Aíla Sampaio: estou buscando minha melhor versão

É sobre arte e liberdade, palavra e desejo, é sobre poesia ou um sonhar com os pés no chão. Na entrevista de hoje toda a sensibilidade da professora, escritora e poeta, Aíla Sampaio.

 




Aíla Sampaio, vamos começar a entrevista falando um pouco da tua infância, onde nasceu, os tempos de escola, as brincadeiras.

Nasci numa pequena cidade do interior do Ceará, região do Cariri: Abaiara; segundo dizem, seu nome junta os nomes de dois índios: Aba e Iara. Morei lá até os 8 anos, depois me mudei para Milagres, onde estudei no Patronato e Escola Normal Dona Zefinha Gomes até a 8ª. Série. Aos 14 anos vim para Fortaleza e fiz o Ensino Médio (na época se chamava Científico) no Colégio Cearense. Na época em que morava no interior, gostava de brincadeiras de rua com os amigos: “caí no poço”, “pega-pega”, “amarelinha” (chamávamos macaca), “telefone sem fio”, “passa anel”. Nunca tive paciência para jogos nem tinha muita competência para subir em árvores. Gostava mesmo era de livros, sobretudo dos que eu mesma escolhia pra ler.


Me fala como aconteceu teu encontro com a literatura.

Comecei a ler muito cedo. Ainda menina, ganhei o livro Os contos de Andersen, traduzido pelo Monteiro Lobato, e foi o primeiro a que me apeguei. Eu viajava nas histórias. Depois descobri a Antologia dos poetas românticos na estante do meu avô, e comecei a ler poemas sem saber que eram poemas. Aos 10 anos eu lia Álvares de Azevedo, Gonçalves Dias, Juvenal Galeno, entre outros, e me emocionava com os versos de amor. Comecei aí a escrever poemas em meu diário. Entre 12 e 13 anos, comecei a ler as obras do Machado de Assis e do José Lins do Rego. Depois descobri Carlos Drummond de Andrade e Cecília Meireles, que influenciaram muito a minha poesia. A leitura sempre foi essencial pra mim.


Agora conta mais de você nas perguntas a seguir:

  • Em que outra época gostaria de ter vivido

Sou muito saudosista e sensível a tudo o que é antigo. Gosto de construções velhas e me identifico muito com a arquitetura medieval. Óbidos, em Portugal, e Toledo, na Espanha, são exemplos de lugares que sinto já ter visitado, já ter vivido. Tenho também muita identificação com a arte sacra barroca, viajo olhando as cidades históricas do interior de Minas, como se tudo me fosse incrivelmente familiar. Mas não, não gostaria de voltar a esses tempos. Viver num período em que a mulher não tinha voz, certamente, me aniquilaria. A minha viagem se dá somente pela memória. Gosto de fechar os olhos e me ver de volta também aos anos 70, quando eu era criança e existiam quintais, liberdade… Mas o meu tempo é esse, com todo o seu peso, com toda a sua necessidade de construção da leveza.

  • A palavra que eu mais gosto: 

Liberdade – porque é ensolarada com desejos, sonhos, buscas. Há um poema do Paul Eluard (traduzido pelo Manuel Bandeira), que  me emociona muito. Vou citar apenas um trecho, porque ele é longo:

“Escrevo teu nome

Na saúde que retorna

No perigo que passou

Nas esperanças sem eco

Escrevo teu nome

E ao poder de uma palavra

Recomeço minha vida

Nasci para conhecer-te

E chamar-te

Liberdade”

Outras palavra é esperança, porque ajuda a seguir em frente.



       A palavra que menos gosto é:

Engendrar – acho uma palavra artificial. Também não gosto da expressão “rol de amizades”, é como se se pudesse visualizar uma trouxa não de roupas, mas de pessoas sujas. São cismas de quem é apaixonada pelas palavras… Sou muito ligada no significado e na potência delas. Não uso nunca a palavra CU, assim mesmo, sem acento. Ela está em moda nos últimos tempos, inclusive em reuniões presidenciais. Não é puritanismo, é preferência por sonoridades e odores mais leves rs.



