Eis que, de repente, já se vão cento e trinta anos do surgimento, como forma de governo, da República no Brasil. Uma mudança sem povo, pois, na expressão de um prócer republicano, esse assistiu, bestializado, a uma parada militar que acabou por jogar fora um império, um velho imperador, uma dinastia.
O ideal republicano esteve sempre presente nas movimentações emancipadoras, mas, na sua programação ideológica, a república entrou no organismo político pela vontade de oligarcas e, também, pela ativação de idealistas. Já na sua conformação prática, a via militar foi o caminho mais decisivo. De uma parte, por meio de um positivismo encarcerado pela mente militar, em regra, apetrechada para as manobras estratégicas e táticas da arte da guerra ou de retiradas, nem sempre gloriosas, como a daquele coronel Tamarindo (tal oficial, na campanha de Canudos, ante a inesperada ferocidade combativa dos jagunços, baixou uma ordem do dia com a especiosa recomendação de que, “em tempo de murici, cada um cuide de si”, o que foi o mote para uma humilhante debandada). O episódio, tristonho, faz parte da selvageria que foi a destruição da Cidade-Estado de Antônio Conselheiro pela República recente. Questões políticas são também, em regra, possuidoras de sutilezas metafísicas e astúcias teológicas que o avançar e o retroceder, o ceder e o ganhar dos políticos tratam com mais destreza do que a razão militar.
De outra parte, a república tornou-se um experimento com travo autoritário, a exemplo do castilhismo gaúcho, com a sua ojeriza à representação política democrática, o seu menoscabo do Poder Legislativo e a sua concepção de hierarquia, acabando no oligarquismo sem conta. No plano nacional, os dois presidentes militares do alvorecer republicano deram demonstrações eloquentes de aversão à democracia, p. ex., Deodoro querendo incluir na primeira constituição cláusula que lhe permitisse fechar o Congresso Nacional; Floriano, beneficiário do golpe que derrubou Deodoro, tem os desmandos muito bem contados pela pena genial do autor do “Triste fim de Policarpo Quaresma”.
De qualquer modo, como já observou Wanderley Guilherme dos Santos, o primeiro passo da longa marcha da “democracia brasileira, representativa, laica e republicana”, foi dado com o primeiro voto na eleição de deputados à Assembleia Constituinte de 1891. De lá para cá, entre marchas e contramarchas, a democracia brasileira evolui, embora não se possa deixar de dizer que foi interrompida gravemente por dois períodos autoritários, experimentando as ditaduras do Estado Novo (1937-1945) e a de 64 (1964-1985). Nas duas, a presença militar foi patente: em uma, sustentando e depois abandonando Getúlio Vargas; na outra, as Forças Armadas encabeçaram o regime, tendo como representantes diretos, sucessivamente, cinco generais-presidentes.
Já na República inaugurada com a Constituição de 1946, teve-se o tempo fértil das vivandeiras, esconjurado pelo primeiro general-presidente da safra de ditadores inaugurada em 1964, segundo o qual tais vivandeiras, alvoroçadas, “vêm aos quarteis bulir com os granadeiros e provocar extravagâncias do poder militar”. Com vivandeiras ou sem vivandeiras, de quando em vez, o espectro do militarismo ronda a democracia brasileira e relativiza a república. Não à toa, recentemente “pronunciamentos” de chefes militares, mesmo sem tropas ou já recolhidos reserva, causam preocupação. Há alguns dias, uma ameaça velada a julgamento pelo Supremo Tribunal Federal; depois, o talvez apoio implícito de um general, dignitário da presidência da República, à afirmação irresponsável de um deputado federal acerca da reedição de um outro “AI-5”; mais adiante, a crítica ao resultado de julgamento do STF, promovida pelo general-vice. Sem olvidar-se que o capitão-presidente vocaliza recorrentemente um saudosismo da ditadura, com todas as suas violências, ilegitimidades e furor antirrepublicano. Tais diatribes contra as instituições têm, inevitavelmente, o condão de alvoraçar os saudosos de ditaduras passadas e os entusiastas de ditaduras futuras. Não deixam de ser manifestações que atestam que, no Brasil, as armas não cederam à toga da maneira que uma república democrática e uma democracia republicana requerem.
Num balanço sumário dos cento e trinta anos da forma de governo republicana, a democracia brasileira, representativa, laica e republicana” já não é um lamentável mal-entendido, como dizia, em 1936, Sérgio Buarque de Holanda. Todavia, a república brasileira, mais do que forma de governo, necessita de muitos cuidados para que, inclusive, torne a democracia aprofundada, fértil e material.