  E a generosa mesa de quarenta lugares estava cheia, todos os domingos, a mãe recebia em casa dezenas de convidados.

 

Brincadeiras compartilhadas com os de casa e outras crianças, era certo todos os fins de semana. “…Os vizinhos Otto e Tales tinham as brincadeiras com meu irmão mais velho, o Demócrito, porque eles eram da mesma idade, eu não fazia parte, mas assistia o jogo de futebol de salão, as partidas de voleibol, essas coisas… Aprendi a andar de bicicleta com o Demócrito, ele me empurrou numa ladeira e disse: se segura! ai eu sai correndo”.

Messejana parecia refúgio, desde sempre. Quando as crianças voltavam do Colégio Doroteias e entravam pelo portão, pareciam entrar em outro mundo. Diferente, acolhedor, protegidas por tantas árvores e embaladas pelas músicas que a mãe, Lúcia, tocava — e também ensinava os filhos a brincar com as cordas do violão.

Confira aqui a entrevista de Albanisa Dummar ao Perfil HQ.



1- Outra época em que você gostaria de ter vivido?

Houve um corte radical nesse nosso modo de viver quando saímos de Messejana. Eu tinha uns 15, 16 anos, e fomos morar no Rio de Janeiro, uma realidade completamente diferente, um impacto. Estávamos em família, tinha o aconchego, mas ainda assim foi uma mudança radical, por um lado, mas muito enriquecedora. Sempre existe o lado positivo e negativo. Os momentos de sofrimento, uma adolescência onde estava meio perdida, como qualquer adolescente, mas tudo que eu vivi eu acho que tinha que viver, e não rejeito nada, eu aceito muito tudo, eu vivi o que vivi e não sinto falta de nada que não vivi, porque eu aceitei tudo aquilo buscando aprender com tudo o que vivia.



2- Existem heróis? Você tem algum?

Eu tinha vários heróis. Eu os admirava como pessoas, mas sempre encontrei neles o escritor. Raquel de Queiroz foi um referencial para mim, ela contribuiu. Eu via o herói pelo feito daquela pessoa, não pelo lado fantasioso. Sempre admirei os escritores, eu era louca e alucinada pelo Carlos Drummond de Andrade, comprava todos os livros dele e lia tudo. Quando eu estava no colégio, morando no Rio de Janeiro, a professora pediu para cada aluno escolher uma pessoa para entrevistar. E como naquela capital está todo mundo, eu escolhi Carlos Drummond de Andrade. A professora disse assim: “é…, tá certo, tente…”, ela até tinha os contatos, me deu o telefone, eu liguei e passei uma hora conversando com o Drummond… Eu, uma estudante…. fiz a entrevista, levei para o colégio, foi um sucesso… Então,  eu não vejo heróis na minha frente, que não sejam pessoas que tenham esse lado intelectual, ou seja, os heróis da literatura.



3 – Politicamente, eu

Não tenho nenhum vínculo com partidos, nem com direita, nem com esquerda, eu acho que você tem que ter valores, e por esse valores você tem que lutar politicamente. A questão dos Direitos Humanos – da mulher, tive a oportunidade de me aproximar da Maria da Penha e publiquei o livro dela. Me interessa o direito das crianças de ter um lar, um pai, uma boa escola. Minha direção política é de trabalhar no sentido de que as pessoas tenham os seus direitos satisfeitos, as condições de vida, uma coisa difícil. Então, até na linha editorial que eu escolho trabalhar aqui eu coloco muito isso, os direitos da criança, os direitos do idoso, princípios que a humanidade deve ter. A política para mim é nesse sentido, de ir ao encontro desses princípios que a humanidade deve abraçar, não a política de conquista de espaço para ter poder, nunca fui chegada a essa história de poder pelo poder.  Sempre trabalho os direitos no sentido de respeito ao outro, você não pode exigir o que você não pode dar ao outro. Se você quer o respeito do outro, você tem que ter respeito pelo outro. Então, eu trabalho politicamente através da minha linha editorial.