  • Um filme para ver de novo

Nossa! Só um? Amo todos do cineasta russo Andrei Tarkòvski e do sueco Ingmar Bergman e já vi muitos várias vezes. Aqui, no entanto, vou citar Trem Noturno para Lisboa, filme de 2013, adaptado do romance de Pascal Mercier (pseudônimo do professor de filosofia suíço Peter Bieri) e dirigido pelo dinamarquês Bille August. A narrativa fílmica se desloca pelas cidades de Berna, Salamanca e Lisboa. É um livro de poemas de Amadeu Furtado o elemento motivador que fará o protagonista (no filme, o apaixonante Jeremy Irons) viajar não apenas pelo território entre os países, mas pela história do poeta e pelas suas próprias emoções. Política e literatura se misturam, numa composição perfeita, no lugar que mais amo no mundo: Lisboa, onde se passa a maior parte da trama.


  • Politicamente, eu

Sou de esquerda, contra a política neoliberal que só aumenta as diferenças sociais. Estou profundamente irritada com a incompetência do atual governo, que desvaloriza o trabalhador, as artes, tripudia da educação e vive de mentiras. Irrita-me ainda mais ver pessoas por quem eu tinha consideração defender ideias e atos fascistas.

  • Quem você ressuscitaria (não vale parente)

Leonel Brizola, pra mim, um dos maiores líderes políticos que o Brasil já teve. Vejo os políticos que o Rio de Janeiro vem elegendo nos últimos anos e penso nele… Vejo o que foi feito do PDT e penso nele. O que ele fez pela educação no RJ, ao lado do genial Darcy Ribeiro, não pode ser esquecido.



  • O livro que já li várias vezes

Dom Casmurro, de Machado de Assis. Pra mim, Machado continua, ao lado de Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, o maior nome da ficção brasileira (entre os escritores vivos, esse posto é do Milton Hatoum). Foi o primeiro romance que li na vida, ainda bem jovem, e ele se mantém igualmente sedutor e enigmático. A descrição dos olhos de Capitu… Não existe nada igual na literatura. De poesia, o livro que já li e reli e se mantém aberto a novas leituras, é a coletânea Reunião, de Carlos Drummond de Andrade. A edição atual junta poemas de 23 livros do poeta mineiro. A que li na adolescência, e guardo comigo até hoje, reúne poemas de 10 livros dele e sua primeira edição foi lançada em 1969. Sem dúvida, o melhor do Drummond está nela.


  • Eu me acalmo

Quando escuto a voz dos meus filhos, quando eles estão em casa e sei que posso abraçá-los.


  • Eu me irrito

Quando vejo uma injustiça sendo cometida. No nosso país isso acontece diariamente, então, para não pirar, grito, esbravejo nas redes sociais. A falta de educação no trânsito e os engarrafamentos também me irritam; administro isso escutando música e freando a minha raiva com pensamentos bons. Outra coisa que me irrita é esperar. Se marcarem um compromisso comigo, um horário, não admito atrasos de mais de 15 minutos. Não suporto falta de disciplina, desconsideração. Desisto fácil de quem me tira a paz.



  • A emoção que me domina

A música me enleva. Quando escuto She, na voz do Aznavour, por exemplo, não consigo ficar de olhos abertos, sinto-me arrebatada por uma sensação inexplicável de sentimentos bons… Sinto-me transportada a um estado de êxtase. É incrível o poder que a música tem sobre mim! A emoção também me domina quando leio determinados poemas, não todos. Há muitos poetas para pouca poesia… Acho que você me entende: não é todo poema que me emociona. Como também não é toda música!


  • Um dia ainda vou

Ter tempo para ler e escrever o que eu quiser e para assistir aos filmes que venho acumulando numa lista sem fim. Um dia ainda vou obrigar a vida a parar de me bater e dormir no colo dela sem preocupação de acordar cedo. Um dia ainda vou andar a pé pelas ruas sem medo da violência e, quem sabe, perder a vergonha de ser brasileira!

