AINDA SOBRE A BELEZA E A ARTE

Em termos de avaliação da obra de arte, assumo: sou um formalista incorrigível. O que faz de um livro arte não é o tema explorado, mas a maneira como esse tema é apresentado. Um filme é arte, não pelo que diz ao espectador no tempo médio de sua duração, mas como o dito é trabalhado esteticamente, a forma como o diretor (o autor da obra) explorou os recursos de que dispõe, o uso da câmera, o enquadramento, a angulação e movimento da imagem, que é o resultado do manuseio do equipamento e da concepção que ele, o diretor, tem dos sentidos que suas escolhas técnicas terão para o objeto filmado. Assim é com a pintura, a cenografia teatral, a plasticidade dos movimentos do dançarino em sua performance na madeira do palco.

Em seu livro recém-lançado sobre o cinema, Caetano Veloso diz acerca disso algo extremamente relevante: “Sinto decepcioná-los, mas aqui vai como uma notícia: não é o ‘ator’, e sim o ‘diretor’, o importante num filme. O cinema é uma estética, é uma arte. E o diretor está para a obra de arte fílmica assim como o pintor está para o quadro. Os materiais de que dispõe um realizador cinematográfico são a câmera, o celulóide, os cenários, as coisas, os atores etc.; […] é inegável que o ator é um instrumento ‘superior’! Nunca igual a um objeto. Porque dele o diretor tira emoções, expressões humanas”. Bingo.

Conheço pessoas, mesmo algumas familiarizadas com o cinema, que sabem de cor datas de lançamentos, o guarda-roupa que vestiu o elenco, os gestos e trejeitos de uma atriz, a que altura do desfile fílmico Marcelo Mastroianni disse isso ou aquilo, onde moram os atores e atrizes, como vivem, quantas vezes e com quem se casaram, suas opções sexuais, boatos e mexericos que os rodeiam, em que produções atuaram e que prêmios arrebataram. Isto, contudo, não é conhecer o cinema se ignoram as estratégias narrativas adotadas por tal e qual diretor. Vou além: desconhecem o que acrescenta ou subtrai de uma cena ou de uma sequência o ângulo de gravação, e o significado que essa escolha dará ao entrecho fílmico em termos conteudísticos; o que uma panorâmica ou um travelling resulta em beleza e em sugestões no desenrolar da história. Têm do cinema um conhecimento enciclopédico, e são capazes de situar com segurança, por exemplo, “Casablanca” e outros clássicos no quadro periodológico da sétima arte, mas desconhecem, mesmo assim, o que faz do cinema o que o cinema é: a mais prodigiosa de todas as artes, por trazer dentro dela os elementos constitutivos de todas as outras modalidades.

Não à toa, digo sempre, um filme é tanto maior quanto maior for o número de vezes que o vemos. Um detalhe da direção de arte, uma palavra no contexto de um diálogo, um corte intencionalmente ‘impreciso’ na perspectiva do que estabelece a gramática cinematográfica, o rigor técnico nos procedimentos de montagem ou a originalidade nas escolhas das estratégias narrativas adotadas, e a história de um filme pode ganhar nova força, novo relevo, novas potências discursivas, outra dimensão estética.

Muitas vezes, mesmo nos meios artísticos mais prestigiados, ouvem-se comentários infelizes sobre um dado filme, pela simples e importante razão de que a luz, a presença de um adereço sobre uma mesinha num canto de sala, o corte repentino à maneira de Glauber Rocha ou Jean-Luc Godard, a música de fundo ou um detalhe no vestido de uma atriz — coisas delicadas e quase imperceptíveis aos olhos desatentos do espectador comum —, passaram despercebidos, ou não se soube, num exercício de abstração, tirar delas o seu real significado no desenrolar da história de um filme.

É do mesmo Caetano Veloso, no seu livro maravilhoso, o comentário que faço questão de reproduzir aqui: “… entre nós existe uma preguiça mental, um desleixo do intelecto que não deixa o povo ver um filme pensando. A nossa geração está acostumada a ver a obra fílmica de forma passiva, sensorial, quase irracional. Está viciada com os dramas coloridos e falsos de Hollywood, com os roxos dramalhões mexicanos, com os rosados melodramas alemães e não pode entender Fellini”.

Um filme, um livro, um espetáculo de teatro, uma instalação numa esquina de rua, a interpretação sentida e tecnicamente rigorosa de uma música, enfim, o que há nisso tudo em matéria de linguagem e apuro estético, são coisas muito grandes para passarem ao largo de nossa sensibilidade ou nossa atenção. Arte é entretenimento, sim, mas é muito mais que isso. A Arte deleita e ensina, liberta o homem dos monstros que habitam o seu interior mais profundo e mais sombrio, e, acima de tudo, como está em Dostoiévski, a Arte é a beleza que pode salvar o mundo.

Alder Teixeira

Professor titular aposentado da UECE e do IFCE nas disciplinas de História da Arte, Estética do Cinema, Comunicação e Linguagem nas Artes Visuais, Teoria da Literatura e Análise do Texto Dramático. Especialista em Literatura Brasileira, Mestre em Letras e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. É autor, entre outros, dos livros Do Amor e Outros Poemas, Do Amor e Outras Crônicas, Componentes Dramáticos da Poética de Carlos Drummond de Andrade, A Hora do Lobo: Estratégias Narrativas na Filmografia de Ingmar Bergman e Guia da Prosa de Ficção Brasileira. Escreve crônicas e artigos de crítica cinematográfica