4 – Tem um livro favorito?

Eu sou verdadeiramente apaixonada pelo Carlos Drummond, é um marco para mim, eu releio relembrando o que eu já li, mas eu posso reler muitas vezes.


5 – Um Filme?

Eu vi um filme recente e fiquei apaixonada, Out of Africa, com a Meryl Streep e Robert Redford, um filme de 1985, em que ela era dinamarquesa e viaja para uma propriedade na África, ela é refinadissíma, mas quando chega lá, humaniza aquela relação com os africanos. Para mim foi uma volta ao passado, marcante historicamente, sobre colonização. Histórico, mas ao mesmo tempo é um filme de uma mulher que se mostra individualmente assumida para aquela época, como protagonista, não ficou a mercê do marido, muito pelo contrário, ela teve a linha dela de ação, ela mudou a realidade de muita coisa. Eu gosto de filmes baseados na história de vida de alguém, tipo documentário romanceado, que tenham um pouco de ficção e também que tenham um fundo de realidade.



6 – O que te acalma?

Música.

7 – O que te irrita?

Pessoas insistentes, eu tenho pavor quando me ligam para oferecer alguma coisa, para comprar, essa insistência chata do dia de hoje que você é obrigada a atender telefonema de não sei quem querendo vender alguma coisa. Fico irritada também com desatenção, você fala com a pessoa e ela não responde direito, numa loja em que você fala e a pessoa está no celular e não te atende, acho falta  de consideração.



8 – Uma palavra que você gosta e uma que você não gosta.

Eu gosto da palavra amor, e não gosto de palavrão, detesto palavrão.



9 – Qual é a emoção que te domina?

A emoção de ver os netos, ver meus filhos tendo filhos, e os netos serem meus filhos duas vezes, eu curto meus netos como se fossem meus filhos.



10 – Religião para você

Eu sou católica, minha família é católica. Sou devota de Nossa Senhora das Graças e tenho uma verdadeira admiração por São Francisco, gosto muito dos Franciscanos, também por causa dos animais e da simplicidade. E tenho respeito às outras religiões, vejo das outras religiões o que elas têm de positivo.



11 – Dinheiro?

O dinheiro é a possibilidade de ter algumas vivências que sem ele a gente não pode ter. Eu não sou apegada, eu gosto de viver a vida, de usufruir da vida, quero que o dinheiro me proporcione a possibilidade de conhecer o mundo, por exemplo. Então o dinheiro para mim é para viver e não para guardar.



12 – Você não perde uma oportunidade de que?

De estar em casa tranquila fazendo o que eu gosto, ouvindo uma boa música. No fim de semana adoro ficar em casa, fazendo o que eu quero, lendo, como , por exemplo, li recentemente a biografia do Belchior, isso é uma coisa que me dá muito prazer.



13 – O que é o silêncio e a solidão?

É um momento de introspecção para o encontro com você mesma. Eu não me sinto só mesmo estando só, me sinto sempre acompanhada, porque eu fico sempre refletindo, introspectando e pensando nas coisas… o encontro sem angústia, sem sofrimento.



14 – O que é a vida?

A vida é uma passagem, uma oportunidade de você dar o melhor de si. O que você tem de potencial bom deve usar e abusar, o que você tiver de característica ruim, se sacrifique para não pôr em prática. A possibilidade que você tem de dar o que você tem de bom pro mundo e recolher o que você tem de ruim,  tente processar com você mesma, não passe para outros.



15 – E o Brasil?

O Brasil está numa situação de insegurança que não sabemos o que é o dia de amanhã. Então é importante a resiliência, entender que passamos por esses momentos, vamos usar essas fragilidades para criar forças para que se tenha a condição de um futuro melhor, para os filhos e netos… é um recuo e um impulso ao mesmo tempo, mas é um impulso sempre onde o lugar de partida nunca é o mesmo… E é isso, sobretudo aqui no Nordeste, no Ceará, sempre tivemos a capacidade de renascer sem perder a esperança.