  • Existem heróis? Qual o seu?

Existem heróis sim: o pai e/ou a mãe de família que sustenta a casa com um salário mínimo. Os heróis (no sentido de feitores de atos gloriosos) ficaram presos nos quadrinhos e nas narrativas antigas. Estamos, sim, cercados de anti-heróis e heróis problemáticos, usando a terminologia de Lukács, na vida, na literatura e no cinema.



  • Religião para mim é

Apoio espiritual, crença numa energia superior que move tudo. Fui educada na religião católica, mas professo o bem e o respeito a todas as crenças. Hoje, a filosofia espírita é a que mais me traz respostas às minhas dúvidas sobre o mistério da vida.

  • Dinheiro é

Um mal necessário. Não sou hipócrita de dizer que não gosto dele, que não há benefícios em tê-lo, mas reconheço que os grandes males da humanidade vêm da ganância em juntá-lo. Valorizo o dinheiro ganhado honestamente, com trabalho. E só valorizo pessoas que pensam assim.

  • A vida é

Um mistério para ser vivido, não um enigma para ser desvendado, como disse o Osho.  Ou como disse o poeta Chico Alvim: um adeusinho. Procuro não pensar muito, por exemplo, no fato de o meu pai ter morrido aos 37 anos, de não ter visto os filhos crescerem… Dá uma desilusão imensa essa incerteza de até quando estaremos aqui, de que tudo é efêmero. Parei de buscar um sentido para as coisas e encontrei em leituras espíritas, como já disse, muitas respostas aos meus questionamentos. Apesar de todas as guerras íntimas e não íntimas, públicas e privadas, viver é uma experiência intransferível que não pode ser adiada. Minha ordem é seguir sempre em frente sem olhar para trás. É só pensar nas experiências da mulher de Jó e do Orfeu…


  • Se você tivesse o poder, o que mudaria

Acabaria com a pobreza, daria condição digna de vida a todas as pessoas. Acho um contrassenso absurdo algumas pessoas terem demais e a maioria não ter nada. Sei que sempre haverá diferenças sociais, mas não admito que muitas vivam na completa miséria enquanto outras esbanjam futilidades.


  • Eu gostaria de ser

Menos sensível. Não me mutilar tanto com as dores do mundo. Eu gostaria de não ter nascido em carne viva!


  • Não perco uma oportunidade de

Indicar bons livros e filmes para as pessoas, de conversar sobre literatura e cinema. Também não perco a oportunidade de estar com a minha família, minha base sólida de amor.



  • A solidão e o silêncio

Me conectam com a minha essência. Tenho uma vida muito agitada, sempre cercada de pessoas, então tenho necessidade às vezes de ficar sozinha, de meditar, de ouvir o silêncio. Ele me dá ótimos conselhos!

  • O Brasil é

Um país maravilhoso que está nas mãos de pessoas incompetentes, mentirosas e perversas, que se travestem de patriotas, mas que, na verdade, estão destruindo o que temos de mais importante: o povo trabalhador, o operário, o homem do campo, o professor, as cabeças pensantes. Tudo em nome da manutenção do privilégio das elites e de uma ideologia fascista. Um país com o potencial do Brasil não merecia tanto retrocesso.

  • O ser humano vai

Se autodestruir se continuar a devastar os recursos naturais e a votar errado.

  • Eu sou, minha mensagem é

Um ser em evolução. Estou em busca da minha melhor versão, por isso tenho enveredado por tudo o que conduz ao autoconhecimento.  Gostaria de que as pessoas se colocassem no lugar das outras antes de tomarem qualquer atitude, que entendessem que não adianta fazer o mal, porque ele volta. A lei do retorno é a única que é cumprida rigorosamente nesse mundo.

Heliana Querino

Heliana Querino Jornalista

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