16 – Quem você ressuscitaria?

Eu gosto muito do Darcy Ribeiro, ele consegue compreender o Brasil como poucos intelectuais, enraizado na origem do Brasil. Acreditou no Brasil e sempre passou uma mensagem bonita para as pessoas, era um ser de iluminação. Darcy tinha um amor e um conteúdo a dar para o brasileiro e os deixou nos livros, que merecem muitas releituras. Ele precisava, sim, estar hoje aqui para dizer assim: vamos em frente, somos o povo brasileiro.



17 – Um dia eu ainda vou

Passar o máximo de tempo que eu possa com os meus netos, vivenciar com eles os momentos onde eu possa aprender com eles e eles possam aprender comigo, eu tenho a necessidade disso, eu tive esse privilégio de viver com pessoas de idade,  e eu acho que temos muito a dar para os nossos descendentes. Eu digo “meus netos”, simbolicamente, mas eu falo de qualquer outra criança.



18 – Se você tivesse o poder de mudar qualquer coisa, o que você mudaria?

Eu mudaria o acolhimento da infância brasileira em instituições que fossem acolhedoras e que fossem amáveis com as crianças, eu mudaria tudo o que é agressivo à possibilidade da infância existir.



19-  E quem você gostaria de ser?

Eu mesma.



20 – O ser humano

Ainda vai transformar o mundo em um lugar melhor.



21 – Eu sou

Aquela pessoa que sempre espera o melhor de tudo, minha mensagem é que precisamos sempre acreditar no mundo e nas pessoas, na capacidade do ser humano transformar o mundo em uma lugar melhor, é acreditar no poder do bem.



Albanisa Dummar morou no Rio de Janeiro, em Brasília e em Londres. Depois de alguns anos retornou para Fortaleza e escolheu como moradia o mesmo lugar da infância, a poética, histórica e inesquecível casa do sítio em Messejana. Lá também criou os três filhos com a mesma liberdade vivida na sua infância. O espaço verde, do lado oposto à estátua de Iracema, onde a vegetação ainda prevalece, e seguindo os costumes da mãe, a família preserva as mangueiras até os dias atuais: “minha mãe gostava de cultivar flores, lindas hortênsias, árvores de frutos, estudava a botânica, era curiosa, dava o nome científico das árvores, preservava, replantava, ela dizia assim: “vou fazer minha avenida de sapoti”,  e plantava não sei quantos pés de sapoti. Depois, fazia o mesmo com os cajueiros, coqueiros e pés de siriguela…. Ela registrava tudo, sabia quantos pés de mangueira tinha, quantos pés de sapoti, era uma diversão o convívio com a natureza”…

Inspirada por sua mãe Lúcia, Albanisa Dummar guardou para os filhos e netos a mesma dedicação, carinho e cuidado que recebeu na infância. Sem esconder nenhum grão do infinito amor que sente pela matriarca, o gosto pelos livros e a admiração pelos heróis da literatura, ela recorda:” eu quis saber do Drummond porque tantos “Josés” no seu poema, eu estava muito curiosa e ele me disse: olha, eu estou conversando com você porque você é uma estudante, então eu fico muito mais gratificado em falar com uma estudante do que com um jornalista intelectual. E eu disse para mim: eu não acredito que eu consegui isso, aquilo foi um marco, se eu cheguei até Drummond, eu chegaria em qualquer canto”.

Feminina e de alma leve, Dummar aponta para Drummond; embelezando a parede do escritório, um poema manuscrito por ele e enviado para Albanisa, quando ela cursava comunicação na Universidade de Brasília, dez anos após a entrevista da pequena estudante.

 

Heliana Querino

Heliana Querino Jornalista

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Heliana Querino

Heliana Querino Jornalista

1 comentário

  1. Gilmar de Oliveira

    Excelente entrevista!
    Conexão perfeita entre entrevistadora e entrevistada. Um duelo com luvas de pelica.